quinta-feira, 25 de setembro de 2014

De como o cronista rumou ao Sul para uma visita guiada à Herdade das Servas, templo da excelência dos vinhos alentejanos, com prova e almoço, e viu passar em flashback, num cenário inox e pasteurizado, as suas vivências vitivinícolas com meio século, só despertando à mesa que, pelo que alimentou de corpos e espíritos, só pode ser designada por “boa mesa”

 
Sento-me para escrever e, como da última vez tive o atrevimento de me meter no teatro, sinto-me como um comediante que, ao subir o pano, tem o terror de não recordar a sua parte, ou durante a récita esquece se deve sair pelo lado da praça ou aquele da rua, com medo de não ter nada para dizer, ou de não o fazer de maneira que valha a pena roubar tempo aos leitores. Desta vez veio em minha salvação um amável convite de caros amigos para visitar a Herdade das Servas, com um programa extra de fim-de-semana em Vila Viçosa, durante as Festas dos Capuchos, que será o motivo da próxima crónica. E é isso que vos vou contar, fazendo um esforço suplementar para vos dar notícia da parte negativa, como sempre faço, embora desta vez não me seja fácil o exercício, por escassez de matéria.

 De Vila Viçosa partimos em comitiva para Estremoz com destino à Herdade das Servas onde, em 220 hectares, todos plantados de vinha, se produzem vinhos tintos, brancos e rosés de qualidade, que honram o Alentejo como Região Vinícola, e nos regalam o palato com as notas características dos Vinhos Regionais Alentejanos, hoje altamente considerados além-fronteiras por aqueles que têm a felicidade e o privilégio de os conhecerem.

Quando atravessei o portão de entrada da Herdade tive, pela disposição e arranjo das vinhas, a sensação de estar na região de Bordéus, em Saint Émilion, no Médoc ou Entre-Deux-Mers, tendo descoberto depois sem surpresa que, da equipa de técnicos responsáveis por esta “máquina” de produzir bons vinhos, faz parte um Professor da Universidade de Bordéus. Já, junto ao edifício principal, as enormes talhas do século XVII alinhadas, quais soldados chineses de terracota, na defesa da herdade e do que lá se produz, me levaram à Sicília, recordando Pirandello, um dos seis Prémios Nobel italianos de Literatura, que escreveu a maravilhosa novela “La Giara” (A Talha), que mais não é que uma fábula sobre o poder, os seus jogos e a sua fragilidade, novela que foi incluída no filme em episódios “Kaos” dos irmãos Taviani. Para quem tiver paciência de perder - eu diria de ganhar - 40 e p0ucos minutos, aqui fica o link para visionarem o que acontece à tão ansiosamente esperada talha nova de Don Lollò Zirafa, esta para azeite, que não para vinho:
 

 A prova de vinhos, fosse pela atmosfera e ambiente do local, pelo clima ameno escolhido “lá em cima” a dedo para aquele dia, pela qualidade do vinho ou pela companhia, seguramente pelo perfeito casamento entre tudo isto, ficou-me gravada como um elemento pacificador da minha vida. De qualquer maneira, seja um “Vinha”, um “Monte” ou um “Herdade”, um vinho das Servas é sempre uma experiência a repetir.

Apraz-me lembrar aqui que o meu ex-colega e amigo (não ex) Miguel Malheiro Garcia, que de vinhos entende, recomendava aos seus colegas, nabos na matéria, para em qualquer situação de dúvida na escolha de um bom vinho, para terem a certeza de fazer boa figura, deveriam pedir, como se entendidos fossem, um Herdade das Servas. Como o compreendi melhor agora!

Quanto à descida à adega durante a visita guiada que nos foi patrocinada, juntamente com um casal americano e um seu amigo português, terei de pedir desculpa à jovem Senhora que gentilmente nos serviu de guia, mas eu não estive lá, ou seja, estive mas não estive. Eu explico. Já na sala, adjacente ao restaurante, onde fomos recebidos, a minha atenção foi atraída por uma velha bomba manual de trasfega que me transportou à adega dos meus Avós maternos, aos seus cheiros e ruídos (o click-clack da prensa, meu Deus!), e a tudo o que fiz, na adega e fora dela, há mais de 50 anos, nas faldas da Serra de Montejunto. Quer dizer, eu vi as cubas de inox a brilharem, a maquinaria a fazer tudo aquilo que então se fazia à mão, a nova tecnologia ao serviço de uma muito mais alta qualidade, adivinhando até o que se passava no laboratório, tendo apreciado e muito, que não sou burro!

