quinta-feira, 27 de fevereiro de 2014

ARTE, arte, instalações (mesmo sanitárias e com conteúdo), "artistas" em todas as artes, mesmo aquela de furtar a liberdade de estar ou não de acordo.




No meu último texto falei dos crochets da Joana Vasconcelos para comparar a sua estrutura esburacada com aquela da minha cultura, e disse que navegar na net era como trepar a uma cerejeira, só descendo depois de uma barrigada dos frutos que lá se colhem, evitando os podres. Acontece que esta semana a minha subida à árvore provocou enormes rasgões no tecido das minhas incertezas culturais, sentindo-me agora como um economista português, daqueles que nos explicam a inevitabilidade da austeridade, embasbacado diante a um quadro de Pollock.

Tudo isto porque sonhei ter visto numa poubelle de Versailles o lustre de Tampax que a nossa insigne artista convenceu os franceses a pendurar no Palácio do Rei Sol, o que provocou, não só os protestos dos conservadores gauleses, como aqueles da ANUTOB – Associação Nacional das Utilizadoras de Tampões O.B., invocando par conditio.
 
Mas voltemos à realidade que, desta vez, ultrapassou os meus sonhos. A semana passada (andava eu por aqui às voltas com anjos), em Bari, estava pronta para ser inaugurada no museu desta cidade do Sul da Itália, uma instalação intitulada “Display Mediating Landscape”. Na manhã do dia previsto para a abertura da mostra, a Senhora Anna Macchi, encarregada da limpeza do museu, entendeu dar uma varridela e deitar para o lixo as obras de 5 dos 40 artistas co-autores da dita instalação, não sem, antes de ter chamado o carro da empresa municipal que se ocupa de fazer desaparecer os resíduos inúteis da cidade, o qual levou tudo para a lixeira, ter partido, na sua labuta, umas bolachas tipo petit beurre que eram parte integrante do trabalho artístico. Inconsciente da gravidade da sua acção, que provocou danos no valor de 10/12 mil euros, a Senhora apenas repetiu que não fez nada de mal e que se limitou a fazer o seu trabalho como todos os dias, isto é, a pôr o lixo no lixo. – Eram só umas caixas de cartão e alguns jornais: nunca pensei que aquilo fosse arte! disse a diligente Senhora.
O gerente da empresa de limpezas para a qual a senhora Anna trabalha, pediu desculpa pelo sucedido, disse que a Senhora é uma pessoa honesta e meticulosa que faz bem o seu trabalho, que está muito incomodada com o sucedido, mas que a sua seguradora pagará todos os danos. Já o assessor de marketing do museu declarou que o sucedido ” é mérito dos artistas que souberam interpretar da melhor maneira o intrínseco sentido da arte contemporânea, isto é, aquele de interagir com o ambiente que nos rodeia”. Mas há quem se interrogue: - Este episódio deve suscitar algumas perguntas; porque é que este incidente se verificou com uma peça de arte contemporânea? É esta uma verdadeira arte? Se sim, porque é que não é conhecida, apreciada e respeitada como as obras clássicas?
 
Genial a ideia da autarquia de Bari que convidou a Senhora Anna para interpretar o papel de uma severa e atenta inspectora dos bens comuns, do decoro dos monumentos e da limpeza da cidade, num spot publicitário institucional, no qual a senhora vai admoestar aqueles que deitam papéis, maços de tabaco vazios ou cascas de tangerina para o chão, ou tratam imprópria e vandalisticamente o mobiliário urbano e os monumentos.
Tudo isto me leva a recordar que, após a indescritível barbárie do Primeira Guerra Mundial, um grupo de artistas, horrorizado com aquilo que o homem era capaz de produzir, resolveu fazer tábua rasa de todas as realizações humanas até então, por as considerar indignas, incluindo a arte. Assim, uma noite, no Cabaret Voltaire, numa rua de Zurique, a mesma onde vivia e pior, pensava, Vladimir Ilitch, dito Lenine, decretou a morte da arte existente e propôs uma nova, à qual nem sabiam que nome dar. Alguém então se lembrou de abrir ao calhas um dicionário francês, e um dedo indicou a palavra Dada que, em linguagem infantil significa cavalinho de baloiço. Nasceu o Dadaísmo, e a sua obra mais significativa será para sempre o urinol que Marcel Duchamp virou ao contrário e chamou Fonte.
 
O italiano Piero Manzoni exagerou e encheu 90 latas de folha de flandres com as suas próprias fezes, fechou-as hermeticamente e colou-lhes uns rótulos que indicavam em várias línguas o seu conteúdo: “MERDA DE ARTISTA”. Hoje, as poucas que existem - já que muitas explodiram pela fermentação da intestinal arte contida, e outras, corroídas pela acidez do tesouro que escondiam, deixaram verter o precioso sub-produto do genial artista, ficando os seus proprietários com aquilo que realmente tinham adquirido, isto é, Merda! – Estão no mercado a preço de ouro, demonstrando que a razão está do lado do crítico de arte italiano, Vittorio Sgarbi, que diz que o valor de uma obra de arte é o resultado de uma equação complexa que tem como incógnitas o número de olhos que a admiraram ao longo dos tempos, e tudo aquilo que sobre ela se for escrevendo.
Estou em crer que, como sobre a instalação de Bari, violada pela Senhora Anna, já escorreram rios de tinta de escrever, e como toda a cidade, província e região farão fila para a admirar, esperando-se mesmo visitantes de toda a Itália e até do estrangeiro, a “obra de arte” atingirá valores que tornarão ridículos os 111 milhões de euros que o Barcelona pagou pelo Neymar (metade no negro).
 
Acontece-me sempre o mesmo quando escrevo; começo a ficar confuso para o fim na ânsia de acabar. Assim, vêem-me à cabeça três coisas:
 
- que uma outra obra de Marcel Duchmap, “O Secador”, está no CCB, no Museu Berardo, e que diante da porta de entrada  está uma versão gigante do mesmo, da autoria de Joana Vasconcelos, que lhe acrescentou as garrafas e umas luzes.  Cópia ou homenagem a um dos pais do dadaísmo? O certo é que a sua arte lhe dá-dá muito lucro. Legítimo e merecido, por amor de Deus!
- que tentando também eu fazer uma obra de arte, fiz uma colagem com pedras,  pedaços de madeira e uma guita,  que intitulei “O ET não regressou home”, a qual me foi subtraída pela proprietária de uma galeria de arte de Lisboa, onde fiz uma das apresentações do meu primeiro livro.  Não disse roubada com receio de ser processado pela Senhora, já que em Portugal quem arrisca a cadeia são os que denunciam e não os prevaricadores. Já alguma vez leram ou ouviram que dois dos amigos do nosso Presidente da República, um é ladrão e o outro, para além de ladrão é também assassino? Tá bem abelha!
 
- que, no Coliseu, que quando era pequeno era sala para ir ver palhaços, caíram lá todos, os esperados  e os não esperados, na ânsia de debitarem a sua rábula na esperança de conquistar um lugar, não na consideração e respeito do povo,  mas no “Cantinho dos Artistas”, naquele que foi mais um festival de stand up comedy.  Tiro o meu chapéu a uma Senhora que, sacrificando a um Deus hoje obsoleto, a coerência, não atravessou as ombreiras das Portas de Santo Antão.
Infelizmente o espectador, nós todos, os espectadores da arte e da política, continuamos (até quando?) a admirar, aplaudir e a engolir a merda que nos é servida. But, the show must go on!
 
Lisboa, 27 de Fevereiro de 2014
Octávio Santos