quinta-feira, 18 de junho de 2015

“O Texto Poético como Documento Social”, Rómulo de Carvalho, 1994.


 

 
5 poesias 5, retiradas do livro de Rómulo de Carvalho (António Gedeão) “O Texto Poético como Documento Social”, de 1994, que nos dá um retrato social do país através da poesia suscitada pelos acontecimentos marcantes no decorrer da sua história, que poderão ser lidos na ilusão de que foram escritos ontem, não fosse a linguagem fora do nosso tempo.
 
1 - De António Feliciano de Castilho, Escavações poéticas, Lisboa, 1844. O poeta “dirigia-se ao povo pondo-o de sobreaviso contra as promessas dos políticos:”
 
          Mas, Povo, neste mar onde ora embarcas

          Há sirtes, há parcéis, há monstros negros,

          E proa não velada acha naufrágios.

          A baixa sedução virá primeira

          Com a virtude na voz, nas mãos a bolsa,

          Traficar de infortúnio em tom sumido.
 

          Outros tentando

          A crédula ambição com dextras falas

          hão-de apontar-te os cumes dos favores,

          a futura medalha, a pingue renda,

          o acesso livre aos pórticos dos grandes

          e a oficiosa pasta abrindo graças.

 

          Mais perigosa astúcia acharás noutros

         Sem promessas nem dádivas. Só falam

          No bem público e em si. Vão nessa conta

          Poucos leais; grão número te engana.

 

         “Viva o Povo!”, era o dia do conflito.

          Passa o conflito e afastam-se do Povo,

          Requestam distinções, namoram fitas,

          levam à escala os  cargos, a opulência,

          da choça natalícia erguem palácios,

          e em coche insultador, troando as ruas,

          com o pó, que encheu seu berço, o Povo alagam.
 

2 - De Alexandre Herculano, A Harpa do Crente, poema Arrábida, Lisboa, 1838. Herculano, um dos poucos homens a quem “a desordem política, a vida ostensiva dos abastados e a corrupção oportunista faziam tremer de indignação”.

          Oh cidade, cidade, que transbordas

          de vícios, de paixões e de amarguras!

          Tu lá estás na tua pompa envolta,

          soberba prostituta, alardeando

          os teatros, os paços, e o ruído

          das carroças dos nobres recamados

          de ouro e prata, e os prazeres de uma vida

          tempestuosa, e o tropear contínuo

          dos fervidos ginetes, que alevantam

          o pó e o lodo cortezão das praças;

          e as gerações corruptas de teus filhos

          lá se revolvem qual montão de vermes

          sobre um cadáver pútrido !
 

3 - De João de Lemos, Cancioneiro, Lisboa, 1859. O poeta “deplorava, amargurado, a situação degradante a que Portugal chegara”.

          Quem és tu, pobre velho ? Por que choras

          assentado à beira-mar ?

          Por que levas assim magoadas horas

          com as ondas a suspirar ?

 
          Que roto manto é esse que te cobre ?

          Que livro o que tens na mão ?

          É tua, já te ornou a fronte nobre

          a coroa que tens no chão ?

 

          De que era essa Cruz ? Por que essa espada
    
          tens partida sob os pés ?

          Que bandeira é que aí tens enrolada ?

          Responde , ó velho, quem és ?
 

4 - De Bulhão Pato, Cantos e Sátiras, A Velhice do Século, Lisboa, 1873.  Sobre as “Conferências do Casino” cujo “objectivo era promover  debates de ideias, particularmente no âmbito social, pondo em causa a organização vigente” (a monarquia).
 

          Em meio deste horror que exige o povo agora ?

          Ao passado diz: Basta ! Há muito que devora

          a classe do trabalho a sede, a fome, a peste,

          enquanto o capital de pompas se reveste,

          exulta no esplendor das salas deslumbrantes,

          adormece feliz nos braços das amantes,

          embriaga-se à mesa e ri-se com desdém

          daqueles que nem pão sequer ao menos tem !

          E nós da aurora à noite embalde  transudamos !

          Ao cabo do caminho apenas encontramos,

          exauridos de força, o leito do hospital,

          e algum descanso, enfim, na vala sepulcral !

 

          Quando o saber iluminar os povos

          Então hão-de surgir os horizontes novos.
 

5 - De Francisco Xavier de Novais, Poesias, Que Mundo este, Porto/Braga, 1879. “ A ascensão da riqueza, com todas as infiltrações de corrupção que normalmente a acompanham, irritavam os utopistas das sociedades sem máculas defendidas pelo poeta”.

          É verdade que hoje o pobre,

          o plebeu, não tem valor.

          Seja o homem rico e nobre,

          o meio…seja qual for.

          Como haja magnificência,

          dinheiro, muita excelência,

          muito servil barretada,

          que importa que o mundo fale.

          Quem muito tem, muito vale.

          Quem não tem, não vale nada.

          Se um homem aventureiro,

          sem talento ou instrução,

          hoje vejo cavaleiro,

          amanhã senhor barão,

          p’ra semana deputado,

          logo ministro de Estado,

          sem ninguém saber porquê,

          com sentimento profundo,

          eu só digo, ah! Mundo, mundo!

          Quem te viu e quem te vê!

 

Abraço
Lisboa, 18 de junho de 2015
Octávio Santos