quinta-feira, 21 de agosto de 2014

Parte Quarta da já longa e fastidiosa crónica sobre a Liberdade da nossa Avenida, com uma oitava entremeada em obediência a uma “ordem” vinda do lado de lá do Atlântico, memórias cinematográficas, psicólogos em retiro, encontros imediatos e inesquecíveis, bandeiras nas janelas e outros fenómenos lusitanos, como o do milagre da multiplicação dos bancos, entre os quais um falso, de telenovela, que fez do cronista um Totó.


Tínhamo-nos deixado entre o Parque Mayer, instalado no espaço antes ocupado pelos jardins do Palácio Lima Mayer, hoje Consulado de Espanha, esplêndido edifício de traça italiana que mereceu o primeiro Prémio Valmor em 1902. Deixada para trás a Rua do Salitre, para onde o palácio tem a sua porta principal, encontramos na outra esquina, nos 155/157, um belo e simples edifício pombalino - quando digo pombalino refiro-me sempre àquele estilo que abunda na Avenida e que é uma evolução do puro pombalino da Baixa que se foi descaracterizando à medida que subiu o Passeio Público -, que tem nos baixos a Ribadouro, Restaurante Cervejaria, onde comi talvez o pior Bacalhau à Brás da minha vida, ausentes que estavam o fiel amigo e o espírito do tal Brás, e nos andares superiores a Casa do Concelho de Idanha a Nova, a Inforpress e a Maria Karin, que mais não é que a jovem estilista portuguesa Carina Costa, que passa metade do ano a expor as suas extraordinárias e chiques criações de moda feminina nas feiras de todo o Mundo, com assinalável êxito.  Segue-se, no nº 159, um pavilhão de um só piso com um corpo sobrelevado ao nível do terraço, e de acesso a este, infelizmente coberto com telhas azuis (sim, azuis, porquê?), pavilhão com grandes montras que durante muitos anos mostrou e vendeu a turistas tudo aquilo que os turistas gostam de comprar por obrigação da sua condição, hoje triste, sujo e vazio, no seu todo mais uma mancha indigna na Avenida. No passeio um cartaz institucional onde o Homem que Mordeu o Cão nos oferece o seu cocó (o do cão!) em elegante embalagem com laçarote, sobrevoada por moscas. Tudo a condizer.

 E a subir pela Avenida,

(É só mais um bocadinho)

Vejam só, coisas da vida

Que o nosso dinheirinho

Dentro de um pacote igual

Nos dão para nosso mal

Transformado em porcaria

Gente séria, quem diria!

 Olhando para a esquerda temos turistas a fotografar a Travessa da Horta da Cera, e eu, que exagero sempre, estou a vê-los, no retorno das férias, a fazer inveja a familiares e amigos afirmando terem estado na faixa de Gaza, felizmente antes dos bombardeamentos. No 161 e seguintes, pelo pouco que se vê, está um belo edifício que alberga a Cambridge School e a Aristocrazy Jewels, tudo falso, agora a ser restaurado pela TaskDone e já com o anúncio da próxima abertura - opening soon - de uma nova loja Hugo Boss. Depois é o Cinema S. Jorge com a sua arquitectura particular, própria de uma grande sala de espectáculos, onde vi maravilhado filmes como Lawrence of Arabia, Trapézio, Dez Mandamentos, Oklahoma, Mundo do Silêncio, O Corsário Lafitte e tantos outros cuja lista não caberia nesta crónica, e onde hoje a EGEAC apresenta os seus programas; agora anuncia Gisberta, com Rita Ribeiro que, parece, nunca a vi, não desmerecer dos Pais que teve. À porta, um engraxador “internacionalizado” que afixa na sua caixa “sapatos, shoes, chaussures e schühe” e, na parede “shoe-shine”. Aqui, talvez por estar à porta do S. Jorge lembro-me do filme “Sciuscià” de Vittorio de Sica, de 1946, que conta a história de dois pequenos engraxadores romanos; o título é um neologismo que nasceu em Nápoles no dia em que os americanos libertaram a cidade e se viram rodeados por crianças esfomeadas que, para ganhar um “dime” ou mesmo um “fifty-cent”, se propunham limpar-lhes as botas gritando “sciuscià!”, corruptela de “shoe-shine”, que ainda hoje é de uso na cidade. Desculpem o desvio por Nápoles mas alguma coisa lá deixei. Voltando ao S. Jorge, que lemos em letras gordas sobre a pala que protege as portas 175A e 175B, hoje dormitório de dois Homens que vivem no meio do lixo numa miséria que exala à distância o seu perfume onde predomina o de urina retardada. Quando passei, a enxerga B estava vazia por ausência do seu inquilino, mas na A estava estendido um Homem esquelético com pinta de faquir dando as costas à Avenida e, esta circunstância permitiu-me copiar, sem ferir a sua dignidade, o cartaz autógrafo que idealizou para se proteger:

«Por favor, não me falem nem me molestem, pois estou iniciando um prolongado e particular “retiro espiritual” fortemente amparado por uma grata e profunda “meditação metafísica transcendental”. Respeitem o meu silêncio. Democracia, solidariedade e justiça, por onde andais que não vos encontro por lugar algum? Para todos: Feliz Natal e Ano Novo 2014. Lisboa, 01-12-2013. Enrique Perez Farrena – Psicólogo (cegado)”.  Alguém colou no fim do cartaz um pequeno círculo vermelho de papel com a escrita “saiu coroa”; seria ele próprio, o “cegado”, por auto-ironia, ou algum brincalhão de passagem?

