quinta-feira, 26 de junho de 2014

Morreu a escrita criativa e a poesia foi às urtigas; resta o Brasil, terra da promissão onde os Manuéis e Joaquins construíram um futuro, hoje já sem nós, centro de um mundo redondo não achatado nos pólos.


Sento-me para escrever qualquer coisa que jeito tenha, com a mesa de trabalho repleta de papelinhos com notas que fui tomando durante a semana, mas as coisas tornam-se confusas, os factos e os não-factos anotados entrechocam-se, o que ouço na rua, nos transportes públicos, no supermercado, em locais sérios onde fala gente séria e na televisão, não tem nexo ou desmente-se a si mesmo, como se as pessoas não tivessem memória ou fosse melhor não tê-la para continuarem a fingir viver neste faz de conta de purgatório que nos arranjaram, local de sobrevivência a recibos verdes para quase todos os que ainda têm a sorte de ter trabalho e de reformas de miséria para os que já não podem trabalhar, com a ténue esperança de atingir o céu onde se deleitam os poucos que arquitectaram tudo isto, expiando-nos lá de cima e decretando pontualmente quantos e quais às pazadas devem ser deixados cair para o inferno, e a conta-gotas os que, por apelido ou manha, podem elevar-se às delícias do seu habitat, porque poderão, talvez mais tarde,  ter préstimo para qualquer operação que lhes saia do BEStunto e  onde não queiram sujar as mãos.

Quando trabalhava, ou fingia fazê-lo, era uma chatice ter de escrever relatórios claros e circunstanciados, que muitas vezes se viravam contra mim por ter lá pespegado com tudo o que tinha visto e ouvido, como um principiante sem 52 anos de trabalho às costas. Mal me libertei destas inúteis, estúpidas e, para mim, prejudiciais e não lucrativas obrigações, a primeira vez que fui livre de não escrever  sobre um acontecimento onde estive presente, veio-me à cabeça de o contar não por escrito, mas com uma colagem que depois deu em poster, e falo do III Congresso Internacional Fernando Pessoa, ao qual me referi no meu texto de 12 de Dezembro de 2013, intitulado «Fim de semana do “Desassossego”». E assim me divirto nesta minha nova “dolce vita”.

Sem veia inventiva começo já por desmentir o título  e volto à escrita criativa e, sobretudo, ao “binómio fantástico” de Gianni Rodari,  a propósito do piquenique da Avenida da Liberdade, festa campestre promovida por um dos donos da ditosa Pátria sua amada (pudera!), que tantos protestos levantou vindos dos lojistas ultraricos que apostaram em transformar o velho Passeio Público em  Champs-Élysées, via Montenapoleone ou Kartner Strasse da parvónia, e têm agora de suportar o cheiro a estrume de vaca, a brunidura de porco alentejano e, sobretudo, a português mal vestido e suado em busca de uma entremeada, uns coiratos,  uma bejeca  ou do Toni  Carreira (tudo coisas que só lhe fazem mal), coitados deles que já suportam todos os dias os “sem abrigos” que habitam, isto é, comem e bebem, descomem e desbebem, e dormem nas soleiras das suas montras e portas douradas. Protestos justos e sacrossantos, já que, com franqueza, descer a Avenida da Liberdade, de dia ou de noite,  e ver o espectáculo destes portugueses, não de segunda como no tempo da outra Senhora, mas de quarta ou quinta, a despromoverem o turismo milionário que ronda as portas da Prada, Boss, Armani, Cartier, Villebrequin e mesmo Fly London (compra o que é nosso!), é altamente degradante por  antipatriótico. Será que estes piegas preguiçosos não se lembram que é necessário, para o seu próprio bem estar, atrair investimento estrangeiro?  E foi por ter visto um destes sem vergonha a coçar os pelos do púbis (tão inspiradores do Dr. Catroga) na selecta avenida, que peguei no “binómio fantástico” que fecha o título de hoje,  “achatado nos pólos”, e pensei que o incómodo e abusador comichoso, não estivesse a coçar-se só por provocação à sociedade que o evita,  ou vingança contra quem criou todas as condições necessárias para o empurrar para aquela  situação, mas simplesmente por que tivesse “ chatos nos pelos”. Tão simples como isso! 