Mas vi-me menino a assistir à cava das vinhas, à semeadura do tremoço entre as alas das cepas, à poda e à empa, ao juntar e atar os molhos de vides a pôr ao seco para cozerem semanalmente o pão no forno da casa, aos trabalhos da enxofra e da sulfatagem, duas ou três vezes repetidos - que o fantasma da filoxera ainda estava na memória dos homens -, que arruinariam até os pulmões do Tarzan, o enterrar do tremoço já crescido para azotar as leivas, junto ao adubo e ao amónio usados parcimoniosamente, as contrariedades por um não pouco frequente desavinho, o rezar para que chovesse agora, mas pouco, e para que não chovesse e o Sol picasse depois, mas sem exagero, o lavar da adega e de todos os seus pertences quando pelo pintar dos cachos se percebia que a vindima se avizinhava; nos cascos mais pequenos cujo postigo não permitia a entrada de um homem, lá ia o rapazeco em cuecas, munido de escova, água e óleo de cotovelo, numa tarefa tão repetida que já não sabia distinguir a água do próprio suor. Depois a chegada do tanoeiro que vinha ajeitar arcos e aduelas a pipas, tonéis, barricas, cascos, celhas, dornas e cestos de pau, o ensebar dos mecanismos da prensa e da bomba, a queima das tiras de estopa enxofradas, para acabar com bactérias e fungos nas vasilhas que repousavam nos seus dormentes sobre os canteiros. E vinha então a vindima, a chegada dos malteses que eram aquartelados no palheiro durante as duas ou três semanas da sua duração, os cestos de vime, as tesouras, o corte segurando bem o cacho com a outra mão, o carregar a tina na carroça da mula ou nos cestos de pau pendentes da cada lado dos burros alugados, como homens à jorna, nas fazendas onde a carroça não chegava, o descarregar as uvas para o lagar, a pisa com as calças arregaçadas acima do joelho, o mosto a escorrer para a pia, a trasfega para os tonéis se era branco e para as balsas se era tinto, levando em cima com as peles e engaços que lhe dariam cor e taninos, o armar o pé à volta do fuso da prensa, o passar a corda bem apertada à sua volta, o colocar as meias luas de madeira em cima e apertar a prensa até os braços doerem e os click-clacks se tornarem mais espaçados e os respiros mais fundos.

Desfazer o pé a machado e voltar a fazê-lo, que o último, regado, já só dava água-pé. No fundo da pia não podia ficar réstia de mosto e era outra vez o rapazeco que entrava descalço e, com um esfarro, recolhia as últimas gotas. Acontecia por vezes que o trabalho se prolongasse pela noite dentro à luz dos Petromax da casa Hipólito de Torres Vedras, e depois do banho com mangueira, o colchão de capelos de milho era a antecâmara do paraíso.

Lembro-me de na Adega das Servas ter explicado à Carlota o que era e para que servia o pesa mosto que alguém estava a usar, e de lhe ter dito que, como as uvas tintas são brancas por dentro produziriam vinho branco se não passassem algum tempo nas balsas em contacto com as suas peles para receberem delas a cor. Da minha Bíblia não escrita passei-lhe duas noções, esperando que se venha a lembrar. Esqueceu-me de lhe dizer que as peles das uvas, depois de secas na eira ou no terraço, em cima de panais de serapilheira, se chamavam de folhelho e serviam, misturados com outros restos de uma casa de lavoura, de ração para porcos, mulas e até coelhos, porque, naquele tempo, não se deitava nada fora. Mas já seria uma outra história. E eu que não estive lá durante a visita, e disso já pedi desculpa à nossa amável guia, só me recordo de ela ter dito uma coisa aos americanos, que eu não teria dito se estivesse no seu lugar: que os batoques que fechavam as barricas de carvalho francês e americano onde os néctares repousavam, melhorando e envelhecendo, eram de silicone, porque os de cortiça, para além de durarem menos, lhes poderiam passar algum sabor não conveniente. Ignorância minha ou, mesmo sendo verdade, temos todos a obrigação de defender aquilo que um meu amigo alentejano chamava “as nossas barras de ouro cortadas a machado”?

Mas vamos para a mesa, a “boa mesa”, que para isso também viemos. A sala do recém aberto restaurante é acolhedora, sóbria e elegante sem ser intimidatória. O serviço, cortês, silencioso qb e eficiente. Das entradas, e eram tantas e deliciosas, ficaram na memória as pataniscas de farinheira, que alguém nos disse, quase em segredo, chamarem-se no Alentejo “papa ratos”, os cogumelos salteados, os variados enchidos e queijos, os ovos mexidos também com massa de farinheira, cremosos como se deve, sem esquecer o principal que para mim é o pão, e desta vez, o bom pão alentejano que, se não mo tirarem da frente, desaparece num abrir e fechar de olhos. Restaurante que não tenha bom pão e toilettes a brilhar, pode ter a melhor comida do mundo e resplandecer de estrelas de pneus, mas não volto lá.

Depois o cação de coentrada, cozinhado no ponto justo, o pão frito, aquele molhinho… Divino, diria o nosso escritor diplomata se descesse de Tormes a Estremoz, farto das favas do Jacinto. Seguiu-se o entrecosto com migas, aquele macio, estas com a justa consistência e tempero, que, como todo o resto, honrou quem estava na cozinha, e sabemos bem qual cozinha de milagres (São rosas… diria a Rainha Santa) teve como escola. Dos vinhos, escolhidos sabiamente para cada prato, já foi dito quase tudo, mas mais uma nota devo deixar: não tenho o hábito de beber tanto, e quando o faço geralmente arrependo-me pelas consequências, e não estou a pensar na GNR. Neste caso juntei o prazer do palato e da goela ao bem-estar que de mim se apoderou o resto do dia. Falta só a sobremesa, e confesso que quando vi as seis ou sete porções de doces no meu prato, todos amarelinhos e tentadores, eu que sou maldizente, dei comigo a interrogar-me: vou agora comer tudo isto que, para mais, é feito com uma coisa que sai da cloaca das galinhas? Provei o primeiro, deve ter sido encharcada, depois o toucinho-do-céu e, para me convencer a continuar, lembrei-me que os ovos têm casca e que os meus receios eram infundados, e só não lambi o prato por decoro. Muito obrigado e bem haja, Sr. Paulo Baía!

Se tivesse que resumir tudo numa só palavra diria “Voltar”, desta vez sem a mania de velho defensor da cortiça, e vamos agora mudar de concelho que outras aventuras nos esperam nas Festas dos Capuchos, em Vila Viçosa. Mas como disse acima, fica para a semana.

Abraço.

Lisboa, 25 de Setembro de 2014
Octávio Santos