quinta-feira, 10 de julho de 2014

Oi! BEStial fotografia de um cidadão português a repousar (dormiente, segundo Michelangelo e Caravaggio) junto à porta da Igreja do Corpo Santo, dedicada ao Presidente da República e sua Família, à Presidente da Assembleia da República, ao Primeiro Ministro e ao seu Governo, aos Conselheiros de Estado (incluindo os que opinam nos mass media) e, avulso, a Bavas, Bentos, Mexias, Moedas, Ratos e outros génios sempre prontos junto ao pote que se diz estar onde acaba o arco-íris


Saía eu da primeira parte de uma sessão séria e internacional no Ministério das Finanças, que teve a presença de um membro do Governo que não sabia o que dizia ou que dizia aquilo que nós ainda não sabíamos, mas que ficámos a saber pouco depois, que não por ele, para rumar até à Pombalina - não sem antes ter aspirado o odor de uma certa pia no Martinho da Arcada para matar saudades de Pessoas que por ali passaram -, café/tasca na esquina das ruas da Madalena e do Comércio, onde se comem as melhores sandes de leitão da capital, e de onde, após satisfazer a gula, parti a deambular do Município a S. Paulo - magnífico o trompe l’oeil do tecto da Igreja -, passando pela Rua Nova do Carvalho, onde escorts de um turismo íntimo esperam, não só pelos clientes que anseiam conhecer uma realidade mais profunda dos lugares que visitam, mas também pela carteira profissional que as meta em regra com o fisco (não as estou a ver com o terminal multibanco no cinto de ligas), pela Praça da Ribeira em obras, pela Travessa do Cotovelo, onde só o lixo se acotovelava, pelo Largo do Corpo Santo, onde bati a foto que ilustra e foi pretexto deste texto tão fora do contexto, pelo Terreiro do Paço onde, para além dos tão alfacinhas rickshaws de aluguer, o que mais me chamou a atenção foi a nova especialidade lisboeta, na senda do estrondoso êxito do pastel de nata de bacalhau, que é o pastel de bacalhau que, quando se morde deita cá para fora um cremoso queijo da serra, tudo anunciado em belos posters, no limite do pornográfico, pespegados nos pilares pombalinos dos ex-Ministérios transformados em locais de lazer e engorda. Vem-me de perguntar se nos não ex-Ministérios não é a mesma coisa. Ao regressar às Finanças, desta vez pela porta da Rua da Alfândega, dei comigo a apressar o passo na Rua dos Bacalhoeiros para fugir da visão proporcionada pela fachada do estabelecimento de mercearias finas “Silva & Feijó”, pensando estar perdido e em perigo no kasbah de Marrakech ou no souk do Cairo, e não em Lisboa, melhor cidade europeia para estadias de curta duração segundo a World Travel Awards.   

Mas todo este preâmbulo para lembrar figuras desta Lisboa como o dormiente da foto, os párias da Liberdade, e refiro-me à Avenida, o casal Florindo e Flora (nem inventado) que vai para 23 anos está à porta da Procuradoria Geral da República reclamando justiça, sem que nenhum dos Procuradores que por lá passou anos a procurar, e aos quais dedico também a foto da imagem, ou justiça lhes faça ou os mande internar num manicómio, porque uma coisa é certa: há ali um caso de loucura, a dois, ao sol e à chuva, se for do lado de fora daquela porta, ou colectiva, no conforto dos silêncios secretos do Palácio, se for do lado de dentro. E também a Liana. Mas para Vos falar da Liana terei de explicar tudo. Para aqueles que conhecem a Marcella (com dois LL) vai ser fácil perceber, mas para aqueles que não a conhecem terei de ser muito sucinto para não encher três páginas. Vou tentar.

