quinta-feira, 3 de abril de 2014

Escrita criativa com o mistério da subtracção da máquina do tempo a um operário por vadios amadores a)

Nas traseiras do Moínho de Vento não havia rua empedrada ou asfaltada e o Infante morto mártir na outra costa do Mediterrâneo não era ainda nome de avenida larga e o menino da janela da cozinha tinha o espectáculo pobre diário do que não acontecia e registava paisagem, gente, ruídos e não-factos indo para a cama idealizar o que poderia ser o que não era dando dimensão e cor ao minúsculo cinzento da realidade tanto que olhando o tecto branco do quarto com uma rosácea de gesso ao centro este se afastava até o menino pensar que ia ver o céu mas fechava os olhos com medo que o tecto lhe fugisse e o espaço voltava à normalidade o silêncio convidava à modorra e o tempo se encarregava de o fazer dormir. O espaço, o silêncio, o tempo.

Ao longe a mancha verde do campo descia até ao aqueduto da Cova da Moura onde a chaminé da fábrica das lâmpadas assinalava como um padrão o limite do seu espaço para a esquerda e do lado direito o Alfredo Maluco descia na sua tábua com rolamentos de esferas a Rua de Sant’Ana quase até chegar ao beco que era o centro cívico social comercial e artístico do microcosmos que a virtual câmara de 8 mm que o menino montara na janela, não porque tivesse partido a perna como o James Stewart do Hitchcok, mas porque queria ver e saber tudo que gravava para memória futura.
O Tarolo palitava os dentes podres encostado à sua caminheta vermelha esperando clientes para um serviço que muitos dias não chegavam, as mulheres das caves gritavam pelos filhos para se despacharem para ir para a escola de bibe e com os livros e cadernos na sacola, “- Oh Zé Manel, oh Alfredo!” -, os pais indiferentes saíam para o trabalho de fato macaco azul e desapareciam rumo à oficina ou à obra, no pombal da quinta do Tobias a Cabeça de Avião de pé atrás da filha sentada num degrau catava-lhe os piolhos, “- Está quieta com a cabeça Assunção, raios partam a rapariga!” -, para o barracão metade moradia metade armazém de materiais para as obras entrava cedo o Júlio Peres conhecido fadista das noites de Lisboa todo afiambrado e penteadinho para o merecido repouso diário após a noite a ganhar com a garganta afinada o pão de cada dia e quem sabe a acender sonhos e paixões com os requebros da sua voz, que a mulher coitada depois de um dia a lavar e a passar a ferro a roupa de outros só tinha que lhe apresentar à noite os sapatos de verniz preto a brilhar o fato engomado e a camisa branca sem pregas no peito e rugas no colarinho; para o menino era um mistério que se renovava cada dia como podia sair daquele tugúrio uma pessoa tão bem posta aparentemente lavada apostando até que cheirava a Madeiras do Oriente mistério que descobriu já grande no Jardim das Hespérides onde bastava trocar o fado pela morna.

Numa janela do rés-do-chão do único prédio em frente o Sargeta que tinha sido sargento na tropa mas que a sua propensão para os soldados rasos lhe afivelara a alcunha entabulava conversações para um comércio carnal com um magala em licença enquanto a plaina descansava sobre os costados de um guarda vestidos  para uma Senhora da Tenente Valadim,  do 3º andar abria-se uma janela de par em par e o Escarrador de camisola de alças que diziam ser irmão do Sargeta mas tinha vergonha pigarreava  tossia e lá arrancava às entranhas a lostra matinal que se despenhava até ao chão de terra batida do beco, “- Se tivesse casca era ovo!” - gritava  com a sua voz de aguardente o Tarolo até ali a observar a cega das alfaces a mijar em pé como fazia todos os dias depois da primeira ronda de venda pelas freguesas dos quarteirões vizinhos,  abria as pernas aliviava-se e sempre com a cesta à cabeça agarrava a saia com ambas as mãos e limpava a fonte e o escorredouro das suas necessidades líquidas,  o menino nunca percebeu porque é que a cega só vendia alfaces e não as apregoava se calhar era muda enquanto que a preta  vendia todas as verduras da horta e gritava com a sua voz de corneta “ -  Oh freguesa o meu grelo é tão fresquinho!”.

