quinta-feira, 31 de dezembro de 2015

Bom Ano Novo no último dia (in)útil, perigosa incitação ao não cumprimento das regras, reivindicação de estacionamento abusivo, melros e rolas, lojas & filiais de beneficência, velhas canções revolucionárias, Saúde, Educação, Justiça, Francisco e Francisca, IDE da Horta no Lis, livros do século XVIII ao XXI, doutas citações, e muito mais que quis dizer e não soube


Como há muito que tenho para mim que a desobediência é uma virtude e um dos motores que faz avançar a humanidade, fiquei confortado por saber que começa a ser reconhecida como tal, merecendo louvores alguns episódios menores que dão força ao conceito. Dois carabinieri são chamados a uma grande superfície de uma cidade italiana, para darem legal seguimento à detenção de um menor que fora apanhado à saída com cadernos não pagos. Vi os jovens militares num popular programa televisivo, contando que ao chegar ao local, e depois de falarem com o menino, pagaram os cadernos na caixa, convenceram os gerentes do estabelecimento a não apresentarem queixa formal, e levaram a criança a casa. Palmas e louvores a este grave acto de desobediência, mais grave ainda por se tratar de forças da ordem. Apenas um dos intervenientes em directo desafinou o coro de aprovação do açucarado episódio para dizer que, acabando de ser operado gratuitamente num hospital público, não compreendia porque é que o Estado, que deveria pôr a educação ao mesmo nível da saúde, não fornecia grátis todo o material escolar aos alunos da escola pública, levando crianças necessitadas ao acto irreflectido de roubar cadernos, e pondo assim, neste caso, o ónus da solução nas mãos de dois jovens militares que, para aplicar justiça tiveram de praticar um acto não conforme com o cumprimento dos seus deveres.

A reflectir sobre o acima expresso estava eu no carro, a ouvir música na Antena 1, no estacionamento reservado aos funcionários dos Inválidos do Comércio; estaciono sempre ali, e não no parque reservado às visitas, porque tenho vistas mais amplas, rolas a marchar à SS e melros a saltitar como políticos diante da torta do poder, velhos a arrastar os pés em passeios higiénicos de auto prova de vida, auxiliares de saúde, de batas e socos brancos, a fumarem às portas, quando me passou pela cabeça que um dia, um vigilante mais zeloso me poderia interpelar, fazendo-me desandar daquele lugar que não me pertence por regulamento. Estou-me a ver a responder-lhe que nunca vi mais de 7 ou 8 carros naquele local que tem lugar para uns 80, e que por isso não me chateasse com merdas dessas porque, se até agora me tenho calado a certas coisas muito piores que por lá vejo para não agravar a situação de quem lá tenho, e cala-te boca, não me faça agora passar dos carretos por uma história que não vale um tostão furado. O certo é que se tal ocorresse, e a poderosa e bem encostada instituição de beneficência - o maior proprietário imobiliário na grande Lisboa – cravasse comigo na justiça, eu não teria meios para me defender do meu pequeno delito de desobediência às regras.

E aí, lembrando-me da cirurgia sem custo do opinion maker da RAI que advogou o direito aos cadernos grátis, pus-me a perorar, de mim para mim, igual estatuto para uma justiça que me pusesse em pé de igualdade com quem a pode pagar, e sabemos todos quanto. Saúde, Educação, Justiça, e esqueço a paz, o pão, a habitação do Sérgio Godinho, para todos. O que não é uma utopia, agora que Francisco está em Roma a fazer o que deve, e que de Francisca esperamos todos que possa, assim a deixem, pôr em prática os seus princípios. Parece que falar hoje de justiça, reclamando justiça para a justiça, seja apanágio de gente da esquerda quando deveria ser uma obrigação de todos, que a todos, e tudo, beneficiaria. Mesmo os ultra liberais de hoje, aqueles a que eu chamo os da freenança, que justamente repetem que a salvação do país, e de todos nós, está no investimento, estrangeiro ou nacional que seja, teriam numa justiça justa - e não é um pleonasmo -, um aliado de peso, senão o maior.

Recordo-me de ter acompanhado uma vez o então Presidente da AICEP, Dr. Basílio Horta, a Leiria, para uma sua intervenção numa sessão da AERLIS dirigida a empresários da região. Quando ele falava entrou uma Senhora a bater saltos altos e a chocalhar pulseiras que, sem a contenção própria e natural de quem está atrasado, se sentou na primeira fila. Acabada a oração do Presidente da AICEP, no período de perguntas e debate, a Senhora, que se apresentou como advogada, num exercício de auto prova de vida, perguntou qualquer coisa relacionada com o investimento estrangeiro e o seu preocupante recuo. Obteve como resposta que, na sua qualidade de agente e actor da justiça, deveria saber que o maior responsável pela retracção do IDE, aquele que mais atingia a competitividade do país na sua atracção, era precisamente a justiça e não os salários, as greves, os custos de energia ou a fraca produtividade. Qual é o empresário que vai investir num país sabendo que, caso tenha qualquer diferendo a dirimir nos tribunais, poderá ter de esperar 10 ou mais anos pela solução?

E eu, que de justiça percebo tanto como de economia, ponho-me a ler para tentar pescar qualquer coisa que valha a pena, atrevendo-me a aconselhar-vos a leitura de dois livros sobre o tema, um de 1764 e outro de 2015, os quais, apesar dos mais de 250 anos que os separam, correm nos mesmos carris. O primeiro, “Dos delitos e das penas”, de Cesare Beccaria, verdadeira bíblia para todos os agentes da justiça, e dele escreveu José de Faria Costa, professor catedrático da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra e Presidente da Mesa da Assembleia Geral do Instituto de Direito Penal Económico e Europeu, no prefácio da tradução de 2014 (FCG):

«Não temos a menor dúvida em considerar que “Dos delitos e das penas” é cerzido por uma fina tessitura cujo fio condutor pode ser visto na ideia forte do garantismo. No entanto, o fascínio deste programa de política criminal - em verdadeiro rigor temos para nós que o conteúdo do livro se traduz em um real e “actual” programa de política criminal e daí a sua perenidade – reside na simultânea mistura de duas coisas aparentemente antagónicas: por um lado, a afirmação inequívoca de um preciso e extraordinariamente bem definido horizonte intencional que se circunscreve na preservação e afirmação dos princípios de igualdade e de garantia; por outro, o carácter assistemático e de unidades fragmentadas com que o texto é formalmente apresentado…. Vale a pena ler Beccaria hoje?... vale não só a pena como é até imperioso que se leia e releia Beccaria.»

