quinta-feira, 17 de abril de 2014

Escrita criativa de um menino em liberdade condicional com tempo para escrever uma carta de amor, não sabendo se terá coragem para a remeter ao destinatário.

Quando a camioneta dos Clara parou resfolegante à porta do edifício térreo da Quinta da Aviação que dava para a estrada real e era como que o escritório da Casa Anjos Grosa, a maior casa agrícola do Concelho do Cadamonte, e o menino desceu com a mala da roupa e o corpo moído pelo desconforto dos bancos da Magirus, já a carroça puxada pela Carriça - e não é jogo de palavras – lá estava à sua espera e o Absalão largou as rédeas, desceu e ajudou os menino a subir, ajeitou a mala não fosse ela cair com os balanços na esburacada estrada de macadame e começou a trepar aquilo que já eram as faldas da Serra de Vales Separados em direcção à casa da Avó na aldeia/beco da Albardeira onde o menino iria passar as férias grandes com a certeza de ir ser livre e bem tratado por todos. – Vamos que a Ti Misericórdia já deve estar em pulgas, matou o galo e mandou a Hortense arejar e reforçar os capelos do colchão que ficou inchado como uma porca cheia. A dureza da carroça que lhe fazia o rabo saltar na tábua onde ia sentado ao lado do Absalão era compensada pela aragem que lhe batia na cara, pelo cadenciado toc-toc dos cascos bem ferrados da velha mula e pelo acender das estrelas num céu azul escuro, já que anoitecia, e se os 4 quilómetros a percorrer fossem 10 ou 20 o menino teria adormecido sentado, na paz do crepúsculo e do Senhor.

