quinta-feira, 27 de novembro de 2014

Descoroçoado com o ritmo dos acontecimentos, o cronista poisa a pena, mas não a perdendo como o gavião para poder, após este interregno poético em que a cedeu em parte à Iara Margarida, usá-la como bússola guia ou espada fendente, sempre que as circunstâncias a isso o obriguem


 
No sábado passado, dia da apresentação da minha primeira experiência “literária” dirigida a crianças, que devo à Editora storyTellMe, alguém amigo me dizia estar “angustiado e preocupado, com a sensação de estar prestes a entrar numa profunda e longa noite, sombra a pairar, que me aterroriza”, acrescentando que “ se sentia apavorado como se estivesse num comboio  de alta velocidade rodeado de gente que não tem nada a ver comigo, numa espécie de mundo paralelo em que há um grande esquema montado que não se percebe onde começa nem onde acaba, nem mesmo o que é, e eu quero descer e não consigo”. Assustei-me com a crueza dos propósitos e debitei umas banalidades para acalmar o susto evidente; sabes, é o sentimento geral, a sombra paira mas é colectiva, para mim já não tenho esperança, mas para ti que tens idade para ser meu Filho, pode ser que as coisas melhorem, embora só para os mais pequeninos se possa pensar voltar a uma normalidade, que de qualquer maneira não será aquela que conhecemos, não imaginando sequer nós o preço a pagar por isso. E com esta me safei de um ainda mais lúcido que eu.

Mas vamos lá à Poesia, que merece maiúscula. Os factos relatados interessam sobretudo os meus ex-colegas da AICEP, que continua a ser a “minha casa” pois foi de lá que passei à peluda, apesar daqueles 11 meses em que passei pelas (por) Necessidades. Para todos os outros temos os poemas que, esses, são universais. Tudo começou com o colega Rui Boavista Marques, então Administrador, a dar-nos a conhecer o filme japonês “Chanoyu” no qual ele desempenhou o papel de um jovem português chamado Stefano. Todos gostámos, tendo-nos o Rui dado, como programa extra, uma lição sobre a cultura japonesa da cerimónia do chá, confessando eu agora, e espero que ele não se zangue, que já tinha visto o meu Avô fazer aquilo, com tijela, pincel e um pó verde, mas para fazer a barba. Ora se o Senhor Administrador podia usar o Auditório para fins não técnicos, porque não dar seguimento à “aventura”?

Assim, criámos uma troyka (lagarto, lagarto, lagarto…) - eu e duas das minhas queridas Cristinas, a Filha do Professor Políbio de Almeida e a Neta do Palangana - e conseguimos convencer as cúpulas a fazer no Auditório uma sessão intitulada “Cultura no Auditório”, tendo como tema a Poesia. Para tal idealizámos um programa ligeiro em que quatro colegas diriam duas poesias cada um, sendo uma da sua própria autoria e outra de um autor consagrado à sua escolha, e os quatro colegas seriam, por ordem alfabética, a Iara Martins, o Joaquim Pimpão, o Miguel Malheiro Garcia e o Octávio Santos, ou seja, eu. Acontece que o Joaquim - Pedro Assis Coimbra, de seu nome artístico -, às voltas com os goulash nas margens do Lago Balaton, não pôde estar presente tendo delegado na colega Cristina Góis Amorim a leitura do seu poema. Acontece também que, tendo eu escolhido dizer um poema de António Gedeão, e sendo  a sua Filha, a escritora Cristina Carvalho (e já vão três Cristinas!), casada com o nosso colega José Meira da Cunha (aquele da visão holística), passou-nos pela cabeça convidá-la para nos falar do seu Pai, e não é que ela aceitou!

Como nestas coisas acontecem sempre imprevistos, a Iara não pôde participar,  por válidos motivos familiares,  para dizer uma das suas poesias e um lindíssimo poema de Alexandre O’Neill, o que a entristeceu muito, e o programa ficou assim estabelecido:

Ciclo “Cultura no Auditório”

Sessão : “Abaixo o Mistério da Poesia”, 17 de Novembro, das 17H30 às 18H30

Auditório da Av. 5 de Outubro, Lisboa

 

Programa

• Abertura pelo nosso Administrador, Vital Morgado

 

• Octávio Santos recita:

Viagem, de Octávio Santos (Sófia, no Hotel Park Moskva, em 25 de Junho de 1975.)