O nº 177, na esquina com a Rua Júlio Cesar Machado, um digno pombalino onde se encontra instalada a Clínica do Coração, a Clínica Ortopédica e o ANPAT - Laboratório de Anatomia Patológica, - está em remodelação o espaço térreo onde abrirá brevemente a nova loja da Ermenegildo Zegna que, pelos vistos vai encerrar o espaço que tem lá mais para baixo ao lado da Hugo Boss, seguindo esta na subida da Avenida. Eixo italo-germânico, desta vez dos trapos, novamente em consonância? Depois vem o Hotel Tivoli, que não sei se está com os bons ou com os maus, supondo que haja bons, lembrando-me que, no espaço onde hoje está a Brasserie Flo, tive um encontro tête-à-tête com a Beatriz Costa, que habitou o hotel nos últimos anos da sua vida, para a convencer a deixar-se entrevistar e filmar por uma troupe do Canale Cinque que eu tinha acompanhado a Lisboa para realizar um promocional turístico sobre a nossa capital, o que ela recusou com uma gentileza enfastiada porque o que desejava era estar tranquila, pelo que não me permiti insistir, mas recordo que foi bom ter encontrado aquela Senhora. O Tivoli tem em baixo uma loja de malas Loewe.

No 189, está o Ever Lisboa, da Ever Hotels - why resist? -, três estrelas onde antes era o Hotel Veneza que tantas vezes recomendei a turistas italianos que me pediam conselho; pena a mudança de nome porque o edifício é mesmo uma bela ca’ veneziana. Na álea central filma-se o que me pareceu ser uma telenovela portuguesa com todo o aparato que isso comporta; o Nicolau Breyner andava por ali com ar absorto. Segue-se, na esquina com a Barata Salgueiro, no 193, um belíssimo edifício com torreão, Património do Estado, aparentemente vazio, que foi em tempos sede da Direcção-Geral da Aeronáutica Civil, ostentando na fachada uma lápide recordando o General Humberto Delgado, que foi Director-Geral. E aqui tenho de vos contar uma coisa daquelas que só a mim me acontecem. No dia em que passei para tomar as minhas notas, este edifício estava a servir de cenário para a telenovela, com transformações que me indignaram porque não percebi o que se passava, e então escrevi o que se segue, que peço o favor de não fazerem caso ou de levarem à minha conta de incorrigível Totó:

“Segue-se, na esquina com a Rua Barata Salgueiro, no 193, um belíssimo edifício com torreão onde está agora instalado o BBA Investimento - Banco Barroso e Albuquerque, confessando a minha ignorância sobre a existência de mais este banco (afastando um mau pensamento sobre o Durão e a Luis), cujos responsáveis resolveram retirar da fachada uma lápide que recordava a passagem pelo histórico edifício, que foi muitos anos a Direcção-Geral da Aeronáutica Civil, do General Humberto Delgado. Como se podem permitir? Quem autorizou? Quem terá poder para ordenar, mesmo tratando-se de um banco, a voltar a colocá-la na fachada? Lembro-me de lá ter entrado uma vez nos primeiros anos 60, talvez porque tivesse um Irmão na Força Aérea, e de ter encontrado o Director-Geral que era o Eng. Vitor Veres que, descobri depois, ser Marido da Carmen Dolores. Agora nas duas esquinas da Barata Salgueiro estão dois bancos: um (que são dois), grande, que não tem respeito por ninguém, e outro, pequeno, que não tem (pelo menos) respeito pela história. Como se faz a descer tanto como país? Será que mais vale ser atropelado no meio da faixa de rodagem da Barata Salgueiro que nos aproximarmos das suas esquinas?”  E aqui acaba a inútil e precipitada diatribe. Só ontem, quando voltei a passar para acertar estas notas é que dei conta do logro em que tinha caído; ele há dias em que a minha reputação cai a pique e que mais valia encher um pé de merda!

