quinta-feira, 4 de setembro de 2014

Parte Sexta e finalmente última desta já longa crónica sobre a Av. da Liberdade, obrigatoriamente monótona porque as duas áleas centrais são substancialmente idênticas, com a virtude de servir também de errata às cinco crónicas anteriores, não só para emendar erros e registar mudanças ocorridas mas, sobretudo, para reparar imperdoáveis omissões indignas de um cronista minucioso que já está a ver leitores a esquadrinharem a Avenida seguindo o guião por si proposto, na mórbida expectativa de o apanharem em falta.


Começo esta última etapa do meu contar a Avenida, agora que estou a iniciar a álea direita de quem sobe, transcrevendo o que escrevi sobre a outra, a direita de quem desce, porque serve também, como disse, para esta:

“…, temos a parte central ajardinada, ladeada por largos passeios com dois renques de árvores, de diversos tamanhos (pré e pós Metro) e espécies, nunca palmeiras,  uma fila de bancos de jardim e duas filas de candeeiros públicos, altos e duplos aqueles que dão para as faixas de rodagem e, digamos de jardim, os adjacentes ao verde central. A calçada é a dita “à portuguesa” profusamente decorada com temas geométricos ou botânicos estilizados, alguns símbolos heráldicos e poucas inscrições,  desconhecendo eu se o seu autor é o mesmo do pavimento do passeio central dos Restauradores, o grande João Abel Manta.”

Deixando os Restauradores, após as entradas para o seu parking - uma para viaturas e outra para peões -  e do “aquário” que encerra o ascensor de acesso ao mesmo, temos o primeiro canteiro gradeado, com relva, plantas diversas, flores, uma palmeira a sério vestida de heras e uma outra daquelas pequenas e magrinhas, com seis troncos, e ainda uma outra árvore.  Segue-se um outro canteiro, este circular e também gradeado, com relva, flores e uma árvore; tem, dos dois lados, a mesma inscrição na calçada: MCMXXV. Depois um pavilhão do Bananacafé com esplanada e mais um canteiro rectangular gradeado com relva, flores e uma palmeira com dez troncos, que serve de moldura a um busto de Manoel Pinheiro Chagas (1842-1895), com figura feminina, altiva no seu rico vestido com crinolina - tudo em bronze - identificada como sendo a “Morgadinha de Val-Flor” na inscrição na calçada sob o nome do esculpido; a base do busto tem gravado «Por subscripção promovida pela “MALA DA EUROPA” em Portugal e no Brasil». No fim do canteiro mais uma inscrição na calçada: “1925”. E chegando à vista do Largo da Anunciada chama-me a atenção um cartaz com a cara bonita mas enegrecida de uma bombeira e a escrita “Vamos equipar os nossos bombeiros! - Uma iniciativa Banco BIG”. Gostaria mais de ver o Banco BIG, ou qualquer outro banco, por bom ou mau que seja, a sponsorizar uma campanha tipo “Vamos neutralizar os incendiários e quem lhes paga”, mas isto, evidentemente não faz parte da estratégia do sistema bancário e poderia até causar o despertar do regulador.

