quinta-feira, 16 de outubro de 2014

De como o cronista, desmentindo-se e contradizendo-se, se confessa finalmente orgulhoso de ser português, e reflecte sobre o legítimo orgulho dos outros povos em serem italianos, franceses, turcos, russos, soviéticos e europeus.


  Ao anónimo que,  em comentário à minha crónica de 2/10,  me pergunta: “ - É ou não verdade que já chegou a escrever maravilhas de uma certa coisa, e algum tempo depois disse dela cobras e lagartos?”,  eu respondo que sim, que tem toda a razão. E isto a propósito de uma afirmação que todos ouvimos a alguém todos os dias, afirmação que eu, que me lembre, nunca me saiu pela boca fora: “- Ai, eu tenho tanto orgulho em ser português!”. E não é esta afirmação exclusiva do nosso Portugal, já que a maioria dos cidadãos da maioria dos outros países repete regularmente o mesmo, e digo a maioria dos outros países porque parece, segundo o infalível Ricardo Araújo Pereira, que não há nenhum espanhol que se declare orgulhoso dessa sua condição. Como tenho para mim que uma das obrigações da cidadania é a denúncia daquilo que não está bem, em nenhum dos até agora 46 textos deste meu blogue deixei de o fazer em maior ou menor grau, e o de hoje não vai ser excepção, embora tudo sirva apenas para ilustrar o porquê do meu tardio grito de “Ai, eu tenho tanto orgulho em ser português!”. 

Já lancei o berro e não vou voltar atrás porque, como dizia alguém, as palavras e as pedras não voltam depois de lançadas, e é por causa de palavras que ouvi ou li nestes últimos dias que me apetecia não o ter lançado, porque me pergunto que tipo de orgulho te pode dar ler a entrevista, com honras de capa, com foto e tudo, numa das mais lidas revistas nacionais, feita ao rapazinho de Mem Martins que luta pelo Califado, aprendeu a matar fácil em nome de uma religião e promete regressar a Portugal com uma bandeira negra numa mão e uma Az 47 na outra para castigar os infiéis e atrasar uns séculos o relógio do mundo? Tal como nos maços de tabaco, a revista deveria ser obrigada a apor um dístico avisando:  “Esta entrevista é perigosa e pode até ter a morte como efeito colateral”. E já que falei de revistas nacionais, não me orgulhei de ver a foto da companheira do malogrado Filho de Judite de Sousa, no funeral do jovem actor agora falecido, com a legenda “A misteriosa amiga de Rodrigo de Menezes”. Será que o jornalista e o fotógrafo responsáveis estão orgulhosos? Falando de morte, também não me orgulhei de ouvir eminente e respeitado comentador televisivo desviar para canto perguntas sobre o Meco, dando a entender que as praxes e as suas sequelas são assuntos internos das Universidades. Do Dr. Vitor Louçã Gaspar eu não deveria dizer nada porque ele é como eu, um dia diz uma coisa e outro dia outra, com a diferença que a mim ninguém me paga para o fazer. Quando era a Goldman Sachs dizia o que dizia e chegámos a isto, agora que é o FMI diz o que diz, isto é, o contrário, única forma, segundo o seu novo credo, de sair do buraco em que nos meteu. E ficámos todos de boca aberta ao saber que qualquer pessoa com o vírus de Ébola - que já matou em África quase 5 mil pessoas, e no mundo dito civilizado, digamos “dos brancos”, duas ou três (+ um cão) - mesmo que acertado a 100%, não pode, em Portugal, ser internado contra a sua vontade, quanto mais isolado e posto de quarentena, porque a Constituição não o permite? E não vou falar do BES, da PT, dos ENVC, da escola ou da justiça, vou mas é atravessar a fronteira senão a crónica começa a estender-se e não chego onde queria chegar. 

Falando de intolerância, não é necessário ir até à faixa de Gaza ou ao Califado, porque todos nós sabemos o que são as modas e que hoje, e só para citar dois exemplos que ouvi ao Eng.º Ângelo Correia, fumadores e gordos estão relegados para a periferia da sociedade que lhes aponta o dedo como criaturas indesejáveis, esperando eu, que não fumo e não sou ainda gordo, que não passasse daí a intolerância dos “puros”, mas afinal enganei-me porque a semana passada na periferia de Nápoles, um miúdo de 14 anos, gordo, foi a uma bomba de gasolina atestar o depósito do seu “motorino”, tendo-o, aquele que o atendeu, jovem de 24 anos, apelidado de balão inchado e chamado dois amigos da sua mesma idade com quem estava a conversar antes, para o ajudarem na tarefa, e dizendo-lhe que o iam inchar ainda mais lhe enfiaram o tubo do compressor de encher pneus no rabo e dispararam com a pressão que estava regulada, estando agora a criança no hospital em risco de vida após uma operação de sete horas, um dos jovens “estetas” na prisão e os outros dois em casa porque “só” ajudaram durante o que os três definem como “uma brincadeira”, com um pequeno pormenor próprio dos nossos dias; enquanto um o agarrava o outro filmava a cena, que acabou no facebook. “Ai, eu tenho tanto orgulho em ser italiano!” deve-se ter ouvido de Bolzano a Siracusa.