Passadas as aldeias de Fenais (terra da Avó), Vila Velha e Serena, galgada a última rampa e atravessado o largo da aldeia onde acorreram todos para saudar, abraçar e beijar o menino arrancado à força da carroça que parara à ordem de um Aíoh! Já o portão da cerca estava aberto e a Ti Misericórdia com as mãos escondidas no regaço à espera do neto visivelmente contrariada por não ter sido a primeira a pegar-lhe ao colo. – Veio sozinho não é costume, querem ver que puseram a criança ao almazio, disse alguém que se afastava da cena para recolher a penates onde a ceia e a cama o esperavam como todas as noites durante todo o arco do ano, que amanhã é dia de trabalho e o corpo ainda não se recompôs do da véspera.
Já nos braços da Avó, a parte chata era o interrogatório sobre os Pais, os manos, a escola, o estado de saúde de todos e as afirmações tipo, o que tu crescestes neste meses, e a parte boa, o enfardar a canjinha (sem letras), os melhores pedaços do galo, as batatas afogadas naquele molho vermelho e gostoso, as azeitonas, o pão quente acabado de sair do forno, a boleca de chouriço feita expressamente para ele, a laranjada comprada na loja do Zé Outono porque não tens ainda idade para água-pé quanto mais vinho, e o menino lá ia comendo,  ouvindo,  respondendo e aceitando festas e beijos dos mais chegados que iam entrando na casa do forno para ver aquele menino acabado de chegar de Lisboa, como se tivesse colado a si qualquer coisa de especial e sonhado vindo da capital. - Coitadinho, depois da canseira da viagem deve estar mortinho para ir para vale de lençóis, e estava, para descansar o corpo naquele cheirinho de roupa lavada no tanque  com sabão azul e branco e seca ao Sol,   mas sobretudo para sonhar com tudo o que iria fazer amanhã e durante todos os dias daqueles 3 longos meses de férias que tinham naquele momento uma duração que o menino sentia  próxima da eternidade.
O dia começava sempre mal com a Avó Antónia, que não era Avó mas Bisavó, e tão velha de ter para contar histórias passadas em casas solarengas de Senhoras de alta linhagem que frequentavam a corte da Raínha Senhora D. Amélia, e começava mal porque era ela a encarregada de fazer o menino engolir uma pratada de sopas de leite, rito odiado e origem de grandes dramas causados pelos farrapos de nata que faziam o menino vomitar tudo no canteiro da dálias ou no rincão das cenouras. Para ouvi-la novamente contar histórias da Senhoras do Fetal ou do António dos Santos da Avó, menino da roda que serviu anos a fio na sua casa, juro que emborcava um alguidar de sopas de leite sem pestanejar, nem que um lençol de natas me desse volta ao gorgomilo.
Depois era a liberdade de apanhar cerejas, nêsperas ou rainhas cláudias – o menino nunca gostou de figos - em cima das árvores e cuspir os caroços para as leivas duras do chão, ir à horta do Dentolas, no caminho do Talude Quente, apanhar rãs que nem sempre tinham um futuro feliz, pegar na flaubert de 12 mm e ir aos pássaros: - Tão engraçado, tão pequenino e já me chega a casa com o cinto cheio, até já me trouxe um melro, um gaio e até uma rola! como me arrependo hoje e ponho-me a pensar  se era necessário fazer o mal para o distinguir do bem,  mas foi assim, não tenho culpa que Deus me tivesse concedido o livre arbítrio, e o menino que confessou ter roubado uma castanha de um saco à porta de uma mercearia nunca falou a ninguém das 3 dezenas de andorinhas - as galinhas de Nossa Senhora - que lhe serviram de alvo num dia de loucura em que o tal livre arbítrio foi muito mal utilizado a experimentar a pressão de ar que o Pai lhe oferecera,  correr pelos campos só pelo prazer de sentir o vento na cara,  descer aos riachos para ouvir a água a correr  e ir à azenha só pelo rumor da roda a chiar e apanhar agriões para a salada,  pedir emprestada a pasteleira ao Absalão,  grande demais para ele,  para descer a estrada até  Serena e  passar em frente da loja do Zé Outono que tinha uma filha com os olhos bonitos  e regressar a empurrá-la pela ladeira acima por não ter canetas para tanto,  muitas vezes com os joelhos esfolados,  convencer a Avó a arrear a Carriça com albarda e  cabeção  e sair a galope até Cadamonte,  a ouvir o martelar das ferraduras no alcatrão da estrada real,  voltando depois de ter emborcado 3 cervejas  sentado numa das 3 mesas da esplanada do Café Cravo para armar em homem.
E na cama à noite depois de jantar, porque fora dia de vir o peixeiro de Peniche, chicharros alanhados a 5 tostões o par com batatas cozidas com casca e uma cebola, e do duche na casinha do banho com o balde cheio de água quente ao Sol durante o dia, o menino adormecia tranquilo e feliz depois que a Avó lhe aconchegara lençóis e cobertores e desejado as boas noites, porque no outro dia chegavam os irmãos e as primas com toda a família na Fordson do Pai que tinha os lugares que se quisesse que tivesse e era a percursora dos monovolumes tão de moda hoje, mas atenção que se no livrete diz 7 lugares sentados a GNR multa-te se levares 8, uma seca. De manhã levantou-se cedo, repetiu-se a tortura das sopas de leite que naquele dia lhe pareceu mais leve e não se afastou muito da cerca nem para ir ao pinhal do Ti Carlos apanhar um boné de pinhões debaixo da copa do pinheiro manso e ficou ali a balançar-se no baloiço da nogueira a ver o Absalão tratar da horta e a ouvir o Canhamanga a ralhar com a mulher para lá do muro e ao longe a Elvira Velha a morrer deitada no seu catre que gritava pelo marido que andava à jorna: - Oh Jcisco! Oh Jcisco!   A Avó tinha mandado a Hortense matar dois coelhos: - Vê lá aqueles grandes que estão separados na coelheira de baixo, não aquele que está na de cima com a coelha para a cobrir, e na casa do forno era já azáfama de dia de festa, com a mesa a pôr-se, os coelhos no tacho a refogarem e a sopa de abóbora cú de mulher a apurar na panela com tudo aquilo que a horta dava para a sopa que não havia outra mais saborosa.
Foi então o menino sentar-se numa pedra no alto da ladeira… - pára aí porque isto já tu escreveste no texto da semana passada e aqui tens de fazer uma pausa para contares o que não está ainda contado. Vamos lá então pôr ordem nas coisas porque senão ninguém se entende!
A vedeta da comitiva familiar, a chegar de um momento para o outro, era o meu irmão pequenino ao qual eram reservadas as maiores atenções não só porque era o último chegado mas também porque era realmente dos três irmãos o mais bonito de todos. Dir-se-ia que os Pais tinham posto todo o seu empenho neste terceiro após o notório fracasso com o segundo. E o segundo, ou seja, eu, que já me metia na adega do Dentolas para beber uma água-pé às escondidas da Avó, secava 3 imperiais no café da Vila e pedia um copo de três tintos na loja do Zé Outono para que os olhos da filha vissem que havia ali alicerce de macho, não podia dar muita importância ao pirralho para não alinhar com a maioria. Mas, relembrando um episódio de então, quanto me arrependo deste meu falso despreendimento e quanto tenho vontade de agora lhe contar tudo, mas as palavras nem sempre nos saem da boca nos momentos certos, ficando a martelar-nos no cérebro como despertadores da consciência e, empurrado pela última lição de Escrita Criativa que tratou de “Género Epistolar”, vou terminar este texto com uma carta que não tem nada de ficcional como as cartas das 3 Marias que não tinham destinatário certo, mas que se dirige a um interlocutor bem preciso, mais ao estilo daquelas que Soror Mariana Alcoforado escreveu da sua cela de convento em Beja ao Cavaleiro de Chamilly, sendo portanto uma carta de amor. 