O segundo, “Política e Corrupção”, do meu amigo Paulo Saragoça da Matta (A), Licenciado em Direito pela Universidade Católica Portuguesa e Mestre em ciências jurídico-criminais pela Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, cujo endereço do conteúdo está todo no prefácio do autor, repetido na contracapa:

«Estamos perante um conjunto de seis textos que se organizam em torno a três temáticas. Quatro desses textos, conferências proferidas em 2013 e 2015, debruçam-se sobre temas com o enriquecimento ilegítimo, o branqueamento de capitais e o financiamento ao terrorismo, a disciplina legal e regulatória do mercado financeiro, e, por fim, a corrupção na função pública e administrativa. Uma última conferência, também de 2015, analisa a jurisprudência constitucional na área do processo penal, aqui se analisando questões tão importantes e candentes como os prazos de recurso nos mega processos e nos processos de excepcional complexidade, os meios de prova e o papel do consentimento do arguido na utilização de provas através do próprio corpo, o dever do exame de toda a prova relevante para a condenação em sede de julgamento, o interrogatório do arguido “às cegas”, a recorribilidade para o Supremo Tribunal de Justiça e, por último, a delimitação do núcleo essencial dos direitos processuais das partes.»

Garanto-vos que se se derem ao trabalho, tão útil como agradável, de ler estas duas obras, saberão muito mais sobre o que se passa hoje nos tribunais portugueses, que aquilo que a leitura diária do Correio da Manhã ou a visão de todos os programas da TVI vos dá, e não estou a falar da "Quinta das Celebridades", que isso é cultura nacional popular.

A)    Gostei muito que o Paulo descesse ao meu nível - taxistas e barbeiros - citando o aforismo popular português: “Quem cabritos vende e cabras não tem, de algum lado lhe vem!”

Boa leitura, quando acabar a euforia do réveillon, e conseguirem retirar toda a purpurina dos cabelos.


Abraço e Bom 2016 a todos.

Lisboa, 31 de Dezembro de 2015
Octávio Santos

quinta-feira, 24 de dezembro de 2015

Penduradas as bolas, acomodado o Menino, dado o estatuto de refugiado ao mago Baltazar, gastos em prendas os prometidos 2 euros e 45 do aumento da reforma já em Janeiro, o cronista vira-se para a “obrigação” do bacalhau de hoje e do perú de amanhã e, não lhe sobrando nem tempo nem verve para grandes tiradas literárias, continua a tirar lixo das suas gavetas numa tentativa de cumprir o que os Grandes decidiram no COP21.

 
Todos sabem que o tempo é relativo. A minha vida decorre naquele espaço de tempo que medeia entre a onda que chega à praia e o seu retiro. Tento então desesperadamente caminhar pé descalço na intenção de deixar as minhas pegadas. Que duram 30 segundos e desaparecem, com a esperança que o tempo seja efectivamente relativo. Hoje não o é, e, por isso, não tenho mais uma vez tempo para escrever nada de novo. Não faz mal porque o que deveria ser novo, aconteceu há mais de dois mil anos, quando uma estrela cometa com apenas três seguidores teve um êxito tal que ainda agora não se fala de outra coisa,  num local onde hoje não deveria haver conflitos, importados e exportáveis, com o mercado bem alerta.

Na semana passada impingi-vos o texto intitulado “Platão e Aristóteles”, o qual, como disse, foi lido durante a sessão “Incertezas Económicas”, no Auditório da AICEP, em 26 de Maio de 2011. Na sequência disso, e para que não digam que só falo de gente morta à séculos, fui outra vez à gaveta com a etiqueta “Ciência com Cuspo” e lá descobri outro texto meu subordinado ao mesmo tema, também de 2011, desta vez dedicado ao velho, morto e ressuscitado, John Maynard Keynes, o qual, mesmo quando andava nas nuvens em rodopio com a bailarina Lydia Lopokova, do ballet russo de Serge Diaghilev, que foi sua Mulher, tinha tempo e cabeça para nos deixar uma herança que ainda não caducou, e a prova disso é o seu pouco respeito pelo famigerado défice, papão que tanto nos tirou o sono , e volta agora a despertar de um prolongado letargo num banco do jardim da Madeira.

John Maynard Keynes
Pouco antes da sua morte perguntaram-lhe o que teria feito de diferente. A sua resposta condiz com a sua personalidade: - Teria bebido mais champagne. E estou a falar da sua verdadeira morte e não daquela com que Robert Lucas, Prémio Nobel em 1995, que já tinha, durante a crise de 1973, dito que Keynes era a serpente que assolava o paraíso da economia, intitulou a conferência “A Morte de Keynes” em 1976, a qual foi um golpe devastador nas hipóteses de trabalho dos modelos keynesianos.

Perguntaram a Samuelson, um dos maiores economistas da segunda metade do século passado, se Keynes tinha de facto morrido. Respondeu: - “Sim, do mesmo modo que Newton ou Einstein.”

Aliás as opiniões sobre Keynes foram sempre contraditórias: Nixon dizia no princípio dos anos 70 “we are all Keynesians now”, acrescentando mais tarde Friedman “and none of us are Keynesians anymore”. O Professor João César das Neves escreveu que Keynes é o responsável por lançar um dos mais notáveis episódios da história da economia. Na verdade, a “revolução keynesiana”, que se seguiu ao seu livro de 1939 “Teoria Geral do Emprego, do Juro e da Moeda”, constitui um choque teórico monumental, que gerou um dos surtos mais potentes de actividade científica na disciplina. Directamente, os seus resultados haveriam de dominar por mais de 40 anos. Mas a sua influência será sentida para sempre.