A Marcella Reis é uma cidadã brasileira que vive em Portugal há já 15 anos, poeta e escritora com uma formação de animação artística ministrada no Chapitô, que conheci numa sessão de poesia na Livraria Barata, tendo o seu poema “Descendente do Mundo” me impressionado a ponto de lhe pedir para o dizer na Biblioteca José Saramago, em Loures, quando da apresentação do meu segundo livro. Para isso propus-lhe uma espécie de apanhados, ao que a Marcella imediatamente aderiu. E assim aconteceu. Podia ter corrido muito mal devido à intervenção de alguns presentes na sala que não perceberam a marosca, o que se pode considerar um êxito na óptica dos apanhados, com a Marcella a ter de despachar a leitura do seu poema a gritar para ser ouvida. Não sei se todos gostaram, para mim foi um sucesso, para a Marcella uma loucura, tanto que estava feliz, tão feliz como naquela noite em que eu disse umas palavras na apresentação do seu segundo livro, no Hotel Real Palácio. Entendimentos entre “palhaços” que nem todos entendem. Ora a Marcella, depois de tudo isto, mandou-me faz tempo um e-mail contando-me que uma Senhora de nome Liana passava os seus dias sentada num degrau à porta do Centro Comercial de Alvalade, sobrevivendo das poucas moedas que lhe deixavam cair no regaço e da caridade de algumas Senhoras um pouco mais sortudas que ela, como era o caso da Mãe da Marcella, a qual veio a saber da boca da Liana que, fruto da queixa de alguns lojistas do Centro Comercial, a PSP a tinha intimado a deixar de “estacionar” naqueles degraus, o que para ela representava uma ordem de despejo da sua sobrevivência. No Largo, Santo António, na sua estátua, nada podia fazer. Pedia-me então a Marcella no seu e-mail que tinha em anexo uma foto da Liana sentada no seu degrau - mas ou o apaguei ou não o encontro entre centenas de outras missivas electrónicas -, se eu me importava de assinar um papel a pedir a revogação da sentença que iria complicar a vida já de si complicada da Liana.

Em vez de responder, peguei em carta e pena e escrevi um poema para a Liana, certo que, apenso ao abaixo-assinado teria mais força e impacto que uma simples minha assinatura. Transmiti-o então à Marcella que se desfez em agradecimentos exagerados, passando-me um certificado falso de genialidade e de solidariedade, o qual arquivei no file “Brasil” da minha memória. Não constitui notícia o facto de, depois deste episódio, nunca mais ter ouvido falar da Liana nem ter tido conhecimento do desfecho da sua história, mas o que é para mim estranho é que a Marcella nunca mais se comunicou comigo, embora eu lhe transmita sempre à quarta-feira a edição deste meu blogue. Dizia alguém que falava bem que a vida é feita de encontros falhados, e foi o que me aconteceu com a Marcella, mas, digo agora eu, que a minha efémera ligação literária com a Liana foi um desencontro conseguido.

Mas eu que vivo de livros e de sonhos, não poderia deixar passar o ensejo de Vos relatar um quase/sonho que se entrelaçou com a leitura de um não/livro, em noite de insónia mal dormida de Sábado para Domingo nas margens do Rio Seixe, fronteira entre o Alentejo e o Algarve. Se considerarem relevante posso adiantar que a cama estava do lado algarvio. O quase/sonho, e chamo-lhe assim porque foi daqueles que, qual telenovela, continuava após sucessivos estados de alerta e parecendo por isso muito longo, embora, como todos os sonhos que parecem não ter fim, nos deixam na memória imagens vagas e fugidias que se esvaem ao despertar. E foi para o fixar que peguei no não/livro e, enquanto o lia ou fingia lê-lo, ia memorizando o essencial que é facilmente resumível, como segue: Entrei num café com um longo balcão corrido, ficando o meu Irmão Vasco cá fora porque estava a cavalo. Pedi um sumo de laranja natural, mas daquela laranjas sanguíneas sicilianas, sumo que foi servido num copo alto que tinha três esferas de vidro a servir de base, e pelas quais o sumo se escoava lentamente sobre o balcão à medida que me iam enchendo o copo. Reclamei, e então meteram o copo dentro de um saco da plástico transparente continuando a enchê-lo, ficando eu na mão com um saco de plástico cheio de sumo vermelho com um copo roto lá dentro. Vim à porta para mostrar ao Vasco a insólita cena, mas a rua estava vazia, nem Vasco (a) nem cavalo, e voltei para dentro sem nada nas mãos já que o saco e o seu conteúdo se tinham também evaporado, tendo acordado definitivamente sem perceber nada, mas convicto que não iria incomodar Freud para uma explicação. 

