quinta-feira, 4 de junho de 2015

Tendo descoberto a mina de ouro do silêncio sobre certos temas, o cronista ocupa-se hoje de Horns of Cornwall, do preço da política, sonhos sublimes e escabrosos, “A Teoria dos Jogos”, do génio e a loucura, Macchiavelli e Calvino, Riccardo Muti e José Mário Branco, escadas dos Céus e escalas de músicas, instalações e tampax com uso impróprio: do que um homem é capaz!


O Mundo não é perfeito. Este só inventa a água quente, direis vós, e mesmo assim foi preciso ultrapassar os 70. Emendo a mão: umas vezes é perfeito, enchendo-nos de convicções, e outras não o é, destruindo-nos certezas. Dou dois exemplos destes dias. A Duquesa da Cornualha acaba de brindar o seu Real consorte com um elmo à viking. Querem mais perfeição, mais harmonia cósmica, mais compatibilidade entre as peças deste puzzle real que se vem montando (salvo seja) há anos e que só os bebés salvam? Talvez por me faltarem, a beleza e a coragem foram sempre dois imanes que me atraíram, e vê-los juntos na pessoa da Senhora Aung San Suu Kyi foi coisa que a transformou aos meus olhos num ser superior, uma Joana d’Arc com laivos de Madre Teresa de Calcutá no corpo da Audrey Hepburn, e é por tudo isto que sofro com o seu silêncio perante o massacre que a população rohingya - minoria muçulmana - está a sofrer na sua Birmânia ou Myanmar, como lhe queiram chamar, fugindo para ir morrer nas costas da Tailândia e da Malásia. Até o Dalai Lama, guia espiritual da maioria budista daquele país asiático, já disse à Senhora que isso não se faz, esquecendo que se está em plena campanha eleitoral e que a Senhora quer assumir o poder na sua amada terra pela qual tanto se sacrificou. Eu diria que foi mais um ídolo, este com pés de tofu, que se desmoronou abalando as minhas já poucas certezas. E alguns sonhos.

Por falar em sonhos posso-vos repetir um, seguramente inventado, que o actor e escritor genovês Paolo Villaggio contou perante uma plateia comovida pela beleza do episódio ou pelos mais de 80 anos do efabulador. Disse ele então ter sonhado, que pelos seus 15 ou 16 anos, ter ido a uma festa campestre nocturna em qualquer terreola da sua Ligúria natal, acompanhado por uma menina sua coetânea pela qual começava a nutrir um sentimento de amor com a esperança de ser correspondido. Após terem girado pelo terreiro iluminado, parando em todas as barracas de jogos, comido algodão doce e extasiando-se perante o gigante que quebrava correntes de ferro, o engolidor de espadas que também cuspia labaredas, e a abundante mulher barbuda (a Conchita Wurst veio depois resgatar a classe), pegou na mão da sua companheira afastando-se a correr do círculo de luz que delimitava a cor, a alegria, o ruído e o divertimento, levando-a para o pinhal vizinho longe de toda aquela confusão. Chegados, ela encostou-se cansada a um pinheiro, ele pegou-lhe em ambas as mãos e aproximou a sua boca da dela para aquele primeiro apetecido beijo. Aí, suspendeu o que sonhava há tempo, largou-lhe as mãos e saiu a correr em direcção ao local da quermesse, dirigiu-se à barraca/bar de cujo balcão surripiou um copo em bicos de pés, correndo novamente ao encontro de quem o esperava. Pelo caminho foi apanhando com o boné todos os pirilampos que se deixaram apanhar, meteu-os no copo e, quando chegou finalmente junto dela ofegante, levantou, cortando a escuridão do pinhal, a sua improvisada lanterna à altura dos olhos da dona daquela boca que não tivera coragem de beijar sem que, inundando-os de luz, fosse por eles iluminado.

Lindo, mas achei que o velho estava a ficar louco e acabei a pensar no extraordinário John Forbes Nash, Jr. (Uma Mente Brilhante) agora tragicamente desaparecido, perguntando-me onde está a fronteira entre a normalidade (neste caso, a genialidade) e a loucura. Como é que um homem que levava a racionalidade ao extremo, que elaborou, em só 27 páginas, a Teoria dos Jogos partindo da genial intuição do matemático Von Neumann que, nos anos vinte, se pôs a estudar quantitativamente o comportamento humano, que ganhou com esse trabalho o Prémio Nobel da Economia em 1994, que deu origem ao chamado “Equilíbrio de Nash” que é um dos pontos cardeais da sua teoria e se aplica em todos os campos, da economia ao desporto, da biologia à política, da matemática à arte da guerra, para não pôr mais na carta, como é que este homem genial passou anos de tortura num manicómio por esquizofrenia? Será que a luta, ainda hoje travada diária, e parece que ingloriamente, entre a racionalidade a superstição e o sobrenatural, só pode levar à fatal desorganização dessa máquina perfeita que é o nosso cérebro?

