quinta-feira, 24 de abril de 2014

25 de Abril - Os seus primeiros 40 anos.

Não vos admire o título porque foi mesmo isso que eu quis escrever. É ainda muito jovem para se saber o que vai dar. A Revolução Francesa, que começou idealmente no dia 14 de Julho de 1789 com a tomada da Bastilha (Caxias lá do sítio), e completa por isso 225 anos, ainda não assentou todas as ideias e um dia se dará conta da sua enorme importância. Só que nós portugueses, e alguém já o disse – porque não houve cão nem gato que não tivesse dito coisas sobre a data de amanhã -, queremos  sempre tudo muito depressa. Já,  e na hora!  Depois do 25 de Abril houve o 11 de Março e o 25 de Novembro, e antes houvera o 16 de Março, datas e datazinhas de somenos importância, tudo ali a vinte meses de distância. O 18 do Brumário foi em 1799, 11 anos depois da Revolução, e trouxe consigo o Consulado Napoleónico e o Império, adiando a desejada e preconizada democracia por quinze anos e 100 dias. Nós quisemos logo a democracia no 1º de Maio, e, a que temos, dura até hoje, embora o nosso 18 do Brumário esteja por aí à espreita, já se vislumbrando alguns sintomas, só que, no nosso caso, para durar muito mais e gostava muito de estar enganado.

E como já se disse tudo sobre o 25 de Abril e pouco ou nada resta para dizer, apetece-me relembrar o que uma figura grada desta nação, tão grada que influencia a justiça e enternece as finanças, o Dr. Jardim Gonçalves, disse, e dizendo, teve audiência nos jornais:
- Penso que o tema 25 de Abril está acabado, já teve o seu momento.

- Quem domina os bancos chega a todo o lado.
E isto dito por alguém que, após dominar um banco que chegou a ter 17 sociedades em paraísos fiscais, tem ainda força para fazer prescrever várias contra-ordenações imputadas pelo Banco de Portugal e pela CMVI e reduzir para metade uma multazita de 1 milhão de euros, não pode cair em saco roto, nem podemos assobiar para o lado e fingirmos que não tem importância. Porque é exactamente isto que tem importância e que, na impossibilidade de negar a existência da data que festejamos, a esvazia do seu significado e nos tira a esperança que os seus pressupostos sejam concretizados.

Valeu a pena? Perguntou o Dr. Balsemão aos três Presidentes eleitos da nossa democracia, e todos disseram que sim, que tinha valido a pena, tendo cada um contado partes da história à sua maneira, sendo unânimes no dizer que valeu a pena, mas… E aqui dois conceitos se perfilam frente a frente, como dois pistoleiros saídos de um western-spaghetti de Sergio Leone, ambos respeitáveis e impolutos mas defendendo campos opostos e inconciliáveis. Medina Carreira olhando friamente o “adversário” nos olhos, afirma, rendido ao 18 do Brumário: - Um país de pelintras não se pode permitir devaneios! Carlos Fiolhais, olhar doce, cândido e infantil, com a força hercúlea de quem acredita na utopia, replica: Eu sou um pelintra que me permito ter devaneios!
Para mim, que quero ter devaneios, também acho que valeu a pena, e as razões são tão claras e à vista de todos que, se não fosse tudo aquilo que neste momento nos ameaça, seria estultícia repeti-lo. Mas infelizmente não o é, e eu, que festejei há pouco os meus primeiros 70 anos, faço-o porque tendo já 30 no dia 25 de Abril de 1974, vi tudo com estes dois que a terra há-de comer. E o que é que eu vi?