Finalmente o BES naquele «mamarracho incrível dos tempos pós-revolução em que “valia tudo” na construção», no dizer do meu caríssimo amigo Luis Filipe Pereira, agora sobrevoado por abutres vindos dos fundos. Ao “mamarracho” já me referi antes pelas suas grades de premonitória arquitectura, quanto ao “valer tudo na construção”, parece que que o sistema bancário foi contagiado por esse vírus que está a contaminar toda a sociedade portuguesa. Por um lado rende (CR7), pelo outro poupa (D. Inércia), numa confortável e lucrativa total inércia que ataca todos os intervenientes, mesmo aqueles aos quais pagamos para nos defenderem. E basta de BES, GES, BEST, ESAF, ESI, EST, ESP, Rioforte e da tranquilidade bucólica e campestre de Comportas alentejanas, brasileiras e paraguaias, e restantes membros da quadrilha que, posso apostar, nunca irão ser inquilinos de outros edifícios com grades que melhor lhes andariam. Depois um belo, grande mas decadente pombalino, aparentemente vazio, com apenas uma montra da Wickett Jones anunciando que a dois minutos dali, virando à Rosa Araújo, na Rua Castilho, se encontra todo o “gentleman’s ware” da marca. Na outra esquina cresce um monstro linear, o 225 Liberdade, no qual a WORX e a Jones Lang LaSalle anunciam arrendamento de escritórios, estando já instalada a prestigiosa Torres Joalheiros, com os Rolex em grande evidência. No 227, um edifício relativamente moderno mas já passado, com a fachada semeada de ares condicionados, onde está um balcão do Santander Totta, mais uma Sociedade de Advogados e a Câmara de Comércio e Indústria Luso-Chinesa. No 229, num digno mas anónimo pombalino, está, para além de um cardiólogo de apelido prestigioso, a Dunas Capital, Gestão de Activos, SGFIM, SA, e a Embaixada do Chipre - Kypryaky Prezvia -, cuja bandeira tive na minha janela, à maneira Scolari, quando foi anunciado que a freenança também queria pôr as mãos sobre aquele pequeno meio-país. Tentei envolver o Movimento “Que se Lixe a Troyka” para o milagre da multiplicação das bandeiras, mas não se dignaram responder-me. Paciência, que se lixem!

No 233, na esquina da Alexandre Herculano, é de pasmar diante do monumental e rico palacete excelentemente restaurado, com magníficas e sumptuosas varandas; está lá a Max Mara, da qual vi abrir a primeira loja em Roma, no fim dos anos 80, na Via Condotti, onde entrava só para apalpar os tecidos. Na outra esquina, no 243, o Hotel Marquês de Pombal, edifício tirado a régua e esquadro totalmente forrado de pedra. No 245, num longo monstro moderno, com uma coluna de alto a baixo, encimada por um baixo- relevo, tudo no mais puro estilo Estado Novo, a Galeria Comercial 245, um parking público a pagamento (APARC), a Revlon Professional, a América Crew - Oficial Supplier to Men -, a Embaixada do Japão, a Melià, um balcão da CGD e uma grande loja fechada mas limpa. Menos mal. No 247, o Hotel Turim Liberdade, um digno “vidrão” que acolhe também a Fancy Jewelry  e, em saldos, a loja Luis Onofre que expõe e vende as suas maravilhosas criações, enriquecidas com cristais Swarovski, para pés onde assentem pernas que as merecerem, condenadas a tornar-se fétiches. O 249 Liberdade, como foi baptizado o monstro de fachada ondulada lembrando ondas de mar agitado onde navega o Millennium BCP, do Jardim Gonçalves e do Carlos Costa (lembram-se?),  e estão também o BPI, a Ford - FCE Bank, Ford Lusitana -, a Magnum Capital, a AON e mais duas Sociedades de Advogados. No 259, já edifício verde do Marquês de Pombal que acolhe o Hotel Flórida, descubro o FI (letra grega em evidência cromada na fachada) Atlântico - Banco Privado Atlântico Europa (dizem-me angolano); também a Sata - the Atlantic and you -  e o Montepio Geral - quando o seu projecto ganha, ganhamos todos-; será mesmo assim?

Dos bancos da Avenida perdi-lhes a conta (até um falso encontrei!), mas contei 11 Sociedades de Advogados 11, podendo pecar por defeito que não por excesso, e aqui atrevo-me a transcrever o que disse a propósito há tempos numa entrevista televisiva o Professor Freitas do Amaral, assunto a que se referiu o único link da minha crónica de 7 de agosto. “ Antigamente éramos assaltados nas estradas por bandos de bandidos armados de escopetas e bacamartes, para nos roubarem jóias e cabedais. Hoje os assaltantes são os bancos e as armas as Sociedades de Advogados”.  Daí ser muito arriscado passear na Avenida, especialmente para idosos que, tendo já sido atacados pela incontinência verbal que tanto incomoda, estão na eminência de passar àquela urinária, não havendo já sentinas públicas na Avenida.

Por fim uma má notícia: esta crónica segue no próximo número para reportar tudo o que existe, e acontece, nas áleas centrais da nossa Avenida, e para me debruçar sobre o Monumento dos Restauradores e descobrir batalhas decisivas que tiveram lugar noutro continente. Nessa época Portugal era meio Mundo, e defendia a sua independência a milhares de quilómetros de distância, na Colina dos Guararapes.

Abraço.

Lisboa, 21 de Agosto de 2014
Octávio Santos