Acordado, peguei nas 5 Cartas que Mário Cesariny escreveu a António Cândido Franco, de Poeta a Poeta, entre Março de 1977 e Fevereiro de 2000, e mal comecei a ler, agradeci de todo o coração a quem me proporcionou tal leitura, porque cada linha cada tesouro, e juro que Vos hei-de transmitir parte deles em escritos sucessivos porque, para além do interesse que os mesmos possam ter, sinto isso como uma obrigação. Desta vez, e lembrando-me das inúmeras leituras que faço da obra de Eduardo Lourenço “O Labirinto da Saudade - Psicanálise Mítica do Destino Português”, deixo-vos aquilo que Aquilino Ribeiro e António Sérgio disseram de D. Sebastião que, ai de nós, continua a ser o Desejado (Encoberto) que sairá do nevoeiro para nos salvar. Dele (da nossa salvação), disse Aquilino no seu livro “Príncipes de Portugal; suas grandezas e misérias”: «rebelde, impulsivo, desaparafusado, louco dez vezes, infelicitado por uma terrível paranóia congénita, impotente, incapaz de satisfazer ao débito conjugal, nevropata, dementado, louco, zorato, imprudente, estupidamente sôfrego». Sérgio foi mais comedido no primeiro volume dos seus “Ensaios”: «o vulto de um romântico pedaço de asno – desse inexcedível pedaço de asno que foi o senhor rei D. Sebastião». Boa vai a moenga, diriam aqueles que, na zona da minha insónia, dormiam o sono dos justos, caso estivessem acordados e descobrissem quais os recônditos desejos de um povo à espera da sua epifania, que lá tardar, tarda!

Liguei então as laranjas sicilianas do meu sonho, à juventude também siciliana de D. Isabel de Aragão, Avó do “pedaço de asno” e “maravilha fatal da nossa idade”, no seio de uma família que tinha o Papa como o seu mais perigoso inimigo, e que veio a ser canonizada por um seu sucessor três séculos depois e só após a Santa Inquisição ter mandado suprimir todo um capítulo do seu, digamos, curriculum vitae, que dava conta “dos desacatos e irreverências da rainha” fazendo “ de uma bruxa uma santa”, como escreveu Cesariny. Boa vai a moenga se é desta extirpe que os portugueses esperam o resgate!

Depois de haver lido este texto, parece-me ouvir a Manuela a lamentar-se pelo facto de eu nunca lhe ter dedicado um poema como o que fiz para a desconhecida Liana; bato com a porta sem sequer balbuciar uma desculpa, ouço-a ainda a recomendar-me para ter cuidado a atravessar a rua, mas não tendo talento para lhe dedicar um poema do tipo da Sagrada Família de António Gaudi, obra grandiosa e perenemente inacabada, apetece-me ter o fim do genial arquitecto catalão, atropelado anonimamente na sua Barcelona por um carro eléctrico, e dou comigo a atravessar sem olhar uma das ruas de Lisboa onde já não passam eléctricos mas subsistem os carris. “Alentejano num drome”, dizia o meu Amigo Francisco Maria Caramba, e os meus desejos estão a anos luz da espera de D. Sebastião. Boa vai a moenga!


Um abraço.


Lisboa, 10 de Julho de 2014
Octávio Santos


(a)  "Estás em cada pormenor, em cada pensamento, fazes parte de nós..... SEMPRE!!", como me escreveu a minha Sobrinha Rita Filipa no dia em que fez dois meses que o seu querido Pai e meu querido Irmão nos deixou.