Os rapazecos do beco jogavam à bola e diziam palavras feias e as suas irmãs penteadas e de laçarote lançavam o ringue longe deles para não os ouvirem e não empoeirarem os vestidos que exibiam as únicas flores do cenário; acontecia mas de raro uma zaragata entre mulheres que se resumia a uma ofensa esganiçada com as mãos nas ancas e uma sonoras palmadas no próprio traseiro para reforçar conceitos um puxão de cabelos mas isso uma vez por ano, rixas de homens nunca porque o Nove Dedos que era o Chefe da Polícia da Lapa tinha fama de violento e resolvia essas coisas à porrada no recato dos calabouços da sua esquadra e ao abrigo da autoridade que a Lei lhe conferia e casos desses eram para ele uma chatice pois só queria viver pacatamente com a sua Família com o seu ordenado de agente da ordem e dos proventos que arrecadava da sua actividade de gestor de duas ou três casas de tolerância que eram as mais recomendadas pois que as suas meninas passavam todas as semanas a inspecção sanitária nas Francesinhas, a ordem e o respeito da Lei eram sagradas e ele estava ali para isso.
O Macaco e o Sacalhoa dois já espigadotes com idade para trabalhar mas que apareciam por ali regularmente a fumar a sua beata e a avaliar o ambiente com as mãos nos bolsos das calças eram personagens que povoavam o cenário do menino e os únicos que lhe provocavam um certo temor não gostando nada de se cruzar com eles pela rua quando a Mãe o mandava à padaria do enfarinhado Sr. Branco ou à leitaria do gordo Bebe Leite mas era um medo seu sem uma razão; naquele dia um dos operários que mudara de roupa de manhã cedo no barracão para ir para a obra regressando ao cair da tarde deu pela falta do relógio que tinha deixado no bolso das calças e pelo ruído de vozes alteradas que subiram até à janela do menino este ocupou o seu posto de observação e percebeu que a coisa desta vez era séria com o queixoso a acusar de furto a torto e a direito começando pela mulher do fadista e menos mal que o marido não saltou a terreiro para a defender já que tinha de dormir e além disso não se metia com gente daquela, era um artista, ela jurava pela alma da mãezinha que Deus tem que não era uma ladra nunca tinha mexido nem com as pontas dos dedos em nada que não fosse dela, o Tarolo avisou logo “ - Não olhes para mim com essa cara porque senão quando menos esperares estás de perna a pino e a contar os dentes no chão” -, o mulherio juntou-se a criançada aumentava a confusão começava-se a tomar partido e a lançar bitaites, o Escarrador veio à janela sem cuspir não era hora, o Sargeta não deu acordo de si entretido que estava a abrir malhetes numa gaveta ou a ensinar truques da sua especialidade a um 1º Cabo de Preboste, a Cabeça de Avião andava na lida fora e a sua Assunção aproveitando a ausência da mãe estava no pombal a namorar, chama-lhe namorar, e todos juravam a pés juntos não ter visto nada nem ninguém estranho a rodar pelo beco pelo que o cerco se apertava aos habitantes do barracão e a pobre mulher já chorava baba e ranho de todo o tamanho quando chegou a viatura da esquadra da Lapa “ - Vamos mas é a circular não queremos aqui curiosos hoje não há robertos tira mas é cá para fora o que é que aconteceu e quem é que pensas que foi que isto resolve-se depressa” -, e o roubado esbracejava explicando tudo tintim por tintim, repetia a marca e o preço do seu querido relógio de dois em dois minutos, os agentes entravam e saiam do barracão perscrutavam o olhar dos suspeitos e vendo que não tinham mais nada ali a fazer embarcaram o queixoso e toca para a esquadra para lavrar os autos.
Estranhamente as janelas das traseiras das casas das famílias remediadas do Moínho de Vento permaneceram todas fechadas, os polícias bem olhavam para cima para ver se alguém teria visto alguma coisa mas as pessoas ou não estavam em casa ou estavam a espreitar por detrás das cortinas porque isto não é para eles e até parecia mal estarem a ligar às tricas daquela gentalha do beco, a Mãe mandou o menino fechar a janela não fosse o diabo tecê-las não é nada connosco “ - Esta gente está sempre a arranjar sarilhos, vai fazer os trabalhos da escola e amanhã não fales disto com os teus colegas podem pensar que vives não sei onde nalgum bairro da lata e depois riem-se de ti e põem-te de parte ainda vão contar ao Irmão João a história toda e depois podes ser tomado de ponta e começarem a embirrar contigo não quero que deixes de ter boas notas” -.
