quinta-feira, 6 de março de 2014

A (outra) Senhora não tinha morrido?



Porta dos Nós - Pormenor do Quadro
"Monumentos Calipolenses" - Palangana, 1978
Tinha prometido a mim mesmo escrever hoje um texto bonito sobre o amor mas, refastelado e de pantufas (as minhas são coelhinhos que, de gastos, parecem sofrer de mixomatose), diante do electrodoméstico mais usado cá em casa (agora está o Bernardo na Disney Channel), fazendo zapping detive-me duas vezes e parecia não acreditar nos meus ouvidos. Porra! Lá se foi a vontade de escrever sobre coisas boas e importantes. Mas vamos por partes.
 
Primeiro foi o emagrecido Paulo Rangel (aquele do dedo sempre em riste direito à nossa cara) a dizer a um jornalista que um dos grandes problemas políticos em Portugal é que o PS não perdia a mais pequena oportunidade para criticar a coligação do Governo, agora Aliança Portugal (Nacional seria demasiado), soubemos a semana passada. De boca aberta fiquei à espera que o entrevistador dissesse que não via nisso nada de estranho porque em democracia era costume ser assim, e perguntasse, irónico,  se a outra Senhora não tinha já morrido há 40 anos.  Mas não, e fiquei a pensar se este tem(rr)or de perder o emprego - na António Maria Cardoso há agora apartamentos de luxo para golden boys com golden visa -, só por contrariar quem está momentaneamente no poder, não será um sinal de que a Senhora ameaça ressuscitar ?
Depois foi o sexólogo Manuel Forjaz a tirar-me o apetite de escrever sobre o que me propunha, com a sua 5ª lição sobre o tema - desta vez sem mostrar, como é costume, acessórios que dão uma mãozinha (salvo seja!) -, na qual dissertou, a meu ver alarvemente, sobre a incapacidade de engate dos nossos patrícios, mesmo os mais jovens, incapacidade essa herdada das gerações anteriores, o que faz com que o povo português seja triste, não tendo ainda adquirido a capacidade de “coisar” (expressão erudita do sexólogo) separando a técnica do sentimento, ou seja, se compreendi bem, que nós coitadinhos estamos com um atraso na evolução da espécie, não conseguindo, nem a cair de bêbedos (é assim nas nossas discotecas, disse o perito), chegar ao são atrevimento do “Bom dia minha Senhora, muito obrigado minha Senhora!”
 
Lembro-me da história passada num Congresso de Medicina no estrangeiro, em que dois doutores portugueses, após os trabalhos, se encontraram no corredor do hotel em que estavam aboletados, e, palavra puxa palavra, acabaram no quarto dela (ou dele) a fazerem aquilo que tinham para fazer, “coisar” segundo Forjaz. No momento de puxar pelo cigarrinho apresentaram-se, e ele disse-lhe que tinha a certeza que ela era um cirurgião pela forma meticulosa como tinha arrumado cada peça de roupa tirada, como se tratasse de bisturis, tesouras, agulhas, espeques e outros artefactos da arte. Ela anuiu, louvou-lhe a perspicácia e retorquiu segura que também ela tinha adivinhado a sua especialidade clínica: - Só podes ser anestesista! - Acertaste em cheio, mas como é que lá chegaste? - Simplesmente porque não senti nada! Não é uma das parábolas da obra de Manuel Forjaz, mas poderia muito bem sê-lo.
Diz-se dos pugilistas que estão para cair KO no final do round, que foram salvos pelo gong. O meu gong foi um telefonema da minha Filha Margarida que, como de costume, se pôs a ensinar-me coisas e me perguntou se eu conhecia o Claude Lévi-Strauss. Fui chato porque lhe disse que a sua pergunta era uma prova de que não me lê, e para não esticar a corda, mudei de diapasão e contei-lhe uma história (hoje é dia de histórias) que tem como protagonista um homem que todos os dias ia a uma pastelaria comer uma bola de Berlim com creme. Acontece que um dia só havia bolas sem creme pois que, como lhe explicou quem o serviu, o pasteleiro tinha deixado talhar o creme que ficou inutilizável. Na crise de abstinência da sua droga matinal, o frustrado cliente, com a desculpa de ir ao WC, introduziu-se na fábrica, xingou o pasteleiro que, azedo, replicou malcriadamente provocando uma fúria no nosso homem que, agarrando numa pinça a cravou violentamente no coração do pobre doceiro, causando-lhe morte imediata, e dando às de vila Diogo. Chamada a P.J., o autor do crime foi descoberto logo no dia seguinte porque cedo de manhãzinha se apresentou ao balcão pedindo a sua imprescindível bola de Berlim com creme, o que fez com que o Inspector da P.J. que estava numa mesa a beber uma bica escondido por um jornal desportivo, se levantasse de supetão, lhe desse voz de prisão e o algemasse. Elementar meus caros Senhores, disse com prosápia o perspicaz agente investigativo às câmaras da televisão – em casos destes parece que já lá estão à espera -, o nosso homem caiu em duas armadilhas clássicas que vêm nos livros: a primeira é que o criminoso volta sempre ao local do creme, e a segunda é que, como todos sabeis, o crime não com pinça!
 
