quinta-feira, 12 de dezembro de 2013

Robben Island - Cela 5 - Prisioneiro 46664

 

Sendo o tema desta semana quase obrigatório, era minha intenção escrever sobre Nelson Mandela qualquer coisa de original, não banal, digamos sob outro ponto de vista que não aquele laudatório que nestes dias de luto inundam os meios de comunicação social. Mas para escrever sobre o último dos justos é necessário ser digno dele, o que não é o meu caso, decidindo assim debruçar-me sobre outros assuntos dos quais tomei notas nos últimos dias, temendo desiludir quem espera a minha habitual irreverência, o ataque cerrado, a expressão da cólera legítima, pois que, agora que já não tenho razões para ter medo, tal me parece um desperdício de energia que não vale a pena, até por falta de adrenalina. Mas não pensem com isto que, se hipoteticamente encontrar algum dos coveiros desta nação, correrei a apertar-lhe a mão. Já não sou obrigado a fazê-lo como o fiz algumas, poucas, vezes por obrigação institucional.
Obrigação institucional que leva o Presidente da República a Joanesburgo, cumprindo a sua obrigação em nome do povo português com, mais uma vez, a convicção que nunca se engana e raramente tem dúvidas, ou vice versa, tal como em 1987, quando Primeiro Ministro, levou a sua pátria a votar como votou - diga o Embaixador António Monteiro o que disser -, bem acompanhado pelos Estados Unidos e Reino Unido, uma resolução das Nações Unidas que incluía o destino de Nelson Mandela. Viajará bem acompanhado pelo Ministro dos Negócios Estrangeiros, ficando todos nós a rezar para que este fale o menos possível. E digo isto sem qualquer azedume; alguma coisa já aprendi com a morte deste homem, que quando o libertaram, preferiu a reflexão à cólera.

Mas, apesar desta minha aquietação interior, não posso deixar de referir a carta de um tal Senhor Carlos Paz ao Professor João César das Neves, apostrofando-o pelas suas infelizes declarações, estranhando eu não ter lido nada sobre a afirmação do Dr. Bagão Félix, que disse que “a austeridade não é incompatível com a compaixão social”. Que os pobrezinhos têm direito à compaixão dos que têm a felicidade de o não serem, já sabíamos ser lema de certas sacristias que ambos frequentam. Que não são as de Madiba nem de Francisco.

Impressionou-me também a notícia que uma das quatro medalhas de ouro que Jesse Owens ganhou nos Jogos Olímpicos de Berlim em 1936, tinha Mandela 18 anos, foi vendida a um coleccionador de Los Angeles por 1,4 milhões de U.S.$. Agrada-me pensar que foi aquela do salto em comprimento, já que a venceu contra o alemão Luz Long, vencedor designado pelo regime nazi, e como tal hostilizado na sua terra após a “vergonhosa” derrota, o qual, tendo falecido em combate na Sicília, onde está sepultado, deve ter sabido lá, onde está, que o seu adversário deu apoio financeiro à sua indigente viúva até à sua (dele) morte em 1980. Owens, negro como Mandela, Martin Luther King e o seu “Filho” Barack Obama, e americano como estes dois. Tudo se encaixa e faz sentido.Quem lê muitos livros sabe que é raro acertar dois de seguida. A semana passada referi “O Anjo da Tempestade”, de Nuno Júdice, que tanto me impressionou, e hoje não posso deixar de vos aconselhar “Um Mundo Iluminado”, de Hubert Dreyfus & Sean Dorrance Kelly, livro “fascinante”, “surpreendente”, “desconcertante”, “exigente e belo”, “obra inspiradora extremamente inteligente” e “marco na filosofia do futuro”, e tudo isto foi lido nas badanas e na contracapa, de onde transcrevo esta apreciação: “Vivemos num mundo desprovido de heróis ou referências. O panteão dos deuses gregos é hoje uma curiosidade histórica, e o Deus omnipresente da Idade Média já não nos comanda as acções. Onde encontrar, então, um sentido para as nossas escolhas? Para a nossa existência?”. Na última página li, escrito a lápis por alguém que o leu antes de mim, “não pensar tanto aquilo que se faz, mas sim aquilo que somos”. Novamente me lembrei daquele Príncipe Xhosa cujo nome original significa na sua língua “aquele que trará sarilhos”, levado agora a enterrar acompanhado por mais cabeças coroadas que qualquer casamento real europeu nas últimas décadas.

Domingo e segunda-feira vi na RAI1 os dois episódios de um filme intitulado “Maria de Nazareth”, sobre a vida da Mãe do Homem que, sendo também ele portador de “grandes sarilhos”, deu a vida para a salvação de todos nós. Dirão alguns, que é fácil deixar-se sacrificar, após ter estado detido por uma semana, quando se tem a certeza de ressuscitar no 3º dia. Nelson Mandela, esteve preso 27 anos em Robben Island, 18 dos quais a partir pedra, com a certeza que não ressuscitaria no 3º dia, nem isso seria para si uma vantagem, pois que, aquele que fez suas as palavras de Ibsen “um povo ignorante é facilmente domesticável”, não gostaria de saber que o seu país é aquele que, depois do Brasil, apresenta maiores desigualdades sociais, que a economia se encontra ainda hoje, maioritariamente, nas mãos do brancos afrikaners, que há fundadas dúvidas sobre a boa governação, temperada de questões morais, de quem tomou o poder na ANC, que a África negra não terá salvação por estes tempos mais próximos, e penso na República Centro Africana, no Mali, na Guiné Bissau, no Chade, na Somália, em Moçambique, para falar só nestes esquecendo outros, incluindo os do norte a viver a sua “primavera”, que os massacres de 1961 e de 1985 se repetiram nas minas de platina da sua amada África do Sul já na segunda década do século XXI, que as suas milionárias Filhas disputam nos tribunais a sua herança, e contrataram os direitos de cobertura e transmissão do seu funeral, estando ele ainda vivo. Ressuscitar para ver isto?

No filme da RAI1, Jesus diz a Maria Madalena: “- Ninguém te condenou!”.

Nelson Mandela, cujo número de prisioneiro 46664, começa e termina com o símbolo da morte (4) para os chineses, e tem no centro o apocalíptico número da besta, tudo o que de mau pode existir, salvou-se com o 5 da sua cela, que é o número da liberdade e das possibilidades de mudança, trocando a vingança, que seria legítima, pelo perdão, não condenando, também ele, ninguém, incluindo os seus carrascos, e eu, que trocaria de boa vontade os pontos de interrogação dos meus 70 anos, pelos pontos de exclamação dos jovens que me rodeiam, não posso deixar de expressar a minha imensa admiração por aquele que disse: “Um vencedor é só um sonhador que não se rendeu!”.

Lisboa, 12 de Dezembro de 2013
Octávio Santos