quinta-feira, 23 de outubro de 2014

O Palito


Sento-me para escrever às 08.05 desta manhã de domingo e, por uma vez, com uma ideia precisa na cabeça, mas levanto-me para abrir a janela e o ar fresco que vem de fora junto com o chilrear da passarada que a esta hora ainda frequenta os jacarandás da Avenida, alguns tímida e novamente a florir enganados por este tempo que Deus já não comanda, e apetece-me largar tudo e ir até à Gulbenkian, por onde passo quase todas as manhãs, o que seria muito mais agradável e me daria outra disposição para passar o resto deste dia santo marcado pela beatificação de Paulo VI, e ajudaria também o meu processo de  emagrecimento já que, desde que usufruo de uma “Pensão de Velhice”,  me sinto uma gordura de Estado, tendo até  intenção de passar pelo Observatório Nacional de Saúde, pelo Observatório Português dos Sistemas de Saúde, pelo Observatório da Doença e Morbilidade, pelo Observatório dos Medicamentos e dos Produtos da Saúde, pelo Observatório da Vida, pelo Observatório Nacional dos Diabetes, pelo Observatório Médico, pelo Observatório Alzheimer,  estando em dúvida se passar pelo Observatório de Reumatologia ou pelo Observatório Nacional das Doenças Reumáticas, na esperança que me possam fornecer o fruto das suas observações, que alguma coisa hão-de observar dado o que custam aos contribuintes, para que, aplicando-os, eu me sinta menos pesado física e socialmente.

Mas resisto à tentação e não saio. Sinto como que a obrigação de escrever e, desta vez decidi-me por um pequeno conto, uma short story como diriam os leitores de Alice Munro, tendo começado por cortar no título pois que descobri que os meus títulos longos faziam o leitor parar logo que terminada a sua leitura, deixando o texto para mais tarde ou, o mais certo, para as calendas gregas. Aproveito para Vos dizer, como não invento nada, que os títulos longos os fui buscar àqueles dos filmes da Senhora Arcangela Felice Assunta Wertmüller von Elgg Spanol von Braucich, que mais não é que a realizadora italiana Lina Wertwmüller a quem devemos os inesquecíveis “Filme de amor e de anarquia, ou seja, esta manhã às 10 na rua das Flores, na conhecida casa de passe…” ou “Facto de sangue entre dois homens por causa de uma viúva - suspeitam-se movimentos políticos”, mas tendo descoberto agora que o seu primeiro filme, datado de 1963, se intitulava “Os Basiliscos”, voltei a imitá-la com “O Palito” que segue imediatamente para não Vos roubar mais tempo com o meu parlapiê escanifobético e inutil, advertindo-os que, embora as suas personagens sejam reais, felizmente vivas e de boa saúde, a trama é completamente inventada, não querendo eu ser responsabilizado por qualquer ideia menos sã que me tenha passado pela mente que, neste momento, aloja poucas de outra tipologia. Vamos então ao conto, esperando que este intróito não vos tenha já desmobilizado à semelhança dos títulos longos.


O Palito

Quando o programa do calendário das Visitas de Estado do Papa Francisco para aquele ano chegou aos ouvidos dos prelados portugueses que povoam o Vaticano - onde, no dizer de quem muito o frequentou, se escuta com as orelhas coladas às portas -, para além do natural júbilo de saberem que Sua Santidade passaria 24 horas em Portugal na sequência da sua Visita Oficial de 3 dias à Guiné Equatorial, talvez para não misturar línguas, logo iniciou uma frenética troca de telegramas entre a nossa Embaixada junto da Santa Sé e o Palácio das Necessidades para pôr em movimento os milhentos intervenientes que teriam a obrigação, cada um no seu pelouro e com a sua tarefa, de fazer com que a Visita corresse da melhor maneira possível, o mesmo acontecendo entre os nossos altos dignatários eclesiásticos em Roma e o Patriarcado de Lisboa. O pobre do Núncio Apostólico, esse, andava numa fona entre as Avenidas Novas, o Largo do Rilvas e o Campo de Santa Clara, uma vida de inferno, que Deus me perdoe a infeliz e desajustada expressão.

Ele é de todo normal e compreensível que ambas as partes desejem que este tipo de Visita Oficial de Estado seja um sucesso e, como tal, é necessário estar atento e cuidar até de pequenos pormenores que, parecendo que não, podem ter uma importância decisiva no desenrolar da Visita. Sei que é descabido, não vem a talho de foice e podem até alguns pensar que é blasfemo lembrá-lo no contexto desta Visita mas, no tempo da outra Senhora, houve Adidos e Secretários de Embaixada do MNE encarregados de escolher e recrutar, nos bordéis de alto coturno da então Capital do Império, Senhoras dispostas a alargar os seus favores (e, calhando, as pernas) a Chefes de Estado, e inteiras comitivas, de país amigo no tempo em que Timor não era um estorvo. Desculpem a parva recordação que não deve ter deixado traça nos arquivos da Nação, porque há operações “submarinas” que não convém registar para memória futura.