Sei, porque existem provas escritas por um diplomata francês que viveu em Portugal por força de uma Comissão de Serviço na Embaixada de França em Lisboa, e limito-me a repetir o que o Embaixador Jacques Bayens, escreveu em 1975, que um dos seus colegas gauleses acreditado no nosso país, mandou retirar os azulejos do lambril da sala de jantar do Palácio do Marquês de Abrantes, que remonta ao século XVII e é desde 1870 Residência dos Embaixadores de França em Lisboa, fazendo-os substituir por cópias da Viúva Lamego, e levando consigo os originais para a sua moradia particular nos arredores de Paris, mais precisamente em Ozoir-la-Ferrière. “Ai, eu tenho tanto orgulho em ser francês!” ouve-se clamar de Cayenne, na Guiana, até Saint-Denis, na Réunion, passando por Paris e, bien sûr,  Ozoir-la-Ferrière.

 Mas vamos até ao Califado, para assistir à tomada militar da cidade de Kobane, no Curdistão sírio, por parte das hordas do ISIS, falando-se já de uma nova Srebrenica, com os yazidis e curdos em geral no papel que foi dos bósnios, e ver bem perto, do outro lado da fronteira, junto da cidade de Mursitpinar, no Curdistão turco, as poderosas forças armadas turcas no seu papel de observadores neutros, todos sabendo da “simpatia” que têm pelos curdos e da proximidade ideológica do Presidente Erdogan pelos integralistas defensores da pureza do islão. O certo é que a Turquia é um país da NATO e que a NATO tem as suas regras, e ele há coisas que têm de ser respeitadas (a). “Ai, eu tenho tanto orgulho em ser turco!” soa em uníssono de Edirna ao Monte Ararat.

Parece que os novos acontecimentos que ocupam as páginas dos jornais e revistas, como os perigos da propagação do vírus de Ébola em países desenvolvidos, o avanço do Califado e as suas imagens de terror, a vitória de António Costa, a esperança que todos depositamos na nova era Fernando Santos, a transferência de Zeinal Bava - cujo sorriso, entre o provocador e o alarve, que era tão apreciado na “República da Impunidade”, sobretudo no gabinete do Dr. Ricardo Salgado, não agradou no país irmão, esperando agora que seja apreciado entre mariachis - da OI ao Grupo Carso, de Carlos Slim, puseram uma surdina à avançada militar russa tendo em vista a reconstituição da URSS, sonho renascentista “putiniano”, a qual, após a anexação da Crimeia para testar a reacção de americanos e europeus, que assobiaram para o lado como previsto pela nova nomenklatura, vai avançado os seus peões sem pressa na certeza que lá chegarão, e que fazendo um passo para trás e dois para a frente vão amansando os democráticos adversários que não estão para chatices, já as tendo que chegue, sobretudo dentro das próprias fronteiras. A notícia que o partido pró-russo na Letónia vai à frente nas sondagens não deve ter incomodado ninguém, já que os países bálticos são pequeninos e pobres, e quando chegar a vez da Polónia logo se vê, que com essa fia mais fino pois que pertence à NATO e esta tem as suas regras, e ai de quem não as respeite (a). “Ai, eu tenho tanto orgulho em ser russo!” que ressoa de Kaliningrad ao Kamchatka, vai ter como eco “Ai, eu tenho tanto orgulho em ser soviético!" que  responderá  de Kiev às Sakhalinas.

Mas reentremos em Pátria, que já demos uma bela volta fora de portas, para explicar a minha reviravolta, infelizmente por um acontecimento trágico e negativo: a morte de Fernando de Sousa, que provocou uma onda de verdadeira emoção entre colegas, amigos e espectadores, tendo o falecido recebido os maiores elogios e homenagens, seja em Portugal que em Bruxelas, e mesmo noutras capitais europeias. Que Fernando de Sousa era um jornalista todos sabiam, que tinha 65 anos e que a morte o apanhou a trabalhar em Milão, onde fazia para a SIC a cobertura da Cimeira de Chefes de Governo Europeu sobre o emprego, foi largamente noticiado. Começou a sua carreira no Comércio do Porto, passando depois para a RTP/RDP, para a BBC e para o Diário de Notícias, para o qual abriu a primeira delegação de um órgão de comunicação social português em Bruxelas. Foi também correspondente em Londres e na Alemanha. Passou para a SIC desde os primeiros tempos da network de Carnaxide, tendo-se fixado na capital belga.