Dizem os Jesuítas que se lhes entregarem uma criança nos primeiros anos eles garantem saber qual vai ser o seu comportamento durante todo o resto da vida e o menino que não estava nas mãos dos Jesuítas mas tinha a aproximação já começava a dar razão a essa convicção clerical tanto que tendo uma vez ao regressar da escola tido a tentação de tirar uma castanha de um saco que estava à porta de uma mercearia dormiu mal nessa noite passou a andar de monco caído que até a Mãe lhe perguntara “ - O que é que tens, aconteceu-te alguma coisa?” - mas o menino respondia que não que não era nada mas logo no domingo seguinte se pôs na fila de um confessionário na Basílica da Estrela e chegada a sua vez depois dos ritos preambulares deitou fora o sapo que o engasgava, “ - Roubei uma castanha a um comerciante” - que até o padre confessor se deve ter rido para dentro por tão pouco e lá lhe deu umas Salvé Raínhas de penitência e o menino foi ouvir a missa com uma leveza recuperada e até brincou no adro durante o santo sacrifício da saída da missa fartando-se de rir com os irmãos e as primas.
No outro dia o menino ao voltar da escola à hora de almoço achou estranho estar a porta da rua entreaberta, empurrou-a e teve a presença de espírito, que nem ele próprio soube onde foi buscar tanto sangue frio, de fingir que não viu que o Macaco e o Sacalhoa  estavam escondidos atrás da porta no escuro da escada a dar corda a um relógio tendo ambos desandado mal o menino subiu a escada de dois em dois e só respirou quando a Mãe lhe abriu a porta e ele a empurrou “ -  Fecha a porta Mãe, está cá o Pai? – “ -  Mas o que é que aconteceu que parece que viste bicho? “ -, mas bicho e bravo parecia o coração do menino que batia descompassadamente mesmo depois que fez um urgente xixi que se não chega tão depressa à sanita tinha feito nos calções e ele sabia a vergonha que isso era pois já lhe acontecera uma vez num carro eléctrico quando voltava a casa da Tapadinha um domingo que fora com o Pai ver um Atlético-Benfica no tempo de Ben David e do Julinho,  e já mais calmo contou tudo ao Pai  “ -  Vi,  tenho a certeza,  o Macaco e o  Sacalhoa a darem   corda a um relógio atrás da porta da rua mas acho que eles não viram  que eu  vi mas tenho  medo do que é que  eles  me podem fazer se desconfiam que eu os vi e me apanham na rua, tenho medo Pai!” -, “ - Não deixes o menino ir à escola esta tarde dizes para lá que ele chegou a casa com um febrão, está descansada que eu trato disso “ -, e o menino ficou tranquilo porque o Pai resolvia sempre tudo mesmo a coisa mais complicada e até adormeceu depois do almoço não se esquecendo de fechar as portadas de madeira das janelas do quarto.
À noite o Pai voltou e disse à Mãe “ - Está tranquila que fui falar com o Nove Dedos contei-lhe a coisa à minha maneira e amanhã já ele pode ir à escola porque os gandulos já esta noite vão dormir à esquadra e não queria estar-lhes na pele” -,  o menino não fez perguntas jantou e dormiu tranquilo porque quando o Pai dizia uma coisa ele acreditava  e adormeceu até um pouco orgulhoso de ter contribuído a repor aquilo que lhe tinham ensinado em casa e na escola que o bem é o bem que o mal é o mal e que quem faz bem tem de ser premiado e quem faz mal tem de sofrer o castigo embora seja bizarro que nunca tenha esquecido até hoje os nomes dos gandulos que de vez em quando afloram como post-its  de cor viva à sua  memória cada vez mais fugidia. Se o menino soubesse…
Lisboa, 3 de Abril de 2014
Octávio Santos
a)     Título digno de um filme de Lina Wertmuller, sem qualquer alusão, Deus me livre, àquilo que se passa hoje em Portugal.