A propósito da sua famosa citação “A longo prazo, todos estaremos mortos”, o seu biógrafo Robert Sidelsky disse: “Poderá não haver tempo para esperar pela perfeita operação teórica do capital, tal como os neoclássicos insistem que acabará por acontecer. Enquanto isso, temos Keynes: mais flexível, mais humano e mais real do que nunca”.

Parece que estamos a viver uma segunda encarnação de Keynes, já que os seus pressupostos voltam a ser seguidos. O motivo é óbvio: a economia global está a desmoronar; os pacotes de incentivo voltam a estar na ordem do dia. Pode ser que a maioria dos agentes económicos considere a “teoria geral” de Keynes inadaptada aos nossos dias e à actual crise, mas na situação que vivemos nenhuma teoria é melhor que a sua má teoria, mas, ainda assim, é preferível a não ter teoria alguma, como parece acontecer aos desorientados políticos e economistas que nos metralham com as suas pouco prováveis previsões. O furacão económico a cuja devastação actualmente assistimos oferece-nos uma extraordinária oportunidade para reorientarmos a vida económica para valores de sensibilidade, justiça e bondade, sendo Keynes o guia indispensável para esse futuro.

Nascido em 1883, Lord Keynes, Barão de Tilton, foi o não economista mais brilhante que alguma vez se dedicou ao estudo da economia. Filósofo moralista e evolucionista, o seu pensamento económico regia-se pela ética. Perguntava-se: “Para que serve a economia?”, “De que forma pode a actividade económica reflectir-se numa vida boa?”, De que nível de prosperidade necessitamos para viver bem de uma forma agradável e sábia?”. Corrector da Bolsa, especulador financeiro (ganhou e perdeu), Presidente do Banco de Inglaterra, foi a sua compreensão do espírito especulativo que fez dele um economista tão extraordinário. Na economia de Keynes, o fio invisível da convenção assumiu o lugar da mão invisível do mercado de Adam Smith na formação dos resultados sistémicos.

Enquanto a primeira economia socialista se edificava na URSS, o mundo capitalista experimentava em 1929 a crise de superprodução mais grave da sua história. A teoria de Adam Smith baseava-se na lógica da escassez. Os recursos eram escassos em relação às necessidades. Assim nunca poderia haver falta de procura para os produtos da indústria: a procura era igual à oferta. O desemprego era apenas uma noção. Viu-se dramaticamente que não era assim. Viu-se que essa crise levou ao triunfo provisório do nacional-socialismo na Alemanha. Nos países anglo-saxões, a crise económica abre caminho a uma importante evolução do pensamento económico, evolução que se resume na batalha empreendida por Keynes e seus discípulos contra a economia neoclássica, batalha que terminará com a vitória dos modernos contra os antigos. Não são apenas teses abstractas que se defrontam. O advento da economia política keynesiana está estreitamente ligado à transformação importante das políticas económicas nos países capitalistas. Posteriormente, com a Teoria Geral, nasce a Macroeconomia.

Keynes era um incerto. A incerteza é omnipresente na imagem keynesiana. Este sentimento de incerteza tem flutuações: por vezes as pessoas estão mais confiantes do que noutras alturas. Quando a confiança é alta, a economia prospera; quando diminui, a economia afunda. É importante realçar que Keynes não considerava a incerteza como estando presente em todas as vertentes da vida económica. A incerteza assume-se como uma questão para a economia quando a nossa subsistência ou a nossa prosperidade dependem das nossas perspectivas relativamente ao futuro.

Numa carta que escreveu em 24 de Dezembro de 1917, referindo-se à política dos governos conservadores que lhe parecia absurda, dizia: “Os nossos dirigentes são tão incompetentes, tão loucos e tão viciosos, que a era determinada de civilização de um género determinado poderia ser perfeitamente deitada abaixo.” Há quem escreva, pondo em prática quanto escreve, e quem fale todos os dias só para não estar calado, já que os resultados não se vislumbram.

As ideias de John Maynard Keynes nunca foram tão actuais. Há três coisas nas suas ideias que são particularmente relevantes. A primeira é a de que o futuro é impossível de prever e, como tal, as tempestades económicas – sobretudo as que têm origem no sistema financeiro – não são factores externos que chocam contra mercados em lenta adaptação, mas sim parte do normal funcionamento do sistema dos mercados. A segunda ideia é de que as economias atingidas por estes choques podem manter-se em depressão durante muito tempo, caso sejam deixadas isoladas; é por isso que os governos precisam de ter – e de usar – munições fiscais para impedir que uma crise financeira descambe em depressão económica. A terceira é uma crítica geral das sociedades que veneram a obtenção de dinheiro e eficácia acima de todos os outros objectivos da sobrevivência humana.

Hoje somos todos keynesianos nas trincheiras, e desculpem-me se não sei quem disse esta verdade (A). É mais uma concessão que peço para o meu direito à imprecisão.

 
Keynes e o Deficit Orçamental
Apetece esclarecer alguns equívocos relacionados com o keynesianismo. Nos Estados Unidos, Keynes é considerado erradamente uma espécie de socialista. Não era um defensor das nacionalizações nem tão pouco um regulador. Não fazia o elogio do capitalismo mas nada fez para o enterrar. Segundo ele, o capitalismo, apesar de todos os seus defeitos, era o melhor sistema económico disponível, uma etapa necessária na passagem da escassez para a abundância, da vida de trabalho duro para a boa vida.

Habituados que estamos a que o fim último de todas estas medidas económicas que nos apertam hoje o cinto e o pescoço, é a estabilidade do défice orçamental à volta dos 3%, é curioso saber que Keynes era um defensor dos défices orçamentais permanentes. “ Os défices não têm importância nenhuma”, dizia, achando que os orçamentos governamentais deveriam ser normalmente excedentários. No fim, os maiores esbanjadores da história dos Estados Unidos foram Presidentes republicanos que advogavam doutrinas antikeynesianas de mercado livre: o único conservador em matéria de fiscalidade, nos últimos 30 anos, foi Clinton que era um democrata. Se tudo isto tem uma lógica, eu não a percebo, e agradeço que me expliquem.

Abraço e Bom Natal a todos.