É sabido que, na alta opinião da nobreza clerical portuguesa, e não só, o Papa Francisco é tido por um simplório - basta olhar-lhe para os sapatos -, e que tem comportamentos mais côngruos com o ambiente das favelas de Buenos Aires, as chamadas Villas Miséria (Villa 31, Lugano, etc.), cujos habitantes ele diz “acariciar todos os dias com as suas lágrimas”, que com aqueles habituais dentro da Muralha Leonina. Ora, entre esses comportamentos, há um que parece ter em parte determinado a escolha do Papa em habitar a Casa de Santa Marta e não os seus aposentos de função no Palácio Apostólico e, especialmente, a de frequentar o seu refeitório junto com os comensais do costume, e é o de, pasmem, palitar os dentes após cada repasto. Acontece que Francisco se habituou a uns palitos feitos com madeira de Cipreste-da-Patagónia, conhecido localmente como Alerce, desde uma sua visita àquela Região, onde, e isto não sei precisar, entre La Pampa e a Terra do Fogo, foi homenageado com um “asado en el cuero” por causa de uma vitória histórica do Clube Atlético San Lorenzo de Almagro contra os eternos rivais do Huracán, usando, desde então, religiosa e diariamente tais palitos, facto que alertou as autoridades portuguesas que começaram desde logo a fazer todas as diligências necessárias para garantir a presença do indispensável utensílio, com certificado de origem fitogeográfica, na mesa do Papa em Lisboa. Confirmado que Francisco tomaria uma só refeição em solo lusitano, ordens foram dadas para que, dentro do rigoroso controle orçamental a que a coisa pública está sujeita, fosse encomendado um só palito, e que excepcionalmente, desta vez pela urgência e insignificância da aquisição, fosse dispensada a abertura de um concurso público, seja nacional que internacional.

Assim, o MNE convocou o Embaixador da Argentina em Lisboa para lhe comunicar que as autoridades portuguesas iriam solicitar o fornecimento do citado palito às autoridades Federais, Regionais da Patagónia e Provinciais de La Pampa, Neuquén, Rio Negro, Chubut, Santa Cruz e Terra do Fogo, por intermédio do Observatório do Ordenamento do Território, do Observatório do Ambiente, do Observatório dos Territórios Rurais, do Observatório dos Mercados Rurais, do Observatório da Natureza e do Observatório para a Gestão da Áreas Protegidas, os quais iriam contactar os Observatórios seus congéneres regionais e provinciais da Patagónia, tendo solicitado a S.Exa. o Embaixador que, de tudo isto desse conhecimento ao seu Governo, fazendo-o sentir a importância crucial de todo o processo nas relações entre os dois países e, por concomitância, entre ambos e a Santa Sé. Para não Vos fazer perder tempo com a leitura de toda a correspondência trocada por força destas diligências (se me pedirem muito posso facultá-la pontualmente aos interessados), levarei apenas ao Vosso conhecimento os pontos mais importantes para a solução desta pendência.

- O Ministério de Relaciones Exteriores y Culto da Argentina, em Nota enviada ao MNE, informou que, no seu país, não existindo tais Observatórios, fossem Federais, Regionais ou Provinciais, dado que, com os cortes consignados no Orçamento de Estado, não tinha sido possível mantê-los, o Governo central tinha já encarregado as autoridades da Região da Patagónia de fornecer uma resposta em tempo útil às competentes autoridades portuguesas.

- Foi mais tarde recebida uma comunicação do Alcaide de Neuquén, informando que, dada a especificidade e qualidade do produto, seria necessário abater um Alerce para dele retirar, de uma zona particular do seu tronco, um palito que tivesse a perfeição requerida, o que teria um custo, alto sim, mas em consonância com a excelência das relações que uniam Portugal e a Santa Sé, as quais não poderiam ser beliscadas por qualquer eventual falha protocolar.

- Posteriormente, foi Lisboa informada pelas autoridades Regionais da Patagónia, que, no processo de escolha do centenário Alerce a abater, fôra pedido conselho ao Banco do Sagrado Coração de Jesus, de Ushuaia, o qual, tendo produzido um estudo documentado sobre o assunto e individualizado a árvore ideal a abater, apresentara a conta de tal serviço de consultoria, cifrado em 4 milhões de euros, a serem depositados em partes iguais nas contas pessoais de 4 dos seus administradores, em praças bancárias off-shore a determinar, despesa essa a acrescentar ao valor real da operação, ou seja, o abate do Alerce, o seu desbaste, a confecção do palito, a sua embalagem, para além de todos os trâmites legais de exportação, valor esse estimado num milhão de euros, FOB.

