quinta-feira, 1 de maio de 2014

Escrita Criativa I


Na semana passada interrompi os meus textos sobre Escrita Criativa  para pagar portagem aos 40 anos do 25 de Abril, já que tendo todos escrito sobre esse tema eu não poderia ficar atrás. Mas arrependi-me porque o que eu disse não acrescentou nada àquilo que foi mal dito por uns, nem preencheu o vazio do que não foi bem dito por outros. Porque uns houve que lançaram com honestidade uma maldição sobre a efeméride, outros a cobriram com uma bênção hipócrita, e sobre a data a festejar só ficámos a saber que foi maldita ou bendita conforme as actuais conveniências da maioria dos escribas, dado que poucos se pronunciaram sem se colocarem no seu epicentro. Por isso, eu que distribuo mais facilmente anátemas que unções, fiquei-me pela ambiguidade que não me comprometeu nem com a verdade nem com a mentira, e  daí  o meu arrependimento. Agora voltemos à Escrita Criativa, terreno onde me movo mais à vontade, tanto mais que a tentação de escrever sobre a data de hoje, 1º de Maio, não voltou a assaltar-me após um  texto que escrevi em 2009 para o “AICEP Notícias”, boletim interno da AICEP, "Do vale das rosas ao vale de lágrimas" posteriormente publicado no meu primeiro livro “Hieróglifos Órfãos de Roseta”.


A Culturgest realizou um pequeno curso de Escrita Criativa em quatro sessões, e eu, convencido que se pode aprender sempre, lá fui cheio de curiosidade e vontade de fazer bem. A primeira sessão foi no dia 21 de Março e lá estavam, a responsável Carlota Gonçalves e mais 18 pessoas interessadas como eu, em saber como tudo se iria passar, e a Carlota, depois de nos dar as boas vindas, explicou-nos que iríamos escolher à sorte uma das obras do artista Pedro Casqueiro que fazem parte da exposição Marginalia, que está patente na Culturgest desde 14 de Fevereiro até 11 de Maio, observar bem aquela que nos calharia na rifa, e escrever sobre ela um texto à maneira surrealista, tendo, para isso, cerca de 45 minutos.

A mim tocou-me a obra intitulada “Punishing Piece, 1994”, que era um “acrílico e serigrafia sobre tampo de mesa”. Fotografei mentalmente a obra em todos os seus pormenores, pensei em Cesariny, O’Neil, França e Almada, sentei-me e escrevi o texto que segue abaixo *, não sem vos deixar algumas chaves de leitura para uma melhor compreensão do mesmo. Assim:

- Ao olhar para a “ minha” obra de arte e para todas as outras que faziam parte da exposição, lembrei-me do episódio verdadeiro da senhora da limpeza do Museu de Bari que descrevi no meu texto de 27 de Fevereiro sobre ARTE e arte;
- No seu romance “Os Adoradores do Sol”, Fernando Namora fala, no capítulo IX, página 116, de um pintor, dizendo-o vindo da Inglaterra, que viveu algum tempo com uma companheira num casebre em Monsanto, onde Namora exerceu medicina durante alguns anos. Por coincidência, entrei anos mais tarde naquele casebre, olhei em volta, havia somente uma mesa de cozinha e encostada a uma das suas pernas, um retângulo de platex com, pintada, uma natureza morta – um canjirão e umas malgas – em muito mau estado, mas que ainda hoje conservo apesar de ser aquilo a que os franceses chamam uma croûte. Perguntei pelo pintor descrito sumariamente pelo grande escritor, e foi-me dito que era um jovem americano fugido à Guerra do Vietnam, que ali aportou um dia com uma companheira e ali viveu, pintando e vendendo as suas obras a turistas, e assim como apareceu também desapareceu sem deixar rasto. Nem o seu nome me souberam dizer, e foi essa lembrança que me fez falar dele no texto;
- A ideia das tábuas roubadas à Passarola de Frei Bartolomeu de Gusmão foi só um flash provocado pelo facto de passar muito tempo com a minha mão direita sobre o tapete do meu rato que reproduz em mosaico a dita Passarola. Pensando melhor, à posteriori, não sei se liguei o falhanço da geringonça diante do Rei que representava a Nação, à “traição” do pintor diante de um Presidente que deveria representar a Pátria;
- Referi o “faraónico palácio” onde estava a escrever, relacionando-o com a actual crise e a sua origem, tentativa de imposição de um ultra liberalismo económico – para o qual o homem deixaria de ser o alfa e o ómega -, a que eu chamei freenança na poesia “Trocadilho da Treta” publicada no volume “Manifesto Anti-Crise”. Frequentando ultimamente o IPOFGL, veio-me a ideia peregrina de pensar se o dinheiro empregue na construção do “faraónico palácio” não teria sido mais bem empregue em Palhavã, tanto mais que agora sabemos que um outro banco vai ser criado para cumprir funções que pertenceriam ao prestigioso hóspede do “faraónico palácio”.  Só esperamos por um sobressalto de vergonha que impeça a construção de um outro “faraónico palácio” para a nova e indispensável instituição bancária.
E nada mais, pedindo desculpa pela repetição de “faraónico palácio” que foi intencional como contributo para tornar possível o tal sobressalto de vergonha, que também peço desculpa de repetir.
*Texto que inspirou a forma e o ritmo daquele outro intitulado “Escrita criativa com massa de letrinhas na borda do prato fundo da canja”, editado em 27 de Março. 
Culturgest
Fundação Caixa Geral de Depósitos 
Escrita criativa
21 de Março de 2014
Exposição Marginalia de Pedro Casqueiro
 Obra (na imagem):
Punishing Piece 1994
Acrílico e serigrafia sobre tampo de mesa
Colecção particular 
Entrar na Marginalia do Pedro Casqueiro sem a missão de cumprir um dever como fez a mulher da limpeza que deitou para o lixo 5 das 40 obras de uma instalação em Bari é sentir-se atraído pela única coisa viva na sala o olho azul que com ar brincalhão para ver quem está ou não com cara de parvo ou de boca aberta a olhar para aquilo tudo que é “arte” e o olho leva a olhar a parede oposta onde 5 tábuas 5 juntas com cola e se calhar pregos nos costados para se manterem unidas e levarem em cima com meio quilo de uma papa cor de ranho para esconder os veios naturais da madeira dando uma unidade de tampo de mesa de cozinha pobre do interior das aldeias podia mesmo ser da aldeia mais portuguesa de Portugal Monsanto na casa onde o pintor fugido à guerra do Vietnam pintava sobre ela só a preto e azuis que são as únicas cores e não cores que violam a monotonia do ranho que recordo tapa ou quase tapa 9 dos 16 furos redondinhos que as tábuas sofreram vamos lá a saber se quando eram solteiras ou já casadas com cola e pregos umas às outras para servirem para apoiar pratos pão vinho e talheres enquanto mesa de cozinha ou tintas e pincéis e trapos para os limpar quando a sua serventia era a arte do americano traidor da pátria que preferiu pintar na serra que apertar gatilhos na humidade da selva da Indochina que provocariam buracos na pele e nas entranhas de gente como ele mas amarelados e com os olhos em amêndoa sendo plausível por esta reflexão que tivesse sido ele a fazer os 16 buracos no tampo da mesa já que tinha sido programado para esburacar fosse o que fosse e com receio de ver sair sangue que violaria o preto e os azuis da sua mesa tapou 9 deles com os restos do ranho seco sempre com medo que a sua clandestinidade o seu dever de não estar ali e a sensação de se dedicar a um trabalho não seu acrescido tudo isto à feia acção de ter roubado as tábuas a uma réplica da Passarola de Frei Bartolomeu de Gusmão para as fazer voar vingando o original que parece não ter alçado voo para Rei ver mas que voa agora junto com outras ousadias artísticas ao redor de uma sala do mais faraónico palácio que alguém jamais ousou plantar no centro de Lisboa e voa voa voa com as outras companheiras como morcegos que entrassem sem password no reino da freenança mostrando que sendo ou não arte aceite por Da Vinci, Michelangelo, Caravaggio ou Raffaello são menos tóxicas e perniciosas que outras obras que voam e perigosamente saem do palácio.
Lisboa, 1 de Maio de 2014
Octávio Carmo de Oliveira Santos