Lisboa, 24 de Dezembro de 2015
Octávio Santos 

A)   Afinal foi o Robert Lucas, o mesmo que lhe tinha preconizado a morte em 1976. Só os burros não voltam atrás, como nos ensinou agora o PR que disse, pensando falar para asnos sem memória, que é preciso muito cuidado para nos pronunciarmos sobre a situação dos bancos a cair da tripeça. Zurrou ao contrário, mas já só as suas próprias orelhas o ouvem.

 

quinta-feira, 17 de dezembro de 2015

Travestido de Pai (e Avô) Natal, empoleirado num escadote a pendurar todas as bolas na Árvore após ter acomodado o Menino nas palhinhas, o cronista lembra-se da “obrigação” da escrita e, inspirado pela COP21, faz uma patética tentativa de melhorar o ambiente tirando lixo de casa.


Como o Natal se aproxima e não temos certezas sobre se a sua celebração não será brevemente tomada como uma forma de prepotência e proselitismo, tenho tantas pequenas coisas para fazer que, não estando para ficar aqui sentado, ou a passear à chuva, a inventar um assunto para esta crónica, resolvi rebuscar gavetas à procura de qualquer coisita que, poupando-me a escrita, pudesse não parecer um remedeio. Assim, encontrei o texto que segue,  intitulado “Platão e Aristóteles”, o qual foi lido durante a sessão “Incertezas Económicas”, no Auditório da AICEP, em 26 de Maio de 2011, que teve a participação pro bono de três excelentes colegas: a Florinda Grave, o José Meira da Cunha e o Vítor Quelhas (A). 

Platão e Aristóteles

Não vamos confundir o conceito de mercado, que existe há 6.000 anos, com a economia, muito mais recente. O pensamento económico ocidental começa na Grécia porque foi aí o berço da nossa civilização. Foi no seio das cidades gregas que o homem toma consciência de ter uma vida política, identificando-se com o Estado, que não sendo uma realidade material o afirma com uma concepção altamente espiritualista. 

No Renascimento, admite-se que o homem não passa de um animal superior, concepção naturalista que influenciou os autores dos séculos XVIII e XIX que lançaram as bases da economia política. Concepção que ainda hoje influencia os autores contemporâneos que pretendem construir a ciência económica como ciência exacta. Tudo isto é posto em causa pelo marxismo que, na utopia de criar o “homem novo”, retorna ao pensamento grego segundo o qual a vida política é um aspecto essencial da vida espiritual do homem. Se abordarmos o estudo do marxismo encontraremos certas teses que não se compreendem senão à luz da filosofia grega. Eu, que vivi 13 anos num “paraíso do socialismo real” e,  empírico como sou, só sei analisar o marxismo à luz de exemplos de vida vivida, e a única verdade que posso afirmar é que onde havia socialismo não havia bananas. Posso explicar-me se assim o quiserem. 

Tudo isto para tentar compreender a influência dos dois grandes pensadores gregos, Platão e Aristóteles, que são os primeiros a tratar da organização económica no sentido em que hoje compreendemos esse termo. É curioso abrir aqui um parêntesis para recordar que tanto Adam Smith como John Keynes, foram ambos, para além de reconhecidos e estudados economistas, filósofos e moralistas como os seus ilustres antecessores helénicos. 

Platão, que é o grande percursor e um dos grandes inspiradores da concepção cristã do homem, vê na cidade um instrumento da salvação das almas. Esta concepção leva-o a propor a supressão da propriedade nas classes superiores da sociedade. 

Aristóteles, pelo contrário, defende a propriedade. A partir desse momento, portanto, levantou-se o problema do comunismo. Todavia, a oposição que existe entre as doutrinas dos dois filósofos é muito diferente do debate moderno que existiu até à queda do comunismo, entre liberais e marxistas. Platão e Aristóteles são idealistas, ao passo que a discussão moderna sobre o comunismo se desenvolveu na Europa Ocidental no seio de sociedades que adoptaram numa larga medida uma concepção naturalista do homem. 

Platão aos 20 anos encontra Sócrates e atravessa uma profunda crise interior; doravante só poderá servir o verdadeiro e o justo. Sócrates morreu por ter afirmado que existe uma justiça absoluta, superior às leis da cidade. O dinheiro e a lei, a riqueza e a justiça, são doravante para si poderes opostos. Expõe numa das suas Cartas, que lhe não é já possível encarar uma participação na acção política imediata, nas vulgares e baixas competições que a caracterizam. A acção eficaz exige que se esteja primeiramente em retiro para descobrir a verdade na contemplação, a teoria. Deste período de meditação saem os seus primeiros diálogos. É procurando dizer o que é a justiça e como é possível conformar-se com ela que Platão é levado, na República, a falar da organização da vida social e nomeadamente da vida económica. A cidade ideal corresponderia exactamente às exigências lógicas da vida em sociedade; seria portanto perfeita com nomeadamente as quatro grandes virtudes da sabedoria, da coragem, da temperança e da justiça. Mas para o Platão da República, o problema da atribuição das riquezas a um tal ou tal indivíduo não é de nenhum modo um problema de justiça. Parece, sim, que para ele o indivíduo não tem qualquer direito sobre a riqueza social, mas que tem apenas o dever de levar o género de vida conforme  função que lhe cabe. 

No decurso do diálogo da República foi posta já nitidamente a questão de saber se a cidade perfeita era realizável. E Sócrates respondeu com muitos cambiantes. Platão insiste nomeadamente na necessidade de estabelecer a igualdade das fortunas; se existir uma classe dos sem nada, estes serão uma fonte perpétua de revolução. Ora Platão descobriu que realmente o grande obstáculo para os reformadores sociais é um obstáculo de ordem económica. O fim essencial é estabelecer a amizade entre todos os cidadãos; qual é a organização económica e social apropriada para esse fim? O verdadeiro meio, responde Platão, é a comunidade absoluta dos bens. O comunismo é-nos assim apresentado pela primeira vez como um ideal de alcance geral, mas não é menos verdadeiro que a sua obra, pela maneira profunda e eloquente como põe os problemas políticos, foi o verdadeiro ponto de partida da filosofia económica e social da nossa civilização. 

A personalidade de Aristóteles é-nos muito menos conhecida que a de Platão. Várias das suas obras não chegaram até nós e é difícil determinar o carácter das que possuímos: cursos, notas ou verdadeiros tratados. As duas obras principais que tratam dos problemas económicos são a” Ética a Nicómano” e a “Política”. 