Depois começa o longo canteiro artisticamente gradeado que apresenta no início duas árvores, mais uma palmeira e uma bananeira com três ramos, tudo junto da foz subterrânea do “rio” que, como o seu irmão da álea oposta, é ladeado por plantas várias, tem açudes, um abrigo para patos ausentes, fechado, vazio e sujo, uma ponte de ferro (onde turistas me pedem para os fotografar), terminando eu onde ele começa, isto é, na sua nascente alegórica, figura de velho que lança água de uma ânfora do alto do poleiro da sua “rocaille” cheia de avencas e fetos; atrás dele uma palmeira com três troncos e plantas diversas. No passeio, mais um pavilhão, o Quiosque da Avenida da Liberdade, com esplanada. Aqui, atravessando à altura da Rua das Pretas, temos num canteiro com relva e plantas, este já sem gradeamento, uma estátua de Simon Bolívar (1783-1830), com a inscrição «O “Libertador”, Herói da Independência Sul-Americana». Na calçada a inscrição é outra: “João Vaz Côrte-Real - Descobridor da América”. Será que antes lá estava a estátua deste e foi substituída? Girando a estátua de Bolívar no sentido dos ponteiros do relógio pode ler-se no pedestal “La libertà es el único objeto digno del sacrifício de la vida de los hombres - Bolívar (1815)”. Na face seguinte temos os nomes dos países libertados, Venezuela, Colômbia, Equador, Perú, Bolívia e Panamá, e a inscrição “Homenagem da Comunidade Portuguesa da Venezuela e da Câmara Municipal de Lisboa, em 17.XII.1978”. Na última, temos: “Con alta estima mira la América a quien abandonando su própio país viene trayendo ciencias, artes, indústrias, talentos e virtudes - Bolívar (1820)". De um lado e do outro deste canteiro temos duas inscrições na calçada: “Terra Nova” e “Grofiandia”.

No passeio do lado direito desta álea estão agora 11 esculturas em ferro, de Rogério Timóteo, penso que temporariamente, representando figuras humanas; gostei muito da figura de mulher que está junto do Quiosque Tivoli e do homem de braços abertos (anjo ou crucificado?), com cabeça de encomenda postal, e não gostei da cabeça puzzle.

Segue-se uma entrada do Metro, um canteiro oval, relvado,  com uma palmeira com seis troncos, mais um outro rectangular  com relva e ainda outro com relva, plantas e duas palmeiras.  Entre o primeiro e o segundo lê-se na calçada “Homenagem à América Setentrional”, entre o segundo e o terceiro “Câmara Municipal de Lisboa - MCMXXXII”, e depois deste uma Cruz de Cristo precedendo a inscrição “Descoberta da América - 1472”. Neste último temos, novamente de ambos os lados, duas inscrições na calçada: “Canadá” e “Labrador”.  Fico com a impressão de estar a assistir a uma guerra de alecrim e manjerona, latente e surda, entre as Américas, na qual a CML não quer tomar parte nem partido, contentando todos ao longo dos anos, ou tudo não passa de um meu exercício epigráfico mental sem qualquer sentido. O costume. Atravessando por altura do Monumento aos Mortos da Grande Guerra, temos um canteiro rectangular com relva e arbustos que emoldura um busto em bronze de Fryderik Chopin (1810-1849), com uma inscrição que reza: “Monumento inaugurado por Sua Excelência o Presidente da República da Polónia, Brosniraw Komorowski e por Sua Ecelência o Presidente da Câmara de Lisboa, António Costa - 19 de Abril de 2012”, canteiro que comporta ainda três palmeiras. Após mais uma entrada do Metro, um outro canteiro rectangular com relva, arbustos e uma palmeira, depois do qual temos o único verdadeiro quiosque da Avenida, aquele histórico e vermelho do Tivoli, que hoje serve de ponto de venda dos jogos da Santa Casa. Nem a propósito, estava a ser fotografado por um casal de turistas japoneses que me inspiraram mais este haiku:

          No meio destes falsos bosques

          Lançamos a sorte nos quiosques

          Mas a fortuna deu de frosques!