Acabaste de me dizer uma contrepètterie, disse-me a Margarida, e tendo eu perguntado em que consistia tal figura literária, remeteu-me para o dicionário e, melhor, disse ela, para o Canard Enchainé que tem uma rubrica muito concorrida e ilustrada sobre o tema. Dá-se que o Google Tradutor não te dá a tradução, que o fracote dicionário de francês-português que tenho em casa omite o vocábulo, e foi preciso ir ao Varatojo almoçar um robalo a casa do meu Irmão pequenino para, manuseando um velho e pesado dicionário encadernado a couro, que me recordo existir já em casa do nossos Pais, descobrir que contrepètterie é uma “contraposição burlesca de sílabas”. Já me tinha acontecido com haikus, lipogramas e monovocalismos, ter praticado estas artes literárias antes de as conhecer; foi agora a vez de contrepètterie (contraposição).  Estou sempre a aprender!
Na navegação em busca desta arrevesada palavra francesa, não é que vou ter à Edith Piaf e a uma sua canção intitulada “Les Mots d’Amour” (As Palavras de Amor),  palavras, palavras, palavras, sempre palavras, mas de amor, e aqui, como por milagre, eu que já estava descrente do cumprimento do voto inicial,  volto à minha promessa, e portas se me abrem através das palavras de outros, que só não são minhas por falta de talento. E aquela mulher pequenina que escolheu como apelido o nome da mais insignificante e corriqueira das aves - Piaf =  pardal -, obriga-me , com a mão sobre a passarola do tapete do meu rato (já estás a extrapolar, diria alguém), a entrar pelas portas do amor só de ouvir a sua canção e de ler a letra da mesma que, dirigida seguramente àquele que foi o grande amor da sua vida, o campeão de boxe Marcel  Cerdan (inconscientemente falei de pugilistas no 5º parágrafo), o qual, como Apeles Espanca, morre tragicamente num acidente de aviação, lançando-a no desespero e em tudo o mais de desgraçado que se seguiu até ao fim da sua vida. C’est  fou c’que j’peux t’aimer…Car j’n’ai jamais aimer, jamais aimer comme ça. (É loucura quanto te posso amar… Porque nunca amei, nunca amei assim – tanto -). E vem-me em mente uma outra canção, “Non, je ne regrette rien” (Não, não lamento nada), onde a Piaf faz um balanço da sua trágica vida sentimental sem de nada se arrepender, e me faz pensar que esta Senhora, não a outra, realmente não morreu, mas continua viva a iluminar com as suas canções os caminhos do amor, pelo menos para aqueles que assim o desejem.
 