Aristóteles é o adversário do “comunismo” de Platão e mesmo do igualitarismo que Platão defende nas Leis. Quando trata da propriedade, Aristóteles opõem-se muito vivamente à ideia de Platão segundo a qual a comunidade dos bens seria o regime ideal. “Em geral, escreve ele, partilhar a vida de outrem, colocar tudo em comum, é para o homem uma empresa difícil entre todas”, acrescentando que “ os possuidores de bens em comum ou indivisos têm entre si conflitos muito mais frequentes que os cidadãos cujos interesses estão separados”. 

Aristóteles não será um comunista nem partidário da rigorosa igualdade das fortunas. Todavia, encontramos nele a importante tese de que, se a propriedade deve em princípio ser privada, o seu uso deve, ao contrário, ser comum. Aliás, o filósofo concretizará num outro texto que a quantidade de bens necessária à felicidade é tanto mais fraca quanto melhor é o indivíduo: “Porque a vida feliz requer um certo acompanhamento de bens exteriores, em quantidade menor para os indivíduos dotados de melhores disposições e em quantidade maior para aqueles cujas disposições não são tão boas”. 

Qual é, antes de mais, o princípio da justiça distributiva ? Ao procurá-lo, Aristóteles afasta novamente Platão. “A igualdade não é realizada quando se dá a todos os indivíduos a mesma coisa como nas Leis de Platão, porque os indivíduos são desiguais entre si. A verdadeira igualdade consiste, pois, em dar mais àquele que merece mais. É uma igualdade proporcional”. 

Ao admitir que há actos justos e injustos em si mesmos, independentemente da moralidade dos indivíduos, levanta a existência daquilo a que Hegel chamará moralidade objectiva. Apercebe-se deste modo toda a fecundidade dos princípios aristotélicos, mas terão de passar numerosos séculos antes que esses germes de uma ciência económica e de uma do direito possam desenvolver-se. Por seu lado, se Platão não se eleva, à ideia de uma ciência da história, pode, todavia, afirmar-se que a sua visão do mundo deixa aberto o caminho por onde ela se poderia introduzir. 

Vê-se então como a oposição do relativo conservadorismo de Aristóteles ao idealismo social platónico deriva da oposição que existe entre as respectivas concepções do mundo. O “comunismo” de Platão é realmente uma consequência da sua crença na vida futura (por muito singular que isso hoje nos possa parecer). A crítica desse “comunismo”, bem como do igualitarismo, desenvolvida por Aristóteles decorre da sua visão de uma humanidade que necessariamente permanece através do tempo conforme à sua natureza imutável. 

Nos vinte séculos que se estendem do século IV a.C. ao XVI da nossa era não se poderá fazer melhor do que procurar tirar partido das análises sociais de Platão e Aristóteles, não obstante o facto de ter desaparecido o mundo que lhes serviu de modelo. Este longo período de estagnação do pensamento político explica o porquê de Platão e Aristóteles continuarem tão próximos de nós. Até a uma época relativamente recente, nunca tiveram, na verdade, sérios concorrentes. Considerá-lo é prestar homenagem ao seu génio, mas é também verificar quanto foi profundo e prolongado o recuo da vida intelectual no Ocidente depois da queda das cidades gregas diante do invasor romano. 

Abraço.

Lisboa, 17 de Dezembro de 2015
Octávio Santos 

(A) Todas as comunicações produzidas, incluindo o fantástico cartoon da Florinda que é a imagem desta crónica, foram por mim coligidas numa brochura, que contém mais umas coisas minhas com umas ilustrações à maneira, da qual "argolei" 50 exemplares numerados, tendo ainda alguns na cave à espera de serem remetidos a quem se mostrar interessado. Desculpem esta vã tentativa de tirar lixo de casa, convencido que estou a salvar o planeta.

quinta-feira, 10 de dezembro de 2015

De como o cronista se torna tradutor por nada ter a dizer de seu, se põe a traduzir notícias sobre vítimas de atentados, desastres ecológicos anunciados, o papão da não inflacção, descida de Francisco aos “infernos”, aquecer o planeta ou voltar ao arado, os véus e os Queen, turcos na corda bamba da UE ou vice-versa, FMI com olhos em bico e poesia de adeus ao cesto.

 
Hoje um jornal velho de dez dias é como a notícia que chegava a cavalo anunciando uma batalha perdida há dois meses; já não serve para nada. Mas a falta de assunto é tão grande, ou melhor, a informação é tanta e tão acavalada uma na outra que, não tendo tempo para a ler, ouvir ou visualizar e muito menos para a digerir, baixo as antenas e desvalorizo os seus conteúdos que me chegam enevoados (Eco, Sebastião, Eco) e, última coisa que me devia acontecer, não tenho qualquer ímpeto para tentar dar-lhes um significado, quanto mais para lhes intuir as consequências. É como se já não fosse para mim. Então, abro jornais com a data de 1 de Dezembro (como desenrolar papiros, à velocidade de hoje), que já foi da independência e agora é apenas um feriado desrespeitado, talvez porque a independência já não tenha qualquer significado, e, para me certificar que faço ainda parte do número dos vivos, começo a traduzir excertos de notícias sem importância daqueles poucos que sei ler, já que nunca fui prático em inglês para além do “the pencil of my cousin is on the table”, já percebi o que é que constitui uma maioria beneditina (era preciso tanto?), e não me interessa se podemos ou não podemos ser cidadãos ou se os Silvas de El Rey (Marcelo dixit) continuam a mamar na pingue vaca coroada, e eles, os excertos, aí vão devidamente identificados e traduzidos à porca janota:

Manuel Dias, francês por adopção
Sempre que conduzia champenois (habitantes da região Champanhe/Ardenas, capital Reims) ao Stade de France, Manuel cumpria o seu ritual. Após estacionar, comia uma bucha atrás do volante e bebia um café sentado numa esplanada. Depois voltava ao carro para ouvir o desafio no auto-rádio, como apaixonado de futebol que era. Na sexta-feira (13/11) tinham sido os clientes a pedirem para serem transportados por Manuel Dias, porque ele era profundamente respeitador do seu trabalho, quase transparente, no sentido em que nem ele próprio se dava conta das suas qualidades profissionais. Antes de transportar pessoas trabalhara numa siderurgia, numa filial da Saint-Gobain, tendo depois tentado a restauração e o pronto-a-vestir. Manuel Colaço Dias nascera há 63 anos em Portugal, na cidade medieval de Mértola, que domina do seu promontório as margens do Guadiana e tem como paisagem as colinas áridas do Baixo Alentejo. Tinha chegado a França, com os seus Pais, no fim dos anos 60, tendo-se instalado em Reims. Gostava dos prazeres simples, dos momentos passados em Família, nos quais desempenhava o seu papel de patriarca, com palavras de conforto portadoras de esperança, disse a Filha Sofia. Manuel Dias, pai de uma família muito unida, tinha uma Mulher, uma Filha de 33 anos e um Filho de 30.
(Le Monde: pág. 15, in Memorial do 13 de novembro. Le Monde publica cada dia retratos das vítimas dos atentados, a fim de conservar, com a ajuda dos familiares, a memória das vidas ceifadas).

Brasil. A onda tóxica no Atlântico
Alguém já a baptizou como “Fukushima do Brasil” ou seja, o mais grave desastre ambiental que feriu o país latino-americano. A ruptura dos dois diques que continham as escórias das minas da Samarco, um colosso australiano, provocou uma gigantesca onda de lama tóxica - mais de 60 milhões de metros cúbicos – no Rio Doce, a qual, após 17 dias, atingiu as águas do Atlântico. A lama, proveniente do Estado de Minas Gerais, poluiu dezenas de quilómetros das pescosas costas turísticas do Estado do Espírito Santo, paraíso de surfistas, e ameaça agora alastrar bem para além das fronteiras do país. O “tsunami tóxico” já provocou danos incalculáveis ao ecossistema e à inteira bacia do Rio Doce, considerado biologicamente morto. A ONU confirmou “altos níveis de metais pesados tóxicos e outras substâncias químicas igualmente tóxicas”.
(Corrière della Sera: pág. 3, in Primeiro plano, Conferência de Paris).

Porque é que o BCE batalha para relançar a inflacção
“Faremos tudo o que devemos fazer para relançar a inflacção, logo que seja possível”, declarou em 20/11 o Presidente do BCE, Mario Draghi. “A questão não é a de saber se o BCE vai usar novas armas, mas quais”, resume Jonhatan Loyne no “Capital Economics”. “Na zona Euro, a extrema fraqueza da inflacção explica-se também pela insuficiente procura”, lembra Thibault Mercier do BPN Paribas. “As trocas com os países low cost contribuíram a reduzir os preços dos produtos importados”, pode ler-se num estudo dos economistas Gregory Claeys e Guntram Wolff, do think thank Bruegel, que explicam também que “a integração de milhões de trabalhadores no mercado de trabalho mundial, diminui o poder de negociação dos assalariados nas economias nacionais”. Temos que ficar inquietos? A questão divide os economistas. É certo que a baixa inflacção favorece, a curto prazo, o poder de compra dos consumidores, mas, uma vez instalada, passa a fazer parte das previsões das empresas, que cessam de aumentar os salários, o que pesa na procura e, por isso, nos seus lucros e intenções de investimento, com o risco de provocar uma espiral deflacionista e desencadear um círculo vicioso, no qual os consumidores começam a prever uma baixa de preços, adiando as suas compras e bloqueando assim a inteira economia. Os números: 60 mil milhões de euros é o montante mensal das compras de dívida pública e privada do BCE. 0,1% foi a taxa de inflacção na zona Euro em Outubro, longe do alvo de 2% preconizado por Francoforte. -0,2% é a taxa de juro para depósitos no BCE. Sendo negativa é o equivalente a uma “penalização” com que a instituição onera os bancos em troca da liquidez que eles deixam nos seus cofres. Temos que ficar inquietos?
(Le Monde: pág. 5 do caderno “Economia e empresas”).


A coragem política da viagem africana do Papa Francisco
O Pontífice foi a um continente instável para falar de paz, desafiando o perigo de atentados, reacção forte após aqueles de Paris. Muitos eram contrários à viagem do Papa à África Central e à sua arriscada presença em Bangui. Tinham razão porque foi um verdadeiro risco para a sua pessoa. Os militares franceses avisaram sobre a impossibilidade de controlar as diversas facções e as armas nas mãos de toda a gente. Francisco quis, apesar de tudo, ir a Bangui, respeitando o programa, incluindo a visita à zona muçulmana, a qual suscitou as maiores perplexidades. Teve uma extraordinária coragem pessoal, reveladora do profundo sentido do seu ministério, mostrando a audácia daqueles que vivem aquilo em que acreditam. Não teve medo de ir à mesquita central de Koudougou proclamar que “entre cristãos e muçulmanos somos irmãos”. Francisco desceu ao epicentro da instabilidade para falar de paz, antecipando a abertura da Porta Santa e o Jubileu da Misericórdia num “inferno” de violência, raptos, ódio, intriga política, corrupção e miséria. Foi também uma lição para nós europeus, apavorados com o futuro, especialmente após os atentados de Paris. De uma entrevista durante o voo de retorno: - Voltará à África, Santidade? – “Não sei, estou velho, as viagem são duras… Memorável foi a multidão: reflecti sobre a capacidade de fazer festa com o estômago vazio. A África é vítima, é mártir, foi sempre explorada por outras potências”.
(Corrière della Sera: pág. 23, in Visita pastoral).

O dinheiro e o clima
Alerta de mau tempo sobre o clima. A Terra e os espíritos aquecem-se à volta da grande questão deste começo de século. Questão que diz respeito, como sempre, à sociedade e à economia. Pois que a revolução industrial e capitalista, iniciada há mais de 200 anos, é responsável pelo aumento de gazes de efeito estufa na atmosfera, mudemos a sociedade. A economia de mercado não pode ser o problema e a sua solução. É uma quimera. O Primeiro Ministro indiano, Narendra Modi, não se enganou lembrando esta segunda-feira, 30 de novembro, no Finantial Times, por ocasião da abertura da Conferência de Paris sobre o clima (COP21), a posição do seu imenso país. Fora de questão, para ele, que a porta do desenvolvimento económico dos países emergentes lhes seja fechada por causa da luta contra o aquecimento. Para a Índia, como para os seus vizinhos chineses, indonésios ou africanos, o acesso à economia de mercado não é negociável. Sendo assim, que fazer?
(Le Monde : pág. 1 do caderno “Economia e empresa” in Perdas e lucros/COP 21).