Meu querido irmãozinho,
Quando eras pequenino e começavas a chorar, abrias a boca e depois do sonoro berro inicial deixavas de respirar e ficavas assim um tempo infinito, cada vez mais vermelho, com todos à tua volta a tomarem iniciativas que achavam adequadas para que tudo voltasse à normalidade que só se restabelecia após um ruidoso respiro fundo seguido de um novo berro, e aí vá de todos a apaparicar o bebé que mais uma vez “se tinha ido pelo fôlego” designação “técnica” dada ao fenómeno. Eu, nesses momentos, como em todos os outros que punham em questão as certezas da minha vida, não ficava, fugia. E, naquele dia em que repetiste a gracinha na casa de fora da casa da Avó, eu desci de quatro em quatro os degraus de pedra da escada das glicínias e corri pelo caminho da horta até chegar à casa do motor, e lembro-me de, aterrorizado por não ter ainda ouvido o grito liberatório, me ter sentado no chão encostado ao maracujá que crescia entre o tanque e a casota, a rezar ou simplesmente a fazer força para que aquele insuportável silêncio fosse quebrado, e durante aquele espaço de tempo, para mim infinito, sofria uma dor que só hoje sei quantificar. Dor que só passava com a corneta dos teus pulmões a anunciar que estavas ali outra vez. Aí, levantei-me, senti nas costas a camisa molhada – agora a Mãe vai-me ralhar porque as nódoas de maracujá não saem nem com lixívia – desci calmamente a estradinha da horta e voltei para ao pé de todos como se nada se tivesse passado.
As pessoas não se amam porque são iguais, e a prova é que entre aqueles que fogem e aqueles que ficam, categorias que mais diferentes não existem, pode prevalecer um sentimento profundo inversamente proporcional às concepções de vida e aos caminhos a percorrer para ser fiel a essas directivas que, no meu caso, me atrevo a considerar compulsivas. Mais ainda quando um respeito mútuo faz com que os que fogem admirem os que têm a coragem de ficar, e os que ficam nada façam para contrariar a fuga, embora no nosso caso, meu querido irmãozinho, eu não possa, viva eu tantos anos como aqueles que tens ainda para viver, esquecer que, pressentindo tu que a minha fuga iria acabar mal sem um passo à retaguarda para encher os alforges de provisões de amor para aguentar o resto da jornada, me chamaste à pedra e, mostrando-me a grande falha do meu percurso, me ofereceste delicadamente ocasião para num só dia recuperar o perdido de três lustros. Um milagre! Mas, para mim, anjos que me aparecem a indicar a estrada justa e milagres que me acontecem para que as dores não ultrapassem aquelas comezinhas quotidianas, fazem parte de um trivial que eu arrogantemente tomo como a normalidade da minha existência. Um desses milagres é o de nunca me ter acontecido ser obrigado a chorar a perda de alguém fora da cadência normal da existência, o que, cumprindo os desígnios de Deus, minimiza a dor porque ver partir uma Bisavó antes de uma Avó, os Avós antes dos Pais, e os mais velhos antes dos mais novos, são coisas naturais que, embora te desgostem, aceitas por inevitáveis.
Como os anjos continuarão a aparecer-me e a tomar conta de mim, e os milagres, não porque eu mereça, não deixarão agora de se revelar, não podia deixar escapar esta ocasião para te dizer, antes que eu empreenda a minha última e definitiva fuga, naturalmente antes de ti visto os 8 anos que nos separam, que te amo por seres o meu irmão pequenino, pelas minhas obrigações falhadas que fizeste tuas, e sobretudo pelo exemplo que deste e continuarás a dar a todos. Como facilito tudo e aproveito sempre as ocasiões mais favoráveis para dizer coisas, foi-me fácil escrever-te esta carta de amor porque tenho a certeza que não repetirás tão cedo a gracinha de “te ires pelo fôlego”.

Com todo o meu amor.

Teu irmão Octávio 

Lisboa, 17 de Abril de 2014
Octávio Santos