A divagar, entro nos meus terrenos próprios - poesia, música, anjos e sonhos -, e triste porque este ano o Festival de Sanremo não teve, na minha opinião, uma única canção que jeito tivesse, penso noutras que escutei recentemente, não podendo deixar de citar “Ti penso e cambia il Mondo”, de Adriano Celentano, “Come fly with me”, de Frank Sinatra, “E se domani non avessi te”, de Mina, “Tu si n’cosa grande”, de Domenico Modugno, ou aquele napolitana, de Renato Carosone, dedicada a uma “Maruzzella” que é uma vendedora ambulante de caracóis do mar, na qual o autor diz sofredor: Prima me dice si, po’ doce doce me fai muri. E aqui aproveito para fazer uma reflexão: o fim último daqueles que fazem política deveria ser o de tornar melhor a vida de todos, mas a grande maioria desde que melhore a sua (e como!) já se dá por satisfeito, enquanto que aqueles que escrevem e cantam estas, e outras canções, melhorando a sua, dão uma luz nova à vida de todos nós.  Escolho os segundos porque me tornei um sonhador, como diz Peppino di Capri na sua canção “Il Sognatore”, da qual tenho o cd que ele próprio me ofereceu com dedicatória, durante um jantar em Nápoles com Amália Rodrigues. Mas esta é uma outra história, e hoje já contei duas.
Como acima referi Apeles Espanca, outro que também muito amou (bem ou mal, é outra coisa que não me compete julgar), abro aqui um parêntesis por me ter recordado que, não tendo gostado do filme que fizeram da vida da sua Irmã Florbela, assim que, à saída da sala, apanhei carta e pena escrevi um pequeno e descuidado poema para mostrar a minha discordância, o qual intitulei “Bela”. Como homenagem a estes dois, Florbela e Apeles, escolhi a Porta dos Nós como imagem para este meu texto que acabou por honrar a promessa inicial.
 
Falando de cinema,  e sempre atrás do amor, desta vez por uma cidade, Roma, alegrou-me o facto do filme “La Grande Bellezza”, do qual Roma é a verdadeira protagonista, ter ganho o Óscar para o melhor filme estrangeiro, e estando eu mortinho por ir vê-lo, busco em que salas está e quais os horários para os compatibilizar com a minha vida de Avô e, sempre a coincidência, sempre as portas do amor a abrirem-se, descubro o filme francês “L’Amour”, com  Jean-Louis Trintignant (81 anos) e Emmanelle Riva (85), que conta a história de dois velhos professores de música. Ela tem uma macacoa, um derrame ou qualquer coisa assim chata, não importa, e ele, no princípio desorientado, resmungão  e implicante, acaba por ter a força de ressuscitar o amor da sua juventude, e de toda a sua vida,  pondo toda a sua paciência, resignação, delicadeza e atenção, que são talvez formas de amor ainda mais sofisticadas e sublimes, por tão difíceis que são, nos cuidados a ter com a sua companheira agora  diminuída.  Inesquecível o momento em que ele ouve num aparelhinho hi-fi uma das suas (dela) interpretações ao piano e sonha vê-la sentada a tocar.
Recordo Emmanuelle Riva, linda, elegante, uma classe infinita, no filme “Hiroshima, mon amour”, de Alain Resnais, que acaba de nos deixar no dia da entrega dos Óscares, e no “Bleu”, da trilogia de Kieslowski, e Jean-Louis Trintignant no “Il Sorpasso” (A Ultrapassagem), no “Rouge”, outro da trilogia de Kieslowski, no “Um Homem e uma Mulher”, de Lelouch, ou “Z”, de Costa Gavras. Sempre filmes de amor, por uma mulher, uma ideia, uma ética, uma liberdade. Juntos vimo-los jovens, belos e brilhantes em “Um Homem e uma Mulher”, esse filme inesquecível que tão marcante foi para a juventude daqueles da minha idade. Como agora este “L’Amour”, que espero deixe qualquer semente no coração dos mais jovens.
 
Acabei por cumprir a minha promessa e abrir portas de amor, ou pelo menos chegar até à sua soleira, lembrando que todas podem ser transpostas; é só uma questão de ter as chaves justas ou um livre-trânsito. Não aconselhado o uso de gazuas ou documentos falsos. É que todos ficamos extasiados com as canções da Piaf, mas se nos propusessem o cenário da sua vida…
Lisboa, 6 de Março de 2014
Octávio Santos