As muçulmanas: “Quem nos trava são os homens, não a religião”
“Os homens devem dirigir as mulheres por causa da preferência que Allah concede a uns em relação às outras…”, recita o Corão na Sura IV (Na-Nisa’, As Mulheres), verseto 34. Naturalmente, o problema reside na contextualização histórica. Em Itália, o uso que os machos fazem do conceito é muitas vezes criminoso. O homicídio da paquistanesa Hina Salem, massacrada e enterrada em 2006 pelo Pai com a ajuda de alguns parentes machos, e aquela da marroquina Saana Dafani, esfaqueada pelo Pai em 2009, acenderam um farol sobre a condição das jovens acusadas de comportamentos demasiado ocidentais. “Se estás mais  interessada num cinto explosivo que num vestido de noiva branco,  ou nas fantasias das princesas da Disney, vem até nós”, prometem os propagandistas de al-Zawra, a escola jihadista que, de Raqqa, oferece cursos de cozinha e lei islâmica, de economia doméstica, armas e meios de comunicação a centenas de jovens como Merieme Rehally, Irmã Rim no mundo do Twitter,  estudante que deixou Pádua para se arrolar na logística sob a bandeira negra de Al Baghdadi. “Alguma experimente pôr um lenço na cabeça e procurar trabalho”, escrevia provocatoriamente a italo-jordana-palestinesa Sumaya Abdel Kader: “Bom, a probabilidade de sucesso é igual a zero!”. Era em 2008 e, pioneira entre as de segunda geração, Sumaya tinha criado a personagem de Sulinda, 30 anos, que, no romance autobiográfico “Uso o Véu e adoro os Queen” satirizava o hijab, véu que emoldura a face, reivindicando a liberdade de o endossar. “ Dão-nos uma máquina de lavar roupa, aí na Síria? Achas que posso levar o gato? “. Este o léxico familiar, via Skype, de mamma Assunta para a sua filha Maria Giulia, agora Irmã Fátima no Califado, (a arrumar o carro com o Marido para irem ter com ela, quando foram detidos) que nos diz muito acerca da grande confusão mental que induziu, e continua a induzir, um sem número de mulheres europeias e, agora, cada vez mais italianas, a engrossar as hordas do ISIS.
(Corrière della Sera: págs. 1, 8 e 9, in “O Islão em Itália”).

A Turquia joga com a fraqueza europeia
Face a uma Europa desunida e volúvel, o Presidente turco, Recep Tayyip Erdogan, é em posição de força. E gosta disso. Bruxelas corteja Ankara, actor chave de uma dupla crise que na realidade é só uma: a do fluxo migratório cujo destino é a UE, e o caos do Médio Oriente. Mas na sua relação complicada com a Turquia, a Europa é menos vítima de Erdogan que da sua própria incúria. É um triste espectáculo. Três horas de negociações em Bruxelas, domingo 29 de Novembro, entre os europeus e a Turquia, para tentar dominar o fluxo migratório mais forte que o Velho Continente conheceu depois de 1945, resultaram num acordo mínimo e sem calendário. A Turquia de Erdogan é um parceiro difícil e imprevisível. Tem uma atitude ambígua contra a organização do Estado Islâmico, do qual é também ela vítima. A deriva autocrática do seu Presidente e o seu discurso muitas vezes depreciativo dirigido ao Ocidente, afastam-na, cada dia um pouco mais da UE.. Tudo isto é verdade. Mas o que as crises nascidas da tempestade médio-oriental descobrem em primeiro lugar, são as fraquezas de uma UE em plena regressão: ausência de um mínimo de política externa e de defesa comuns; ausência de uma política de imigração; inexistência, ou muito poucos reflexos,  de solidariedade entre os seus membros. Tudo isto é registado em Washington, em Moscovo e em Pequim. Mas também em Ankara.
(Le Monde: pág. 24, in Editorial).

China, o Yuan será convertível e reduzirá o peso do Euro
A China dá mais um passo para a sua integração no sistema financeiro mundial com o ingresso do renmimbi, a “divisa do povo”, no clube fechado das moedas de reserva globais. Ontem o FMI deu luz verde à introdução do yuan, o outro nome da divisa chinesa, no cesto das divisas que compõem os Direitos Especiais de Saque (SDR), isto é, a unidade de conta do FMI que até agora compreendia o US dólar, o Euro, o Yen e a Libra Esterlina. O renmimbi entrará no cesto, como quinta divisa, em 1 de Outubro de 2016, quando passará a ser livremente utilizável, e pesará 10,92%. A new entry  redimensionará o peso das outras divisas: o euro descerá de 37,4% para 30,9%, o yen de 9,4% para 8,3%, a libra esterlina de 11,3 para 8,1%. Substancialmente invariável o US dólar de 41,9% para 41,7%. Que coisa significa? Os SDR são uma divisa teórica. A inclusão do yuan é, por isso, sobretudo simbólica: certifica que a moeda chinesa tem agora um papel significativo no comércio mundial e é usada livremente  a nível internacional. É por isso que Christine Lagarde, número um do FMI, define a decisão como “um marco importante” para a economia chinesa e um “reconhecimento” dos progressos feitos pelas autoridades de Pequim na reforma do seu sistema.
(Corrière della Sera: pág. 25, in Economia).

Ciao basket
Kobe Bryant, o fora de série atleta do Los Angels Lakers, anuncia que no fim da época acaba a sua carreira, e abandona com uma poesia:

Caro basket,

Estou pronto a deixar-te.

Fizeste-me viver um sonho e amar-te-ei sempre.

Mas não posso mais amar-te com a mesma obsessão.

Corri em todos os parkets e atrás de cada bola por ti.

