quinta-feira, 2 de janeiro de 2014

Falar de pintura (mas não só): LIKA YANKO.




 
Hoje vou tentar matar dois coelhos com uma cajadada. O primeiro já eu andava a perseguir desde a abertura deste espaço: pedir a leitores amigos o favor de ciclicamente atenuarem o eco que dentro dele ressoa, pelo vazio resultante da falta de frequência, escrevendo sobre um assunto que dominem, dando-lhe assim um motivo de interesse e ajudando-me a mantê-lo vivo. O segundo, veio-me ao lembrar-me de uma rubrica das Selecções da Reader’s Digest, intitulada “Meu tipo inesquecível”, em que o autor falava de alguém que o tinha tocado particularmente, e é por isso que hoje vou relembrar a pintora búlgara Lika Yanko.

Como sabem, servi na Embaixada de Portugal em Sófia, como Encarregado da Secção Consular, de Junho de 1975 a Dezembro de 1987, e durante esses doze anos e meio, para além das tarefas inerentes ao cargo, andei a arredar cortinas (de ferro) para ver se descobria coisas escondidas. E uma dessas “coisas” foi a Lika, que visitei inúmeras vezes na sua casa/atelier no Boulevard Dondukov, mesmo no centro da Sófia.

Lika Yanko era - faleceu em 2001, com 73 anos - de origem albanesa, tendo nascido em Sófia em 1928. Entrou aos 15 anos para a Academia das Artes, onde estudou pintura na classe do Professor Detchko Uzunov, admirável mestre que, apesar disso,  não a consegue encarrilar nos cânones  vigentes, ou porque o espírito de Van Gogh a habitasse, ou pela sua incapacidade de ajustar o seu estilo original aos então requisitos da arte oficial que a obrigavam, a ideologicamente correctos retratos de operários e camponeses, cenas de heróicos actos militares ou a pujantes paisagens industriais. O certo é que acabou os seus estudos artísticos com a menção de suficiente.

Começando por exprimir livremente - terrível crime de lesa socialismo - o que a sua alma poética lhe transmitia às mãos, Lika Yanko preenchia as suas telas com conteúdos mitológicos, bíblicos ou fantásticos, sempre de uma originalidade absoluta, ressuscitando arquétipos tais como o Sol e o amor, a Anunciação e a maternidade, a fé e a esperança, Orfeu e Eurídice, Cristo e os Apóstolos, o auto-sacrifício e o destino, o mundo do circo, jardins de delícias, o homem e o mar, pescas milagrosas ou menos, enfim, o Universo. Utilizando materiais como redes, cordas e guitas, seixos e vidros coloridos, botões, molas e colchetes, ferragens minutas ou pequenos acessórios de cobre de uso eléctrico, que misturados sabiamente nas telas com tintas e vernizes, transformavam-se, por magia de uma alquimia muito sua, num todo com vida própria, poética e simbólica, transmitindo-nos a sua energia espiritual em obras que, respeitando as tradições bizantinas que impregnavam a velha pintura búlgara, fazem dela uma moderna recriadora de ícones sagrados, ou atrevendo-se pelas tendências da sua época, uma notável intérprete de um vanguardismo ocidental Europeu.

A sua primeira exposição individual teve lugar em Sófia em 1967, tendo sido encerrada seis dias depois; acusada de vanguardismo, formalismo e falta de disciplina, o seu nome foi considerado tabu, estando proibida de mostrar os seus trabalhos até 1981, ano em que Ludmilla Jivkova, então Ministro da Cultura, autorizou novamente uma exposição das suas obras, fruto da sua condição de Filha do ditador Todor Jivkov, que a mantinha imune aos ataques dos cães de guarda do regime, imunidade que lhe custou cara, tendo falecido aos 37 anos, nesse mesmo 1981, em condições nunca bem esclarecidas.

Em Março de 2013, por ocasião dos 85 anos do seu nascimento, foram expostas numa galeria em Sófia, com um enorme êxito, 23 das suas obras, tendo alguém dito que se tratava de uma das mais expressivas artistas búlgaras do século XX.

Ora, durante os últimos dos seus 14 anos de ostracismo e segregação, e também depois da sua reabilitação, que acabou por ser minimizada pela morte da sua “patrona”, tive o privilégio de frequentar, como já acima referi, a casa/atelier de Lika Yanko, de adquirir algumas das suas obras que guardo ciosamente, e de me ter tornado seu amigo, como são prova os inúmeros trabalhos que ofereceu aos meus Filhos e pelo episódio que passo a descrever:

Na sala onde nos recebia, tinha muitos dos seus quadros nas paredes e, entre eles um, enorme, representando o sistema solar com todos os seus planetas, obra magnífica que, pelas palavras secas da Lika sempre que alguém se propunha adquiri-lo, não estava à venda. Uma das pessoas que mais insistentemente perguntava quanto quereria ela para o vender, era a Embaixatriz de França, Madame Le Breton (mais tarde Embaixatriz em Lisboa), que recebia sempre a mesma resposta: - Este quadro não está à venda! Acontece que numa das minhas últimas visitas à Lika, senão a última para dela me despedir, ela subiu numa cadeira, retirou a tela da parede e, estabelecendo um preço modestíssimo, entregou-mo dizendo que o quadro era meu. Está hoje em Paris em casa da minha Filha Margarida.

Antes da sua morte, Lika Yanko doou 82 das suas obras à Sofia City Ar Gallery,  onde se encontram em exposição permanente, e quadros seus são propriedade de inúmeros diplomatas ocidentais que, tal como eu, depois de arrumarem o carro em posição discreta ou em rua paralela, visitavam “às escondidas” o antro de produção de maravilhas que era aquele 1º andar do Boulevard Dondukov, onde éramos recebidos pela Lika, que falava pouco, pela sua irmã Denka, que falava muito, e ouvindo uma voz misteriosa que provinha de um quarto a que não tínhamos acesso, e que, no dizer das manas, era Maman que estava sempre reclamando qualquer coisa. Não tendo os visitantes alguma vez visto tintas, pincéis, cavaletes e outras ferramentas da arte, com excepção de uns frascos de verniz que apanhavam a luz do Sol directamente de uma janela, afirmava uma Embaixatriz de Portugal que a pintora era a personagem misteriosa escondida e que, tanto a Lika como a Denka eram apenas marchands d’art que vendiam as obras da soi-disant Maman. Para adensar este mistério, as fotos que se encontram na net como se de Lika fossem, são, e sou eu a jurá-lo, de Denka, porque a Lika, e sou sempre eu a jurá-lo, é aquela que aparece no quadro com um cão pela trela, que vi durante anos pendurado na sua sala e que também não estava à venda.

Abraço

Lisboa, 2 de Janeiro de 2014.
Octávio Santos