quinta-feira, 16 de janeiro de 2014

Crónica dos Sete Rios, ou " Sou agora um (feliz) cidadão dos Açores"


Alfacinha nos papéis, português porque a Pátria não se renega, sempre me senti apátrida por dentro, tentando muitas vezes aninhar-me em berços que não me pertenciam, chegando ao ponto de pretender antepor um “ribeiro” regional, o Tibre, a um senhor rio internacional, o Tejo, só porque  os costumes das terras banhadas eram mais consentâneos com o que me ia (e vai) na cabeça.


Nunca parigot  por repulsa ou incapacidade minha, não me sentindo à vontade nas margens do Sena ou do Marne, escassamente eslavo por não assimilar os cânones vigentes nas faldas  da “Velha Montanha” onde nasce o Sturma,  que com o nome de Strimonas desagua na Grécia, país que adoptei por mares quentes, mezzes frios e tantas outras coisas,  muito riso amaro e dolce vita  por atracção irresistível à beleza que, mesmo quando pobre e trágica, pode contagiar a vida, badio na alma por rebeldia natural e fugas estrategicamente defensivas, sampadjudo por músicas mornas,  pensei, um dia que passava entre Teimosas e Pouca Farinha, tornar-me cidadão da Costa Vicentina, projecto abortado por mau funcionamento dos pisca pisca.

Até que, por força da “maldita crise” que tudo cobre com o seu pesado manto da estupidez, que tudo permite ou interdita, tudo contamina, tudo endossa, tudo fecha, desde que cheguem ordens das margens do Reno, se lembrou, após transferir a estação dos correios para o café da esquina e de tentar adaptar a raça de fidelíssimos cães vermelhos nas planícies do Yang Tzé, de fechar também a Loja do Cidadão que foi Éden para tantos, deixando-me à deriva com o Cartão de Cidadão a caducar e na eminência de ter de rumar às Laranjeiras e arrostar com as inevitáveis filas que continuam a formar-se à porta, até ao dia em que se lembrem de encerrar mais esse templo do despesismo que só serve para albergar funcionários públicos inúteis e calaceiros. 

Como, afinal, tenho sempre sorte, alguém me indicou que na Loja dos Açores - mesmo ao pé de casa, na Elias Garcia - havia um serviço denominado RIAC – Rede Integrada de Apoio ao Cidadão, que tratava também do CC. Nunca acredito em facilidades, sobretudo nestes últimos tempos, mas para lá me dirigi para ver como era. Balcões, meninas bonitas, maquineta de débito de senhas, o robot que nos capta tudo, fotografia, dedos e assinatura (esperando que a nova geração não nos adivinhe pensamentos e desejos), e o principal, isto é, um espaço agradável e luminoso onde esperar aquela hora a que a senha 13 me obrigou, a bisbilhotar tudo aquilo que os Açores têm, não só para nos vender, mas também para nos dar uma ensaboadela sobre a cultura do arquipélago.

E essa foi a descoberta que vos passo a descrever em estilo telegráfico, como fiz uma vez que passei 5 horas com Um Olho na Luz para me dizerem que afinal não era  nada ,  já que será supérfluo  informar que saí da Elias Garcia com o CC renovado até 2019.

- Soube que o segredo mais bem guardado de cada família açoriana é a receita do licor que só naquela casa se sabe fazer, e daí, quando se visitam familiares ou amigos na quadra natalícia, se pergunta aos anfitriões, após admirar o Presépio ou a Lapinha: - O menino mija? -, pergunta que automaticamente faz aparecer o licor da casa que é servido copiosamente às visitas, as quais, caso visitem muitos Presépios, devem voltar para suas casas com um grão na asa por força dos diversos  xixis do Menino Deus, que, pelo que vejo nos rótulos das garrafas à venda, pode ser de maracujá, amora, baguinha, laranja, tangerina, canela, chá, ananás, leite, banana, anis, ginja,  nêspera e capucho (phisalia).  Doces há-os disto tudo e mais de goiaba, de uva de cheiro, de figo, de batata doce, araçá, gila, meloa, groselha e butiá.

- Soube que Vitorino Nemésio tem sucessores que dão pelo nome de Maria Eduarda Rosa, Daniel de Sá, Luís Mendonça, Helena Ranha, Maria José Alemão, Paulo Assim, Dias de Melo, Silvino Bettencourt, Alberto Peixoto, e sobretudo João de Melo, autor do romance “Gente Feliz com Lágrimas”, terceiro dos 11 que escreveu, editado em 1989,  multipremiado e adaptado ao teatro e, com muito êxito,  à televisão.