Dei-te tudo!

O meu coração pode suportar a batalha,

A minha mente gerir o cansaço,

Mas o meu corpo sabe que chegou a hora de dizer adeus.

Amar-te-ei sempre.

 (Corrière della Sera: pág. 37, in Desporto).

 
Abraço. 

Lisboa, 10 de Dezembro de 2015
Octávio Santos

quinta-feira, 3 de dezembro de 2015

Ensaio sobre o equilibrismo sem rede, habilidades na corda bamba, confusa carta aberta, balões e champanhe, flashes poéticos ilustrados com a lucidez que espero não faltará à boca das urnas hexagonais


Saía eu da Biblioteca Camões, onde tinha ido assistir à apresentação do livro de poesia “Flashes Poéticos”, de Zita Nogueira, sem ter na cabeça  qualquer ideia precisa para a construção desta crónica, quando um dos poemas me trouxe à memória Florbela Espanca e a sua trágica lucidez, e as suas ilustrações, não fossem elas de quem (Carlos Nogueira) tem arte no ADN,  me atraíram pelo constante equilíbrio das personagens, lembrando-me que poderia responder com uma carta aberta a um amigo que, dias antes me congratulara precisamente  pela lucidez a propósito de um dos meus textos. O poema, de quem soube depois ser de Barcelos mas calipolense por conversão - e daí o seu cheirinho a Florbela -, aí vai, com a devida vénia, seguido da carta, matando eu assim muitos coelhos (nada de política hoje) com uma só cajadada, espero que certeira. 

Viver a plenitude (a) 

Na plena tranquilidade deste momento

Fecho os olhos para apenas absorver

A soberba plenitude que me ressalta da planície.

Mas não sei o que é que nela assim me atrai.

Se apenas a calma que dela sobressai,

Ou se será a agrura que nela assim perdura.

 

E fecho os olhos para assim melhor poder crer

Porque creio no que sinto neste momento.

Sinto que é a verdade que nela quer crescer

Que emerge, e grita, me chama e me atrai

Porque a verdade por mais dura que possa ser

Brote inerte e não s’enrede com o que pode parecer!

 

Na serena expansão do meu olhar

Não sei o que agora mais queria.

Se ser capaz de tocar os pontos opostos

Do excesso desta tamanha imensidão

Se ficar apenas na delícia da gratidão

Que por si só me conduz no abismo da solidão!

                    Zita Nogueira

                    in antologia “Tempo de Palavras” nº 2, editado pela Editorial Minerva em Dezembro de 2015

Carta aberta a um Amigo

Caro João,

Agradeci-te os teus “Parabéns pela lucidez”, não podendo deixar de completar, como me pedes, aquele trecho do meu agradecimento que dizia: “Embora a lucidez não seja uma virtude mas um árduo trabalho de equilibrismo...”. É obvio que não sendo eu digno de atar os atacadores do Saramago, nada posso acrescentar ao seu ensaio sobre o tema, confessando que me seria mais fácil opinar sobre o da cegueira, mas vou tentar ser breve servindo-me, como sempre, de um exemplo prático de vida vivida. 

Tive a felicidade de ter privado com um diplomata que já não está entre nós, o Embaixador Zózimo Justo da Silva, como tu nascido em Moçambique, que um dia, tentando refrear a minha impulsividade (tinha eu 28 anos), me explicou que se eu acabasse de encher um balão e o largasse à toa, ele me saltaria das mãos e começaria a bater nas paredes e no tecto até cair vazio no chão, mas que, se eu tivesse a inteligência de, aliviando a pressão dos dedos, o deixar esvaziar a pouco e pouco, todo o ar sairia sem qualquer estardalhaço. Esta pequena lição com mais de 40 anos, para te dizer que todos nós, muitas vezes, ao ver ou ouvir certas coisas que não nos agradam, temos a tentação de começar a espadeirar à direita e à esquerda, lançando pela boca fora aquilo que de momento nos parece ser justo e claro como a água. E é aqui que entra o “árduo trabalho de equilibrismo”, ou seja, não deixarmos saltar a rolha do champanhe só para fazer barulho, porque ele bebe-se bem à mesma se a segurarmos até sair (aproveito para te desejar Bom Natal, mesmo que, por acaso, sejas muçulmano), como acontecia com o balão da parábola do Zózimo.  

Dou-te um exemplo, para não te fazer perder muito tempo, a ti e a todos os incautos leitores: ao ler a caixa do Correio da Manhã “Uma cega e um cigano no governo PS”, o meu primeiro impulso foi o de começar a gritar: “ - Mas estes filhos de uma nota de vinte paus não têm vergonha nem pudor?”, mas não o fiz, primeiro porque filho dessa até pode ser um elogio e eles não o merecem, e segundo porque ouvi alguém comentar na televisão que o dito jornal estava a perder qualidades, já que o que ele estava à espera de ler seria: “ O monhé escolheu uma preta, uma cega e um cigano para o seu governo”. Assim, não disse nada, fingi que não tinha lido, deixei o balão esvaziar devagarinho e, com um ataque de lucidez, disse de mim para mim, citando a Bíblia: “Bem aventurados os pobres de espírito porque deles é o reino dos céus”. Mas lá que é preciso equilibrismo, lá isso é! 

Para terminar só desejava que um ataque agudo de lucidez, mesmo neste momento em que manter o equilíbrio é um exercício muito, mas muito, difícil, iluminasse os franceses - Nous sommes tous Paris - no momento de ir às urnas, para que pensassem duas vezes antes de votarem Le Pen. 

Kani Mambo
Octávio 

E, porque mais uma vez não fui claro, perguntar-me-ão: - Mas afinal o que é para ti a lucidez? E eu respondo, repetindo aquilo que provocou esta minha vã tentativa de clarificação, que a lucidez não é uma virtude mas um árduo trabalho de equilibrismo, acrescentando agora que estou a ler o livro “O Fim dos Segredos”, no meu caso, sem rede. 

(a)   Gostei do poema também porque repete três vezes a palavra “nela” que é, talvez, aquela que repito mais vezes ao dia, embora com maiúscula.

Abraço.
 

Lisboa, 3 de Dezembro de 2015

Octávio Santos