- Posto perante factura com tais parcelas e montante, o Governo português tomou a decisão de não aceitar o negócio, anulando a encomenda por Nota entregue ao Embaixador da Argentina, na qual se lamentava a inexistência de Observatórios naquele país, se compreendia o elevado custo do palito tendo em conta todas as etapas técnicas indispensáveis à sua produção, mas que estando também Portugal a sofrer as consequências de um Orçamento de Estado que obrigava a muitos constrangimentos, nos víamos na contingência de ter de anular a encomenda, não sem fazer notar, usando os habituais cuidados diplomáticos, a estranheza da parte portuguesa quanto à intervenção de um banco na operação, para mais não solicitada, que onerava a transacção em 4/5 do seu valor comercial, pese embora tivesse o citado banco um nome com fortes ligações afectivas à Santa Sé, tal não justificava um procedimento que, acrescentava a Nota, não seria possível nem tolerado em Portugal, podendo ter até reflexos negativos no relacionamento exemplar entre Portugal e a Argentina.

- Em aflição de causa e já muito em cima da hora da Visita, o MNE solicitou a intervenção do Observatório para as Crenças Religiosas e do Observatório de Acompanhamento do Problema da Degradação dos Povoamentos do Sobreiro e Azinheira, para em conjunto encontrarem uma solução ao mesmo tempo urgente e digna para o problema.

- Nesta conformidade, ambos os acima citados Observatórios foram céleres na resposta e concordes em realizar um palito de sobreiro, a apresentar a Sua Santidade num paliteiro cunicular da Bordalo Pinheiro, dentro de um pequeno estojo em ouro trabalhado em filigrana à maneira tradicional portuguesa, no final da sua refeição em solo nacional, matando assim três coelhos com uma cajadada ao dar a conhecer ao Papa três produtos Made in Portugal.

Acontece que a Visita Oficial se realizou, tudo correu a contento das autoridades dos dois Estados, com o Protocolo de Estado sempre com o coração nas mãos não fosse o Papa fazer uma das dele. E não é que fez mesmo! Chegada a hora do banquete e estando já tudo preparado no Palácio da Ajuda, Francisco fez saber do seu desejo de ir almoçar a uma das muitas Sopa dos Pobres que pululam na capital e de que uma certa Lisboa se parece orgulhar, e, tendo sido muito firme no seu propósito, lá tiveram de, a contra gosto, lhe dar satisfação. Tudo se passou num refeitório anexo a uma igreja nas Galinheiras, ali para os lados da Musgueira e, Francisco, que parecia feliz entre os últimos, comeu, bebeu, falou com todos e, sobretudo, ouviu-os. Finda que foi a refeição, e antes que o funcionário do Protocolo se adiantasse com o estojo de ouro para apresentar o palito ao Papa, pedindo a todos os santinhos que ele não desse pela falsificação, Sua Santidade tirou do bolso da sua sotaina uma caixinha de plástico azul com as armas do Vaticano, da qual retirou o seu palito predilecto de Alerce, ou Cipreste-da-Patagónia, e com ele limpou os dentes dos fios de bacalhau das pataniscas que, acompanhadas de um arroz malandrinho, tinha partilhado com dezenas de habitantes menos afortunados de Lisboa, os quais, durante quase uma hora se mostraram felizes e estou em crer que não estavam a fingir. E, no meio do alívio geral do Protocolo de Estado, que viu um enorme peso sair-lhe de cima, a Visita Oficial lá teve o seu epílogo sem machucar, ao de leve que fosse, o bom entendimento entre os dois Estados.

Como em todas as histórias que acabam bem, como foi o caso, pensando na Argentina, pergunto-me como é que um país de tão nobres tradições, com um povo tão legitimamente orgulhoso, que deu ao mundo San Martin, Carlos Gardel, Che Guevara, Borges, Cortazar,  Sabato, Fangio, Piazzola, Di Stéfano, Maradona, Quino, Barenboim, Mercedes Sosa, Soledad Villamil, as Mães da Praça de Maio e, agora, Jorge Mário Bergoglio, pode sobreviver sem o apoio e conforto de pelo menos uma boa dúzia dos 119 Observatórios de que Portugal se orgulha e que tanto servem para o bem estar e felicidade da população, e de como é que as autoridades permitem que um banco privado, tenha ele o nome que tiver, possa actuar daquela maneira, quase no limite do racket ? Se não fosse politicamente incorrecto, eu diria que é nestas coisas que se notam as diferenças abissais que existem entre um país da UE e um da América Latina. Mas nem todos têm a sorte de nascer do lado certo do mundo!


Abraço.

Lisboa, 23 de Outubro de 2014
Octávio Santos

PS: Acho que tinha sido melhor se eu tivesse ido, nesta manhã de domingo, tentar derreter as minhas gorduras no Jardim da Gulbenkian, em vez de ficar aqui a escrever um conto que não interessa nem ao Menino Jesus. Com o devido respeito!