Vi, por trás das cortinas, uma ramona parada à porta do meu prédio, a meio da noite, para arrancar ao sono o vizinho de cima, a mulher aos gritos. Quando voltou, semanas depois, tinha os cabelos brancos, usava uma bengala e não olhava os vizinhos nos olhos, quem sabe se por vergonha de ter razão. Vi, em Idanha-a-Nova, uma mulher com um filho descalço a comer meio pão com uma sardinha, que beliscava para levar, ora à sua boca ora à da criança, os pedacinhos de peixe arrancados com as unhas. Vi os malteses a chegarem de longe para as vindimas deitarem os corpos cansados na “cama” que lhes fora reservada no palheiro ao lado dos currais dos animais, para no outro dia pegarem no trabalho ao nascer do Sol para o largarem no ocaso, por 18 escudos para os homens e 14 para as mulheres. Vi emigrantes desertores a rondar a porta dos Consulados, mandando emissários a informarem-se a medo se era possível obterem os papéis necessários para a Carte de Travail, e o seu ar de felicidade e espanto quando descobriam que o Consulado nada sabia sobre eles querendo apenas arrecadar o dinheiro dos emolumentos devidos, a maior parte das vezes em dobro com a desculpa que os papéis eram preparados fora das horas de serviço por excesso de trabalho acumulado. Vi as autoridades portuguesas e francesas encerrarem o último bidonville, em Champigny-sur-Marne, onde, semanas antes, num incêndio, tinham morrido 5 crianças. Vi o Reitor do Liceu de Oeiras aterrorizado por não ter comunicado superiormente uma falta colectiva a um ponto (hoje diz-se teste) de matemática, limitando-se a dar uma descompostura e a suspender por um dia os “grevistas”  com a ameaça de sanções mais duras. Vi, todos os dias, na primeira página dos jornais uma espécie de carimbo “Visado pela Comissão de Censura”.  Vi o automatismo de baixar a voz em casa quando se falava de “certas coisas”.  As paredes terem ouvidos só se materializou quando, anos mais tarde, vi uma deputada do PSOE rasgar o papel de parede do seu quarto num hotel em Sófia para nos mostrar um minúsculo captador de som. Desculpem este desvio. Vi a Avenida da República a ser destruída na sua incomparável arquitectura - que inveja de Barcelona! -, porque um arquitecto filho de alguém resolveu ganhar dinheiro tendo dado “ordem” para autorizar tudo aos chamados “patos bravos” que lhe encheram os bolsos. Vi o Dr. Abel Silva, antes de sair da Travessa do Moínho de Vento, 23, 1º, onde esteve escondido duas ou três semanas depois das eleições de 1948, aquelas do General Norton de Matos, a espreitar pela janela para se certificar se não havia pessoas suspeitas a rondar. Vi um menino a ter de mudar-se três meses com toda a Família para casa de um amigo do Pai que vivia no Porto, sempre no rescaldo das eleições de 1948. Vi estudantes de bata branca, porque tinham tido laboratório de química naquele dia, a falarem alto e a fazerem tropelias próprias da sua idade na Rua do Arsenal, a terem de fugir, cada um para seu lado, diante de uns senhores à paisana que acharam que aquilo era tudo menos inocente. Vi, com a sorte de nunca ter de verter uma lágrima, chegar ao Cais da Rocha do Conde de Óbidos, o paquete Funchal cheio de caixões; soubemos depois que foram cerca de 19 mil em 13 anos. Vi tantas coisas, se calhar mais importantes, significativas e dolorosas que estas que digo ter visto, mas eu sou assim, ligo mais ao acessório que ao essencial, e também não estou a escrever um romance; apenas o texto de hoje para o meu blogue.
Valeu a pena? E sem querer esconder o PREC e o COPCON, as “legítimas” ordens de captura assinadas em branco por quem fez uma revolução para restabelecer a legalidade, as ocupações de terras e fábricas, a tentativa de sovietização, o drama dos retornados, a degradação do ensino, o nacionalizado nosso, o povo unido jamais será vencido, a aliança Povo/MFA, e tantas mas tantas outras coisas, afirmo que valeu a pena pelo simples facto de eu estar a escrever estas coisas sem qualquer medo. O que não quer dizer que hoje todos digam ou escrevam o que lhes vai na alma, e isto porque têm medo, não de ir cravar com os ossos na António Maria Cardoso, mas de perder o trabalho ou o emprego. A mim o mais que me podem fazer é aumentarem-me o CES porque não sou magistrado. Ah!, e também porque posso ir ao Porto ou ao Algarve em duas horas e meia em vez de levar um dia inteiro;  porque posso esperar viver até aos 80 em vez de 60. E por outras coisas que não quero nomear porque as estamos a perder e temo que falar delas possa acelerar o seu processo de decomposição, mas não resisto em fazer uma lista de palavras e frases ao acaso só porque me vêm à cabeça. Palavras que não incluirão quatro delas que eram pilares da ditadura e que hoje felizmente foram banidas do léxico e às quais foi retirada toda a sua importância e substância, caindo em desuso democrático: Família, Fátima, Fado e Futebol. Desculpem mas estava a gozar, com excepção da Família. E, como na atribuição dos Óscares, and the winner is, as palavras e as frases são:
 
- Liga dos ex-Amigos de Boliqueime, sucateiros, privacy, bancos, Big Brother (Orwell e Casa dos Segredos), auto-censura, Jotas, taxas moderadoras, golden visa, Face Oculta (não me refiro à burka), nepotismo, UE, justiça, placa roubada na António Maria Cardoso, universidades, Meco, Sociedades de Advogados, BPP (dinheiro a render no Rendeiro), Camarate, genéricos, corrupção, desemprego, Apito Dourado, hospitais, submarinos, prescrição, Casa Pia, santa aliança cortiça/diamantes, Agências de Rating, privatizações, PPP’s, PP (novo dicionário), troyka, Freeport, conflito de interesses, BPN/BCI, emigração económica, fome, Confraria da Cereja, a fractura da sorte (factura pedida a um ortopedista que te faz ganhar um Audi A6), Portucale.

Desculpem se não me lembro de mais, só para não vos aborrecer, mas devo fazer uma última confissão: na ânsia de fazer um texto de jeito formulei à esquerda e à direita a pergunta do Balsemão. Valeu a pena? E a melhor resposta foi: - Sabe o que é que definitivamente não mudou com o 25? A estupidez e a mesquinhez das pessoas.

Lisboa, 24 de Abril de 2014
Octávio Santos