quinta-feira, 13 de novembro de 2014

De como o cronista passeando entre a natureza e a arte entra clandestinamente numa instalação soit-disant artística e na ânsia de compreender uma certa arte moderna vem aspirado por um buraco negro acabando por encontrar-se numa atmosfera surreal onde só faltava Alice.


Continuo convencido que é a beleza que nos há-de salvar, e refiro-me a tudo o que pode ser belo e a tudo o que se pode ainda salvar. A natureza tenho-a todas as manhãs, qual segundo pequeno-almoço que me dá oxigénio para o resto do dia, quando transponho o portão dos Jardins da Gulbenkian, e a beleza dessa, que não se discute, salva-me não só do que se passa cá fora, mas também do que me enche a cabeça. Moldura ideal para aquela outra beleza que os homens souberam criar, extasia-se ela própria perante todas as suas manifestações, desde o grupo que pratica Tao Yin, Pa Kua, Lian Gong ou Shaolin Quan, e desculpem a minha ignorância destas chinesices, às esculturas que a povoam, à arquitectura dos edifícios, que a envolve, e àquela da paisagem, que a modifica. 

E este passear por entre todas estas formas de beleza, tão superiores a ti que te reduzem ao essencial, tornando-te melhor, faz-me recordar um provérbio judeu que hoje, infelizmente, por vontade dos homens ou de quem os comanda, nos faz duvidar da sua justeza: “Somos como as azeitonas, damos o nosso melhor depois de esmagados”. Vontade dos homens que, na ânsia de não copiarem coisas já vistas e “antigas” se põem a inventar novas formas, algumas denominadas instalações, que muitas das vezes nada acrescenta àquela beleza que, mesmo se subjectiva, tem bases sólidas e perceptíveis pela gente comum que é afinal a grande maioria dos habitantes do Planeta Azul. Desta nova arte, que não é assim tão nova, me referi largamente no meu texto de 27/2 e, como sempre, escrevi coisas exageradas facilmente criticáveis mas das quais não me arrependo, tanto que continuarei a fazê-lo convencido que, mesmo que vozes de burro não cheguem ao céu, alguém cá em baixo, agora ou mais tarde, se lembrará de ter ouvido zurrar, som que lhe ficará no ouvido.
Assim, fico muitas vezes a olhar para o monumento erigido à memória de Azeredo Perdigão, da autoria de Pedro Cabrita Reis, que mais não é que a estrutura em cimento armado de uma casa inacabada, a qual, para mim que trabalhei na construção civil, embora compreendendo a mensagem do artista, é apenas isso, ainda por cima inabitável. Mas fico a olhar para ela (e também para uma Senhora doce que lá deixa todos os dias comida para um gato preto) com a ideia de a aproveitar como base para uma instalação que, estou certo, atrairia mais expectadores que muitas das instalações que aparecem por lá, e que eu, com a minha insensibilidade artística, olho como boi para palácio. Sem falar de uma que nasceu e morreu rapidamente sem deixar saudades, a qual se materializava em réguas lineares e tês em madeira, algumas espelhadas, que andaram por ali amontoadas nos caixotes do lixo, nos bancos, apoiadas nas árvores ou por terra, fixo-me naquela que se está a eternizar, o que não é costume, a qual consiste em dois Zebros negros encostados a flutuar no lago, tendo em cima atravessada uma pesadíssima viga de ferro em “I”, cromada, barcos e viga hoje cobertos pela patine natural deixada pelos patos-reais, gansos-do-Egipto, galinhas-de-água e até gaivotas que, aproveitando o poiso, neles defecam.
Ao passar as portas da arte imóvel que alberga aquela móvel, clássica ou moderna, pensando proteger-me daquilo que não aprendi ainda a apreciar, deparo desiludido a encher o átrio do CAM - Centro de Arte Moderna -, com uma nova instalação que, a mim, me pareceu uma barraca em tudo idêntica a umas outras que descobri habitadas entre a Rua da Junqueira e o Casalinho da Ajuda, feita de madeira de demolição e chapas de metal ferrugento. A diferença é que esta, que é arte, não cheira mal por ausência de corpos lá dentro, já que de alma nem se fala, que nunca a teve. Abri a porta e entrei só para ter a sensação de estar numa barraca mesmo sem o ónus de ter de a habitar. Calquei o chão que era de uma areia avermelhada e tinha no centro um utensílio de madeira azul, assim entre o remo e a pá, que cometi a imprudência de pisar, o que o fez levantar atingindo-me na cabeça com uma certa violência, fazendo-me cair com a estranha sensação de ter sido engolido por um buraco negro, que me fez perder a consciência daquilo que acontecia à minha volta. Quando abri os olhos lá no fundo, pensei estar sonhando à vista do que lá se passava, sem que a minha chegada provocasse qualquer alteração nos comportamentos das personagens, no meu entender, tão bizarros como insólitos.