Atravessando para lá do Tivoli, um canteiro circular com relva e uma palmeira de três troncos, mais dois canteiros rectangulares com relva, arbustos, flores e quatros palmeiras cada. No meio dos dois, um monstro metálico, cilíndrico e cinzento com antenas e um cartaz que anuncia ser a “Estação da Avenida da Liberdade - Rede de Monitorização da Qualidade do Ar na Região de Lisboa e Vale do Tejo”, a que alguém de má-fé acrescentou um ponto de interrogação entre parêntesis, assim: (?). Segue-se mais um canteiro absolutamente igual aos precedentes, com quatro palmeiras e tudo, e depois um circular com relva e uma palmeira, e assim chegamos à altura da Barata Salgueiro. Do lado de lá, mais um canteiro circular com uma palmeira de três troncos, relva e flores, um rectangular com relva e plantas diversas, e com uma escultura moderna em ferro preto - quatro pernas metálicas com catorze esferas a trepar por elas acima -, que se lá não estivesse não faria diferença a ninguém excepto ao autor, Rui Chafes, a quem peço desculpa da minha insensibilidade estética, e mais quatro palmeiras, e depois outro, similar, mas sem honra de estátua e com cinco palmeiras. No passeio mais um pavilhão, Hot Dog Lovers, com esplanada. Depois, um canteiro circular relvado com uma estátua de pedra de Oliveira Martins (1845-1894) - Câmara Municipal de Lisboa, 1950 -  e já estamos a atravessar a Alexandre Herculano e, do outro lado, temos a estátua, em tudo idêntica à precedente, no seu canteiro circular, mas desta vez de Almeida Garrett (1799-1854) - Câmara Municipal de Lisboa, 1950 -, que parece levantar os olhos para a Tranquilidade perdida . Uma palmeira no passeio, uma entrada do Metro (e também saída, como é que me tinha passado este pormenor?), e um canteiro rectangular com relva, plantas, flores e  cinco palmeiras,  mais uma daquelas bocas de ventilação do Metro que te dão vontade de tapar ou de arquitectar de outra maneira. A seguir, com o fim à vista, começo a ficar impaciente mas não é que há já muito para dizer, mais um canteiro rectangular com tudo e uma palmeira, um outro pequeno e rectangular com relva e plantas várias, e o último, já a entrar no Marquês, este só com relva como o seu irmão gémeo do outro lado.

Cansado, volto a descer até ao primeiro banco de sentar que encontro e vejo aproximar-se uma Mulher com aquele aspecto físico que, talvez superficialmente, nos faz pensar em dependência de drogas, e arrependo-me de me ter sentado ali. Em vez de me abordar, como eu temia, passou por trás do meu banco, tocou-me na cabeça ao de leve e disse: "- Eu estou aqui!" Segui-a com os olhos, a pensar no porquê da sua atitude, quando a vejo a apalpar o rabo a um jovem turista que no meio do passeio consultava um mapa com a sua companheira, seguindo o seu caminho, Avenida da Liberdade abaixo, como se nada fosse com ela. Mistérios da vida contidos nesta Avenida que permite a cada um a Liberdade que lhe resta.

Arquivo definitivamente a Avenida da Liberdade com algumas notas avulsas que servem para emendar erros, remediar omissões e referenciar mudanças de última hora, e elas aí vão:

- O edifício do Diário de Notícias, Premio Valmor em 1940, é da autoria do arquitecto Porfírio Pardal Monteiro;

- No nº 262, para além do Colégio da Avózinha, está o cabeleireiro Le Salon e mais duas Sociedades de Advogados;

- No nº 258, atraído pela presença da aicep Portugal Global, esqueci o AIM Group, a Proventus-Consulting, a ALCIR-Neolickserve, a Consultan e a FAF-Produtos siderúrgicos;

- No nº 244, encandeado pela Confeitaria Marquês de Pombal, não referi que, por cima, estão a Adifisio - Fisioterapia, a Medilabor e a Previmed-Medicina do Trabalho, o cabeleireiro 224 Avenida, a Data E, a Clínica CMC, a Body Concept e a DIF- Brokers;

- No nº 252, estão já instalados o BANC - Banco Angolano de Negócios e Comércio e o Emerald Group;

- Que no Edifício BF, a loja Fly London encerrou para remodelação e que nos andares por cima estão a Orey, a Horizon, a Faber Ventures, a F5C, a UBB- University Brand Brigade e a GR Marketing;

- No nº 164, por cima das malas Rimowa, está o Hotel Valverde;

- Disse que não guardei memória do Edifício Tony Miranda, e só pode ter sido por cansaço porque convido todos a olhar para ele com atenção porque tem a beleza da perfeição;

- No nº 40, o Edifício Mapfre, estão também a CPP Portugal, a ITSE Map, a Ibero Assistência e a Consejeria de Educación da Embaixada de Espanha;