 

• Cristina Góis Amorim recita:

            Boa Gente Como Sempre, de Pedro Assis Coimbra (Joaquim Pimpão)

            Até ao Fim, de Nuno Júdice (in Pedro, lembrando Inês, 2001)

 

• Miguel Malheiro Garcia recita:

            Homens à Beira-Mar, de Sophia de Mello Breyner

            Poema , de Miguel Malheiro Garcia

 

• Octávio Santos recita:

Enquanto ( de António Gedeão, do livro Máquina de Fogo, datado de 1961)

 

• Convidada especial para o período de debate: Escritora Cristina Carvalho, que nos falará da obra e da personalidade de seu pai – Rómulo de Carvalho (António Gedeão)

Lembro-me que correu tudo muito bem e que os colegas que encheram o Auditório deram por bem empregue o tempo que lhes “roubámos” ao descanso. Lembro-me também de ter dito uma quadra minha improvisada, glosando esta quintilha do poema do Pimpão dito pela Cristina:

 
“tu vais acreditar como aconteceu

quando a Primavera de tão ousada

na acidez do vinagre de Modena

se meteu cuidadosamente

a fundo no meio do teu corpo”

 
e foi esta:

 
“O Pimpão é um brincalhão

Brinca tão completamente

Que usa vinagre de Modena

No teu corpo… cuidadosamente.”
 

Sempre em honra da poesia popular, que é também uma altíssima forma de arte, e não porque seja minha intenção abandalhar a coisa, li hoje ( e está lá para quem quiser ler) junto à venda de jornais e revistas que está na esquina da Miguel Bombarda com a Marquês de Tomar, em papel colado numa caixa da EDP, o seguinte escrito, que, dado o sublinhar da última palavra, pode ser também um código secreto para interessados naquele princípio activo (estive para alertar o SEF mas fui desaconselhado):

 
“Versos transmontanos

Porca/o nojenta o

Cão não é um

Saco cheio de merda

Para despejares nos

Passeios e na erva.
 

Mas o que me trouxe aqui hoje, justificando este  já tão longo preâmbulo, foi o desejo de homenagear a colega Iara que tanta falta nos fez naquela tarde, como prova o e-mail que, em nome de todos, lhe transmiti  na véspera:

 “Cara Iara, 

Como vamos sentir a sua falta amanhã, por si e pelos seus poemas, que acrescentariam qualidade à sessão, fui encarregado por todos de lhe agradecer a colaboração, dizer-lhe que contamos consigo para a próxima e desejar um bom aniversário à sua Mãe.

Bjs”
 
Assim, com autorização da autora, seguem os quatro poemas que me enviou, com imagens e tudo, para que a troyka escolhesse um para ela dizer na tarde de 17/11/2009 (já foi há 5 anos, meu Deus!), junto ao já citado poema de Alexandre O’Neill, e eles aqui ficam com um grande beijinho para a Iara, que aqui se revela uma poetisa de rara sensibilidade, e ainda por cima é também Margarida.

 Abraço.

 Lisboa, 27-11-2014

Octávio Santos
 

Afectos

 









preciso de cuidar de mim,

com ternura,

como cuido dos que amo.

preciso de esperança,

parar de atormentar a minha paz

com propósitos tão tristes quanto funestos.

e aprender de vez

que um dia mau

é apenas e tão só isso,

um dia mau.

mesmo que seja um ano,

ou até muitos,

anos maus.

ainda assim é só isso,

e não a vida inteira.

preciso de cuidar de mim,

ler Sophia em voz alta,

e deixar me adormecer no sofá,

a ouvir feliz Caetano,

a cantar o verso

onde um carinho às vezes cai bem.

 
J’aime les ballons
 












ar. cansado.

respirar.

cansada de tentar inspirar.

os meus olhos não aguentam.

como que uma culpa.

uma doença no ar.

um vírus

febril

com sintomas de desgaste.

queria criatividade.

a minha inspiração está presa

numa letra.

anda para cá e para lá

sem saber se me ajuda

a pensar

ou a escrever.

que se soltem os balões

para eu criar.

 
Senhoras e Senhores

 












senhoras e senhores

ando silenciosa

a alma precisa de tempo para,

num outro tempo, talvez,

transcrever o que absorveu de belo.

senhoras e senhores

no país das maravilhas a menina caiu.

de medo e sem rédeas

desabou.

flutuando no caos,

perdida no todo.

na cabeça a vida corre

como um rio,


memórias do agora sem forma de amanhã.


a tristeza é sempre funda.

senhoras e senhores,

começou a corrida sem o sinal sonoro de partida.

não é tempo. haverá tempo?

o tempo dirá.


a tempo será?

 
Nós


 

 




nós,

pretensos amantes

dois pontos equidistantes,

duas notas dissonantes,

espaço entre o depois e o antes,

um desejo sem afecto

o “A” e o “Z” do alfabeto

distância entre o longe e o perto.

eu, deste sonho, fujo

sem mesmo beijar-lhe a boca.

desamparo a emoção pouca,

de tê-lo no abraço

frágil como este laço

que se desfaz ao meu contacto

escolho o real ao abstracto.
 

Quatro poemas de Iara Margarida Martins