Todos lamentaram o precoce desaparecimento do jornalista, e digo precoce referindo-me não só à sua idade mas também à sua actividade, já que tinha afirmado a uma colega da Associação da Imprensa Internacional em Bruxelas que lhe perguntou o que tencionava fazer depois, com um seco: - O mesmo de sempre, isto! O seu lema, no dizer dos seus colaboradores mais chegados, era “tudo se vai compor”, não no sentido de atamancar, mas na certeza que fazendo sempre mais e melhor as coisas acabam por sair bem. E era o que acontecia com o trabalho de Fernando de Sousa que, para nós espectadores, parecia fácil e natural. De tudo o que foi dito sobre a sua pessoa e o seu trabalho, não importando por quem, dado que das personalidades que se pronunciaram poucos lhe chegarão aos calcanhares, destaco, citando sem personalizar:

- Que era, com a sua capacidade de fazer rede e separar a notícia da opinião com calma, isenção, rigor e qualidade, um activo, não só da SIC ou da televisão em geral, mas do nosso país, em Bruxelas; 

- Figura destacada e respeitada do jornalismo português e europeu, fazia aos seus interlocutores as perguntas mais difíceis com a serenidade que só os grandes se podem permitir; 

- Trouxe a Europa até Portugal e vice-versa, ciente da importância do seu papel de jornalista na sociedade, deixando um legado de isenção, objectividade, exigência e espírito crítico tão necessários à construção dessa mesma Europa; 

- Sabia tudo, na medida em que alguém possa saber tudo, mas, se não sabia, fazia o impossível por isso; 

- Abriu-nos as portas de um mundo novo ao dar-nos uma visão da Europa que contribuiu para criar uma consciência quotidiana e reforçada do sentimento europeu. 

Foi justamente alvo de sentidas homenagens, e estou ainda a ver todos os deputados da Assembleia da República em pé e em silêncio, o que aconteceu também em Bruxelas, com os seus colegas, na sede da Associação da Imprensa Internacional, mas foi a sua colega Clara de Sousa quem melhor nos soube caracterizar o jornalista e o Homem: 

«A morte de um colega é hoje notícia. Ninguém está preparado para o inesperado, que é uma vida roubada. Ainda ontem (8) entrava em nossas casas, com reportagem da Cimeira Europeia do Emprego, em Milão. Guardo a memória do camarada, cavalheiro, profissional. Sempre pronto a ensinar. Ou aprender. Que sabia “estar”. A quem bastava “ser”. E sempre com um sorriso. Até sempre Fernando!». 

Termino dizendo que Fernando de Sousa era um homem de valor, no sentido de qualidade que alcança a excelência, que obtém a primazia ou dignidade superior, e acrescentando uma reflexão: temos tantos portugueses falados lá fora, embora à maioria seja atribuído um valor que na verdade não têm. No caso concreto do Fernando de Sousa, mesmo só o conhecendo por ver e ouvir algumas das suas reportagens, ficava com a sensação de estar a aprender coisas importantes porque as transmitia com clareza e carácter pedagógico, e como até era uma figura familiar que entrava sorrindo pelas nossas casas quase todos os dias, teve, como prova a Ordem do Infante com que foi agraciado, e terá sempre,  o justo reconhecimento. Mas atrevo-me a perguntar: - Quantos há e quantos houve que tiveram valor, fizeram e deram o que de melhor o ser humano tem, e não foram, nem serão nunca reconhecidos?  

E foi este Homem bom que sabia “estar” e lhe bastava “ser” que me obrigou a bradar alto agora aquilo que eu nunca tinha dito antes, nem em sussurro: “Ai, eu tenho tanto orgulho em ser português!”, para que se ouça do Corvo a Vila Real de Santo António. E já agora, lembrando-me de Fernando de Sousa, a quem estou grato pela minha viragem, e  porque sei que lhe daria prazer,  dizer também: “Ai, eu tenho tanto orgulho em ser europeu”, na esperança que vá saltitando de ouvido em ouvido de Lisboa a Sebastopol, sem pôr qualquer limite à divina providência e à boa vontade dos Homens. Com H grande como Fernando de Sousa, português exemplar. 

(a) Ontem a aviação turca bombardeou posições curdas. NATO or not NATO?

Abraço.

Lisboa, 16 de Outubro de 2014
Octávio Santos