- No nº 36, o Edifício MetLife, estão também a Martini e a Bacardi, a Manpower, a Liberdade Globality e uma outra Clínica Médica;

- Chamei Odeon ao Politeama. Este está vivo e tem em cena uma revista à portuguesa; mais abaixo, o Odeon está a hibernar à espera do negócio das Galerias Lafayette;

- No nº 58 dos Restauradores, a geladaria “Cone ou Copo”, talvez aborrecida com a minha brincadeira (7/7), fechou dando lugar a mais uma “Padaria Portuguesa”;

- Do nº 13 dos Restauradores desapareceu o néon que anunciava “Fios para tricot - L. Neto Raposo, Lda., - Fabricantes”, e é mais um sinal dos tempos:  dinossauros só no cinema;

- Por altura do nº 11, onde não está a Médis como escrevi por lapso, está mais um pavilhão, o “Bambu - feed your spirit";

- No nº 69, por cima do David Rosas, perante o inquérito do porteiro que achou que eu não andava ali por bem, nem fornecia razões válidas para a minha curiosidade, limitei-me a decorar estes nomes, não garantindo a sua grafia: PPM Coacher, Ecoys-Comkork, Imperium, Provalliance, Semko Portugal, Metaloviana e, estes sim certos, a Embaixada da Turquia e mais duas Sociedades de Advogados;

- No belo edifício com os nºs 131/151, a loja Ermenegildo Zegna deu lugar à Hackett London, a abrir brevemente;

- A Ribadouro tem na álea central, conforme descrevi, um pavilhão com esplanada. O que me passou é que esse pavilhão é o único da avenida a ter necessidade de um gerador de corrente, que ao mesmo tempo gera ruído, fumo, mau cheiro e poluição para indígenas e turistas que, incautos, ali se sentam para se alimentarem e gozarem a Avenida;

- Deu-me agora para perguntar o que é que foi feito da segunda lápide que a fachada do nº193 ostentava em tempos? E o que é que teria gravado?

- O busto de Rosa Araújo tem inscrito o nome do autor: “Castro Motta Sobrinho - 1836”;

Fim da errata.

Só mais umas coisas para que constem nas estatísticas; a Avenida tem, ou tinha no momento do meu recenseamento:

- 13 estátuas, bustos e outras esculturas, sem contar o Monumento aos Mortos da Restauração;

- 11 esculturas em ferro, de Rogério Timóteo, representando o corpo humano, em exposição  temporária;

- 170  candeeiros altos com dupla iluminação, alta para as vias com trânsito e baixa  para as áleas centrais;

- 123 candeeiros de jardim;

- 147 bancos de jardim, com o milagre de apenas um estar partido;

- 1 lago;

- 997 árvores, das quais:

- 919 árvores diversas (apenas 11 ausentes dos seus redondéis), excluindo palmeiras e bananeiras;

- 75 palmeiras, a grande maioria daquelas que “ancoram o céu à Terra";

- 3 bananeiras;

- Número indeterminado de pombos e nenhuma gaivota, o que é sinal de bom tempo;

- 8 pessoas a dormir nos bancos, cedinho de manhã,  mas isto é circunstancial e não merecia ser referido.

Ao encerrar esta minha maratona na Avenida da Liberdade, e o certo é que quando lhe chamei maratona não imaginava ter de fazer à volta de 40 km, guardados cadernos e folhas com notas na mochila, dirigia-me a uma entrada do Metro, quando deparo numa velha como eu, sentada a ler um livro num dos 147 bancos da Avenida, mas atenta ao carrinho de bebé que tinha junto a si com um cãozinho dentro. Desço as escadas, atinjo o cais da linha Amarela, entro na carruagem, sento-me e pego no jornal grátis “Metro” de 2/9 que alguém deixou por ali e, já são coincidências a mais, depois de ler aliviado que o Otávio é reforço portista, deparo com a página 10, que vos deixo, onde alguém vem em defesa da minha dama.

Abraço.

Lisboa, 4 de Setembro de 2014.

Octávio Santos