quinta-feira, 8 de maio de 2014

Escrita criativa II


Desta vez a Carlota avisou-nos logo que iríamos ter de escrever um policial, com enigma, de suspense ou simplesmente “noir”, partindo de duas obras da artista Luísa Correia Pereira, em exposição da Culturgest de 14/2 a 11/5/2014, intitulada “A Convocação de Todos os Seres”. Meti a mão no primeiro saco e saiu-me “3 elementos no verde”, que seria o cenário, tirando “Mãe e filha” do segundo saco, e esta seria a personagem, neste caso as personagens. – Vão lá, têm 45 minutos para escreverem uma história com princípio, meio e fim, disse a Carlota com ar de quem estava a lançar um desafio intrincado, se não impossível.

Lá olhei para as obras (ambas na imagem) e, habituado a ler Camilleri e, sobretudo a ver no pequeno ecrã a versão cinematográfica dos seus livros com um extraordinário Luca Zingaretti no papel do Comissário Montalbano, roubei a atmosfera repetidamente vista e lancei-me freneticamente sobre as páginas vazias. E aí fui tendo a ajuda das coincidências, como o “S” ao contrário, inicial do meu apelido paterno e fivela daquele cinto que uns diziam significar “Serviço” e outros “Salazar”, o verde da seara que o envolvia, o R4 do meu Pai, um dos carros que mais gozo me deu conduzir, entornando-o nas curvas, e a passageira contra mim quando eram à esquerda, em permanente desafio ao seu baricentro, as minhas recentes viagens ao Varatojo que me fazem passar por Catefica à saída da A8 para Torres Vedras Sul, a lembrança da canção de Bécaud "Le restaurante espagnol", hoje irrecomendável dado o seu tema. A cadeira atrás das grades com Mãe e Filha é de tal maneira transparente que me poupa comentários.

Depois, explorando a novidade dos casamentos homossexuais e a aceitação finalmente generalizada de tais relações, compus a trama que levou ao crime e acabei por pôr na cabeça do meu homónimo pensamentos que o leitor não acharia possíveis em tal personagem. Finalmente, tomei metaforicamente a perfeição dos seios da vítima, tendo para mim que já seria crime banalizá-los, desconhecê-los, desprezá-los ou desperdiçá-los por rotina, quanto mais desenhar-lhes “bocas vermelhas abertas por uma faca afiada”. E foi tudo, seguindo-se o texto que inspirou aquele outro “Escrita criativa com o mistério da subtracção da máquina do tempo a um operário por vadios amadores”, editado no meu blogue em 3 de Abril último.

Culturgest

Fundação da Caixa Geral de Depósitos

Escrita criativa

28 de Março de 2014

 

Exposição “A Convocação de Todos os Seres”, de Luisa Correia Pereira



Obras:
- 3 elementos  no verde, Xilogravura, 1973
- Mãe e filha, Água-forte, 1972
 
O Inspector Santos da Científica, chamado de urgência, tudo uma chatice, estava a almoçar pela primeira vez com uma garota a quem tinha posto o olho em cima, para examinar o local do crime, um campo verde de trigo, pediu desculpa, baby fica para a próxima mas dever é dever, escolheu um crachat verde para não dar nas vistas, pô-lo na lapela ao contrário coisa que fazia sempre para não confundirem o seu “S” com o do cinto da Mocidade Portuguesa, acelerou o seu R4 que já conhecera melhores dias e ala, sem GPS, dirigiu-se a Catefica que era a única indicação que tinha. O aparato dos carros da PSP de Torres Vedras, uma ambulância dos bombeiros, indicaram-lhe que era ali. Entrou no campo com o seu olho habituado a todos os pormenores e, afasta trigo à esquerda afasta trigo à direita viu vermelho na terra e nas espigas, baixou-se para recolher uma amostra para análise e seguiu no campo até ao fim onde começava a terra lavrada. Havia uma cabana, daquelas onde se guardam as alfaias agrícolas, empurrou a porta entrou; ao princípio não viu nada na penumbra, mas habituando-se deu com uma divisória gradeada atrás da qual distinguiu uma cadeira de espaldar alto tudo anónimo e cinzento, e voltou-se para sair. Um ligeiro arfar que lhe pareceu de um gato escondido fê-lo retornar sobre os seus passos, pegou na lanterna de algibeira e com espanto viu uma menina, entre neuf et dix ans, como na canção de Gilbert Bécaud, “Le restaurante espagnol”, que escondia a face com a saia. Magra, suja e despenteada, encolheu-se mais ainda sentindo-se descoberta. – Que fazes aqui? – Há quanto tempo aqui estás? – Quem és tu? – Fugiste de alguém que te queria fazer mal? Percebeu que cada pergunta aumentava a mudez da criança e mudou de táctica. – Estás só? - Onde estão os teus Pais? Começou a falar: - A minha Mãe estava sempre aqui comigo, eu debaixo da cadeira e ela sentada nela, atrás das grades fechadas com o cadeado e hoje vieram… - Quem, o teu Pai? – Não, não tenho Pai, vieram e levaram-na à bruta como se tivesse feito algum mal, voltaram a fechar o ferrolho e passado tempo ouvi gritos, pareceu-me a voz da minha Mãe e depois silêncio, nem os corvos ouvi grasnar, como se a morte se tivesse abatido sobre a seara. Santos pegou gentilmente na criança e levou-a pela mão evitando passar junto das manchas de sangue, e entregou-a a uma assistente social. Pediu ao Comandante da PSP para examinar o corpo: uma mulher magra, suja, desgrenhada, da blusa entreaberta vislumbrou uns seios que não eram para aquele corpo, grandes, brancos, perfeitos se não fossem as marcas da carnificina, bocas vermelhas abertas por uma faca afiada. Remexeu-lhe os bolsos do avental que tinha sobre os jeans, de onde tirou um papel dobrado em quatro. Minha vida, saio hoje da prisão e quero-te e à nossa Filha para desta vez vos dar uma vida diferente. Amo-te, Manel. Perguntou à assistente social se podia fazer perguntas à menina. – Já me disseste que não tens Pai, vivias sozinha com a tua Mãe? – Não, vivíamos as três, eu a minha Mãe e a minha outra Mãe; porque é que ela não está aqui?  Santos arrumou tudo na sua maleta de trabalho de investigador científico, dirigiu-se ao Comandante da PSP, puxou-o pelo braço para o afastar da multidão que se formara, e disse-lhe algumas palavras em voz baixa. Apertou-lhe a mão, entrou no R4 e desandou dali para entregar o que recolhera no Laboratório da Científica. O almoço com a garota ficaria para uma outra vez, ou talvez convidasse o colega novo chegado à sua Direcção, aquele jovem, alto, louro, com aqueles olhos que pareciam querer furar o Mundo.

Lisboa, 8 de Maio de 2014
Octávio Carmo Santos