quinta-feira, 6 de agosto de 2015

Lembranças com mais de meio século de um menino remediado que via o Mundo da sua janela, contava automóveis, assistia à pequena comédia humana, com as suas pobrezas e misérias, analisava comportamentos e estéticas, copiava tiques de macho e, em dias de menos movimento, se deixava adormecer e sonhava, tendo esquecido quase todos os sonhos, com duas pequenas e construtivas excepções


Sei que em 1962 ainda não tinha televisão em casa porque me recordo de ter parado em frente da montra de uma loja de electrodomésticos na Rua Augusta ou Áurea – ou talvez na Rádio Victória, candeeiros bem bonitos, modernos, originais, compre-os na Rádio Victória não se preocupe mais, porque na Rádio Victória, Embaixada do bom gosto, quem lá vai é bem servido e sai sempre bem disposto -, a ver, por cima do ombro de outros como eu, os últimos dramáticos minutos da final da Taça dos Campeões Europeus, em Berna, durante os quais o Benfica sofreu a bom sofrer para aguentar aqueles 3 a 2 contra o Barcelona, que tanta alegria e orgulho nos deu. Depois chegou também o desejado aparelho, um NordMende, mas até esse momento a minha janela para a cidade (o meu Mundo) era aquela da casa de jantar da Travessa do Moínho de Vento, 23, que dava sobre a Quinta do Tobias e o cosmos humano que a mesma abrigava (ver a minha crónica de 3/4/2014), e os campos verdes com ovelhas a pastar que existiam onde depois se abriu a Avenida Infante Santo até à Cova da Moura. Pois dessa janela, antes e depois dessa abertura, ia vendo o meu Mundo, gravando o que nele se passava e fazendo juízos sempre pessoais, mas nem sempre correctos, de quanto ia acontecendo diante dos meus olhos.

Ia também ao cinema de vez em quando, ao Paris (hoje, que vergonha!), ao Europa ou ao Cinearte, raramente aos grandes, Império, S. Jorge, Condes, Éden, Politeama, Monumental, Odeon, etc…, mas o que ali via com desmesurado encanto, desdenho ou terror – lembro-me de ter visto “As Diabólicas”, para maiores de 18 anos, apenas com 12 – era de tal modo distante da minha realidade que me influenciaram tanto como hoje a visão de “Avatar” ou de “Terminator”. Quando não havia “telenovela” entre os membros da fauna que me passava debaixo da janela, ou não havia o semanal espectáculo de Robertos, os carros que desciam o tobogan da Rua de Sant’Ana, virando depois à esquerda para a Tenente Valadim que era um beco contra o muro do Hospital da Estrela (até já esse se foi!), seguindo em frente em direcção à Rua de Buenos Aires ou, mais tarde, virando à direita para a nova Infante Santo, raramente não pretos, a esses conhecia-os todos por marca, modelo, origem e motor, tendo feito, calculem, desafios de contagem por marcas, ganhos a partir de certa altura, sempre e com grande diferença, pelo Carocha, e antes dividindo a vitória entre o Opel, o Ford, o Austin, o Morris, o Renault, o Peugeot, o Chevrolet e o Fiat, poucas vezes pelo Citroën, o DKW ou o Simca,  nunca pelo Javelin, o Volvo, o Alfa Romeo, o Jaguar, o Sunbeam Talbot, o Mercedes ou o MG;  o Japão, com os Toyota e Datsun chegou depois, e a Coreia, com os Hyundai e  KIA, já eu não era “português”.

Em momentos de acalmia, durante os quais nem os “rapazes da rua” desciam a Rua de Sta’Ana com os carrinhos de esferas, nem o Alfredo maluco dava as suas correrias espalhando nuvens de perdigotos com a imitação do barulho da moto idealizada, nem a preta das alfaces apregoava a sua fresca mercadoria, acontecia-me adormecer e prolongar pelo sonho o espectáculo da vida. Ainda hoje, quando desperto noite funda a meio de um sonho, tenho vontade de me levantar para tomar notas sobre o mesmo a fim de não o esquecer, acabando invariavelmente por não o fazer, chegando de manhã sem qualquer memória e zangado comigo mesmo pela falta de força de vontade que tanto recomendo aos outros. É por isso muito estranho que ainda hoje me recorde de dois sonhos que fiz há mais de 50 anos, diante daquela janela, sentado no único cadeirão que existia na casa de jantar, e vou agora registá-los para não arriscar perder-lhes o tema e a trama. É curioso que, referindo-se ambos à construção de uma casa, possam ter condicionado a minha ambição juvenil de me tornar arquitecto, felizmente nunca concretizada já que corria o risco de nunca acabar qualquer projecto.

1º Sonho
Um homem jovem começou a construir uma casa pelo telhado e, das duas uma,  ou os sonhos são fantasia ou anjos lhe seguravam as telhas com fios invisíveis; a casa foi nascendo, depois das telhas seguiram-se as traves do telhado, a chaminé, o tecto, as paredes com vãos para janelas e portas, o soalho e a laje que o sustentava, mas não os alicerces porque o homem se descobriu incapaz de os construir. Diante da casa, que levitava a um metro da terra, o homem subiu por uma escada que apoiou à entrada da porta e entrou em casa, tendo-lhe agradado o que viu e, sobretudo, estar nela, pelo que começou a enchê-la com tudo aquilo que uma casa precisa, móveis, roupas, livros, pessoas, louças, banheira, fogão e outros pertences sem os quais uma casa não seria uma casa. Instalou-se e nela viveu como se fosse natural viver numa casa suspensa sem alicerces, mas onde incrivelmente tudo funcionava sem que ninguém desse pela extraordinária manutenção daquele estado de coisas. Então acordei e, embora tente ainda hoje encontrar uma explicação para o estranho sonho, nada me ocorre que jeito tenha e arquivo tudo na conta dos sonhos que, por definição, não pertencem à vida real. Ponto final.

2º Sonho
Um homem começou a construir uma casa como mandam as regras. Abriu os caboucos e neles começou a assentar os alicerces. Terminados estes, percebeu que não tinha conhecimentos nem ferramentas para começar a levantar as paredes e ali ficou diante da obra a magicar como havia de resolver o problema que lhe impedia continuar a construção da casa. Entretanto, tentava encher o espaço com tudo aquilo que uma casa precisa, móveis, roupas, livros,  pessoas, louças, banheira, fogão e outros pertences sem os quais uma casa não seria uma casa, mas percebeu que nada disso era possível. Então sentou-se junto dos alicerces da sua casa, que queria perfeita e equilibrada, e ficou ali à espera que um milagre acontecesse. Então acordei e, embora tente ainda hoje encontrar uma explicação para o estranho sonho, nada me ocorre que jeito tenha e arquivo tudo na conta dos sonhos que, por definição, não pertencem à vida real. Ponto final.

Abraço.       

Lisboa, 6 de Agosto de 2015
Octávio Santos