E já que fui ao título buscar assunto para não vos deixar sem texto, agarro-me desta vez à boia dos Manuéis e dos Joaquins, nomes que no dizer dos brasileiros eram os únicos dos portugueses que chegavam ao país em busca da árvore das patacas, embora eu tivesse tido um Tio paterno chamado Edmundo que para lá rumou nos anos 20 do século passado, trabalhou nas árvores da borracha sem encontrar a das patacas,  regressando à pátria ainda jovem com uma mão atrás e outra à frente.  Mas não são só os brasileiros que gozam com os nossos nomes, pois por cá gente há, e daquela que conta,  que se pode permitir dizer em público coisas das quais se deveriam envergonhar, ou pelo menos pedir desculpa. Assim, ouvi há tempos na televisão - todos aqueles que contam vão à televisão – o Professor Valadares Tavares, que soube depois ser também Visconde, dizer, a propósito da política de austeridade, para ele justa, ser natural que o Senhor Santos da mercearia não percebesse o alcance dessas políticas e contra ela se rebelasse;  já tinha esquecido o episódio, ou pelo menos arquivado no rol das imbecilidades com que todos os dias alguém nos brinda, não fora vir agora, sempre na televisão, o Professor Marcelo Rebelo de Sousa declarar que o problema do Rei D. Juan Carlos eram os Silvas, referindo-se aos reais genros plebeus e com fama de pouco honestos. Gostaria de ouvir estas duas respeitadas figuras da cena nacional, ambos Professores com apelidos de peso, repetir estes mimos durante um qualquer evento na Fundação Calouste Gulbenkian, na presença do seu Presidente, Artur Santos Silva.

Voltando ao título, já que não tenho outra fonte onde pescar inspiração, relembro que o problema da 4ª melhor selecção do mundo, a mesma que tem o melhor jogador do mundo, está muito a montante das quatro linhas e de quanto lá se passa, e senão vejamos só três coisitas sem importância:

- Todos ouviram à exaustão as elegantes declarações do Presidente do SCP, Bruno de Carvalho, a propósito das eleições para a Presidência da Liga de Clubes; achei tanta graça que até escrevi a quente um papelito sobre o assunto;

- Um dos nossos centrais, o naturalizado Pepe, que já no seu clube, o Real Madrid, deu, num momento de nervosismo normal em qualquer atleta, seis pontapés na cabeça de um adversário caído por terra, para além de outros episódios reveladores do seu temperamento, continua a ser convocado e a fazer parte da equipa de todos nós que tantas alegrias tem dado aos portugueses, com a sua preciosa ajuda;

- Será que a culpa não é sua, já  que vemos sentado no banco destinado aos altos dirigentes  da Federação Portuguesa de Futebol, o João Pinto?  Não percebi porque é que no Domingo passado, com um árbitro argentino a dirigir o Portugal-Estados Unidos, não o afastaram desse banco como precaução contra a repetição de pregressas atitudes coreanas de “boa” e ainda fresca  memória.

Uma coisa é certa: vão correr rios de tinta sobre este novo Saltillo, todos os brilhantes comentadores televisivos se vão esgatanhar para ver qual deles diz o maior disparate, e ninguém vai lembrar a simples máxima - será coisa de velhos? - de que o exemplo vem de cima.

Termino,  fugindo ao título que já está espremido não tendo mais nada para me dar, lembrando as rábulas televisivas diárias do Ricardo Araújo Pereira - um dos meus mais jovens maître à penser -, intituladas “Melhor que falecer”, a propósito das viagens diárias que fiz no autocarro 738 até ao Largo do Rilvas durante os 11 meses que passei nas Necessidades, até que um qualquer Rosalino, não tendo mais que fazer, me mostrou o cartão vermelho , por falta não cometida, em forma de despacho ad personam do qual ainda hoje me orgulho, porque numa dessas viagens, de um grupo de teenagers saudavelmente barulhentas e irrequietas, bonitas, lavadas e bem vestidinhas, isto é, não provenientes da Zona J ou coisa que o valha, uma delas falava ao telefone com uma sua irmã, pedindo-lhe insistentemente que dissesse à Mãe que não iria chegar cedo a casa porque tinha um programa com as amigas: - Olha mana, diz à Mãe que vou estudar para casa da Joana, que ela assim não chateia!  A resposta da mana não deve ter sido de molde a satisfazê-la, pelo que a menina, visivelmente irritada gritou um “Oh mana vai levar no cú!” e desligou. Eu tartamudeei um ”Bem vinda Princesa!”,  fui  olhado de esguelha e tomado por mais um velhinho maluco daqueles que povoam os transportes públicos, as Senhoras da minha idade baixaram os olhos e deixaram de falar dos filhos desempregados, das promoções do Pingo Doce, dos baldes que têm no quarto para aparar a água que pinga do tecto, das suas doenças e das esperas no Centro de Saúde, e a sã alegria das jovens voltou a dar cor e luz ao machibombo. Melhor falecer, caro Ricardo, e, no meu caso, por incompatibilidade ambiental e por uma questão de higiene mental.

Ao reler tudo, como sempre faço, descubro que também falo de poesia no título, e então volto atrás e, agora que já só escrevo quadras para manjericos, dado o êxito do texto dedicado ao St. António,  acabo com esta à laia de digestivo para a comida pesada que hoje Vos servi:

Mando a poesia às urtigas

E com ela vou também

P’rás colher e fazer migas

Que me vão saber tão bem!

 
Abraço

Lisboa, 26 de Junho de 2014
Octávio Santos