No dia 30 de Setembro de 2013, John Nash esteve na Universidade de Bergamo a convite do seu amigo Piergiorgio Odifreddi, matemático e lógico italiano, num encontro intitulado “A colloquio con John Nash”, tendo dito nessa ocasião: “- Se há ainda espaço para experiências económicas sobre o comportamento humano é uma questão em aberto sobre a qual estou a pesquisar, mas não sei se chegarei a algum resultado, mesmo que venha a viver mais que Newton ou Einstein”. Citou Macchiavelli, que muito apreciava, dizendo “parecer-lhe que o Príncipe, muito táctico, escrevesse aconselhando os mafiosos sobre como agir com eficiência”. Por fim, declarando que a sua “Teoria dos Jogos” é usada todos os dias na finança como, por exemplo, nas trocas de títulos, citou Italo Calvino que, no seu romance “Se uma noite de inverno um viajante” escreveu “O melhor que se pode esperar é evitar o pior”, acentuando ele que “procurar de fazer o melhor para evitar o pior é uma das possíveis interpretações da sua teoria”. Para mim, de um génio assim desregulado, não é legítimo emitir uma opinião, mas Piergiorgio Odifreddi contou um episódio que ilustra bem a personalidade de John Nash. Tendo sido por ele convidado para uma conferência na Universidade de Princeton, entraram ambos no edifício com as suas bolsas que continham coisas importantes mas não necessárias aos trabalhos. Aí, John Nash adiantou três locais onde seria possível deixar as bolsas a guardar durante o decorrer da conferência, começando a argumentar os prós e os contras de cada uma das hipóteses. Tendo-se alongado sem ter encontrado a solução mais racional, e vendo Odifreddi o tempo a passar e a conferência na eminência de começar, dirigiu-se ao bengaleiro e entregou a sua bolsa. Então, o Prémio Nobel, visivelmente contrariado, olhou para ele e disse: - Vês Piergiorgio, tu já resolveste o teu problema, mas eu continuo sem solução para o meu.

Para mim, uma mente destas, que com a sua teoria condicionou 10 Prémios Nobel da Economia de 1994 até aos dias de hoje, pode-nos dar matéria para pensar e aprofundar cada pensamento até ao seu extremo limite, seja ele o da razão ou o da loucura. Apetece-me assim descobrir porque é que nas estátuas egípcias os homens têm sempre as mãos fechadas segurando uma arma, um amuleto ou um ceptro, no caso dos Faraós, ao contrário das mulheres que são representadas com ambas as mãos abertas e vazias, ou então começar a divagar sobre tudo e dar explicações que, mesmo se falsas, sejam tão sugestivas que te façam sonhar, como aquelas que o Maestro Riccardo Muti deu sobre a invenção da música, sem a qual, na sua opinião, os homens estariam ainda em estado selvagem. Disse Muti que um dia os anjos querendo ver o que se passava na Terra desceram do Céu por uma escada (em italiano “scala” tanto significa escada como escala), mas aterrorizados pelo que viram, voaram directamente para o Céu esquecendo a escada (escala) na Terra. Os homens, curiosos do objecto desconhecido vindo do Céu, começaram a adorá-lo, a decorá-lo com estranhos gatafunhos e a entoar ritmicamente palavras em sua honra, e assim nasceu a música. Aproveitando o encanto, entremos novamente no sonho, só que desta vez o sonho foi meu, tive-o há poucos dias e tenho ainda nítidas as imagens do mesmo, temendo eu que ao contá-lo os leitores não me acreditem ou tenham a tentação de me meter no manicómio como aconteceu ao génio matemático, do qual só tenho a loucura.

Questão de complexos próprios de quem tem 1,67 de altura, apareceu-me no sonho um com menos um palmo, o qual dominei imediatamente tendo-o metido numa espécie de engradado feito de tábuas de caixote que preguei sofregamente, após o que envolvi o conjunto com metros de fita adesiva larga e transparente, tendo finalizado a “instalação” pintando-a à pistola com tinta branca. Apareceu entretanto em cena um casal, ambos ainda mais baixos que o pobre engaiolado, quase anões, que tentei convencer, primeiro por palavras e depois pela força, a praticarem acto de comércio carnal na minha presença com o intuito malvado de ser o criador de uma nova estirpe humana que me fizesse sentir alto. A mais renitente era ela que acabou por se libertar das minhas mãos dando às de vila-diogo; acontece que na fuga tropeçou no cordelinho do tampax, estatelando-se e desatando aos guinchos que tiveram o condão de me despertar. Vi as horas no relógio sobre a mesinha de cabeceira e fiquei ali de papo para o ar a memorizar as peripécias do estranho sonho e, envergonhado de o ter feito, a perguntar-me qual o seu possível significado. Acabei a rir sozinho lembrando-me do lustre da Joana Vasconcelos, o qual, formado por centenas de tampax à laia de pingentes, esteve exposto no Palácio de Versailles provocando não pouco escândalo na conservadora alta sociedade francesa, e reflectindo sobre se os tampões tornados arte pela mão da designer não teriam tido melhor e mais natural serventia a tapar os nascedouros de onde despontaram tantos imbecis (criminosos só dentro de 10 anos quando a justiça o decidir) que se apoderaram das nossas vidas, evitando que os mesmos viessem à luz.
 
E eu que não seria digno de apertar as correias das sandálias de John Nash, atrevo-me a macaqueá-lo citando também eu Italo Calvino com uma frase do mesmo romance: “Escrever é sempre esconder qualquer coisa de maneira que venha a ser descoberta posteriormente”.
Abraço.

Lisboa, 4 de Junho de 2015
Octávio Santos


PS: Tendo ouvido recentemente a canção de José Mário Branco “Do que um homem é capaz”, deixo-vos os últimos versos:

Há princípios e valores
Há sonhos e há amores
Que sempre irão abrir caminho
E quem viver abraçado
À vida que há ao lado
Não vai morrer sozinho
E que morrer abraçado
À vida que há ao lado
Não vai viver sozinho