- Que o Vinho do Pico se bebia com deleite na corte dos Czares já se sabia, mas todos os outros que lá vi, brancos, tintos e rosés, de mesa, abafados, de lava, de cheiro, dos Biscoitos, do Chico Maria, têm de ser provados tal como as aguardentes de bagaço, de figo, com nêveda ou com bagas de faia,  para conhecermos todas as vantagens de ser patrício do Pauleta.

- Charutos e cigarrilhas, que matam como todos os outros, lá estão tentadores a lembrar-nos marinheiros sem pressas que matam a sede e desentaramelam a língua no Café Peter depois de terem perpetuado a cores a passagem das suas embarcações na Marina da Horta, e a recordar-nos duros baleeiros esculpindo dentes de cachalote, como se de homenagem se tratasse ao formidável animal que tinham acabado de abater por profissão e por necessidade.

- Falando de artesanato, as Lapinhas, típicos presépios/totens com alto conteúdo artístico, têm de ficar à cabeça, mas os bordados, de matiz ou outros, como os extraordinários bordados de palha, as preciosas composições florais de escamas de peixe,  as esculturas e jóias de pedra lávica, as “violas da terra”, as porcelanas de matiz e as faianças policromas, os meticulosos trabalhos de miolo de figueira e de hortênsia, os estandartes e capinhas bordados  para as festas do Espírito Santo, as miniaturas de fachadas de solares, igrejas e “impérios”,  as bonecas de capelo de milho ou de folhas de ananás, os patchworks e batiks, tem de ser nomeados,  e sei que estou a esquecer injustamente outras coisas importantes.

- Chico Ávila, Ermelinda Toste, Bruno Walter Ferreira, José Medeiros (autor da banda sonora de “Gente Feliz com Lágrimas”), Aníbal Raposo, Rafael Carvalho e Nuno de Brito, a par com inúmeros coros, bandas e agrupamentos musicais das diversas ilhas, são nomes lidos nas capas dos cd musicais à venda, e quem nos diz que não está ali algum tesouro escondido?

- Chás e ananases, sabemos serem os únicos da Europa, e ainda por cima bons, ou melhor, excelentes, mas outras maravilhas lá estão para tentação dos palatos mais finos e exigentes: queijos de todas as 9 ilhas, mel, enchidos, queijadas, pastéis e biscoitos, conservas de atum, manteiga, inhame e batata doce, molhos de vilão e de pimentinha salgada, açafrão, carne, carne, carne e mais carne, estão lá todas as partes nobres do bicho boi, fazendo-nos sonhar com um cozido das furnas.

- Cozido das furnas que é um cartaz turístico, como o são as touradas à corda, as festas Sanjoaninas, do Espírito Santo e do Senhor do Santo Cristo dos Milagres, as emoções de um mergulho num mar incontaminado, de cotejar com um vulcão vivo, de ver uma fajã do alto, do verde e do azul que contaminam tudo, água, ar e vegetação, de admirar currais “envideirados”, de olhar embasbacado para gigantescos prismas basálticos que apontam o céu onde as aves que deram o nome ao arquipélago planam seguras de habitar o paraíso,  que cada vez mais turistas escolhem seguros de umas férias inesquecíveis. Na minha terra.

E pronto, agora que sou cidadão dos Açores só me resta desejar que alguém que me considera um “corisco mal amanhado” no seu verdadeiro significado (descubram sff!), não me diga um dia: - Desapega-te!!

Lisboa, 16 de Janeiro de 2014
Octávio Santos
 

PS: No momento em que me declaro orgulhosamente cidadão dos Açores, sem qualquer mérito ou esforço da minha parte, gostaria que me explicassem quais os serviços prestados, e a quem, por Vitor Louçã Gaspar, Álvaro Santos Pereira e José Luís Arnaud para serem agora felizes cidadãos do FMI, da OCDE e da Goldman Sachs? 

PS2: Acaba de nos explicar o Dr. Marinho Pinto, no qual “bati” a semana passada por me ter beliscado o Eusébio, qual foi o mérito do José Luís Arnaud: participou activamente no processo de privatização dos CTT, dos quais a Goldman Sachs ficou com 6%. Esperemos que alguém nos venha explicar o “fenómeno” dos outros dois. Já fui tão feliz em Portugal, diria o Malato.