Talvez contagiados pelo Bugio que se via ao longe, estavam-se todas a bugiar para mim. Estava eu a seguir com os olhos uma Senhora alegre e saltitante a passear com um pintassilgo num ombro e um verdilhão no outro, quando passaram a correr atrás um do outro, um pato e um bacalhau que gritavam, um a plenos pulmões e outro a plenas guelras “Eu sou o melhor! Eu sou o melhor!” Numa mesa de pé de galo em ferro, três zombies ingurgitavam beberragens coloridas esperando que o efeito se transmitisse à inquietante prisão de ventre da sua iguana que ali estava inchada à espera de um desfecho que acabou por acontecer como em todas as histórias com final feliz, com o reptil a aliviar vistosa e largamente a tripa. Um Senhor simpático e risonho, a quem eu compraria um carro em segunda mão, mimava uma gata com massagens no lombo, como se de uma abrótea pronta a ir para a panela ou para o forno se tratasse, e via-se que a bichana se arrepiava deleitada com o tratamento ecuménico que serve a felinos domésticos e teleósteos gadiformes, enquanto um gato com a cauda entalada numa porta fechada, esperava, miando desesperado como um depositante do banco mau, que o libertassem para poder começar a perseguir a gata arrepiada.
Cidadãos africanos chegavam, a acelerar os seus topos de gama de cores improváveis, travando a fundo para levantarem poeira para os olhos de outros cidadãos africanos apeados, que assim não os viam comer o seu caviar e beber o seu champanhe, ao mesmo tempo que comunicavam aos INE’s locais a informação estatisticamente correcta que cada cidadão comia meia lata de caviar e meia garrafa de champanhe. Um cego que fazia rodar com destreza um arco branco em frente do Pavilhão Baltard da Carris, parou para ouvir do outro lado da rua a Senhora Maria Cavaca a arrotar postas de pescada diante da porta do Rei da dita. - Bom proveito lhe faça!, gritou o cego do arco. A Senhora alegre e saltitante que entretanto devolvera o pintassilgo e o verdilhão às suas gaiolas, que eram passeadas no jardim pelos seus proprietários com olhos de amêndoa, leva por uma trela uma enguia que parecia a serpente do Éden, e que, descuidada sujava o seu corpo escorregadio na lama das lajes do jardim (- Quando chegarmos a casa dou-te banho com Tide, dizia-lhe a Senhora alegre), sobre as quais um chinês de cócoras desenhava com água ideogramas de louvor a Confúcio ou de protesto aos herdeiros de Mao e Piao. A tremenda luta fratricida entre o palmípede e o fiel amigo acabou mal (para eles) com a morte de ambos, sem que ninguém conseguisse chegar à conclusão de qual deles era o melhor.
Enquanto o carrossel dos gatos continuava a voltear na direcção de um fim anunciado, como no romance de Garcia Marquez, e de cada vez igual, ouviram-se uns suspiros provenientes de um leito de chocolate macio, suspiros que à canelada queriam emergir do seu doce berço para alcançarem as cores e os gostos dos outros hóspedes daquela doçura, que nela boiavam coloridos, frescos e convidativos, pelo que os suspiros eram legitimamente justificados e, digamos, mesmo indispensáveis.
Lembrando-me de uma outra história, da qual ouvira vagamente falar, procurei um coelho, que acabei por entrever projectado num lençol, sem relógio, falando para ninguém como quem não sabe a quantas anda, um fabricante louco de chapéus exóticos e extravagantes, que acabei por não encontrar, tendo descoberto que era eu próprio que em vez de chapéus fabrico histórias com as mesmas características daqueles, não tendo de procurar o gato, já que a espécie estava largamente bem representada. Faltava Alice, e penso que evitei procurá-la, não fosse ser acusado, como Lewis Carroll, por aqueles que atribuíam a fixação por Alice à sua condição de pedófilo, perversão nunca provada. Duas personagens não pertenciam à história, por serem demasiado reais, embora estivessem em pleno dentro dela, surreal e fantástica. Eram a Senhora triste e serena e a sua cadela igualmente triste e serena, ainda não conformadas, não por não terem encontrado Alice, como eu, mas por terem perdido demasiado cedo alguém muito importante na história das suas vidas.
De volta à realidade, saí da barraca, desculpem, saí da instalação, tão sorrateira e clandestinamente como tinha entrado e respirei fundo aquele oxigénio de quase todas as manhãs, salvação da minha existência.

Abraço.

Lisboa, 13 de Novembro de 2014
Octávio Santos