quinta-feira, 27 de agosto de 2015

Desorientado com o que vê e ouve à sua volta, o cronista comete o abuso de tomar o leitor por pia de despejo da sua diarreia mental, esperando que alguém tenha a caridade de, à guisa de comentário, plagiar a elegante e fina publicidade que nos bombardeia os sentidos dia e noite, sobretudo à hora das refeições: Pare a diarreia antes que a diarreia o pare a si!


Perdido no inextricável labirinto em que estamos todos metidos e não sabendo já o que fazer nem o que pensar, ponho-me a ler e a ouvir notícias que se acavalam não respeitando prioridades nem hierarquias, empilho livros que deveria ler até ao fim, limitando-me a deles tirar frases avulsas e conceitos que mais não fazem que aumentar a minha confusão. Assim, peguei no Evangelho de São João e, no prólogo, que me interessou porque é estruturado como um poema, parei logo após a primeira frase: No princípio era o Verbo (a Palavra) e o Verbo estava com Deus e o Verbo era Deus. Acontece que o discípulo amado escreveu isto em grego, língua da cultura e da filosofia (e não só), e a palavra usada, depois traduzida por Verbo ou Palavra, foi LOGOS, ambiguidade que, em sentido filosófico, significa(va) princípio, razão ou lei racional que governa o mundo, e aqui deveria retirar-me porque tudo isto vai para além da minha compreensão, e não apenas da minha já que Heráclito deixou dito que “ os homens são obtusos em relação ao logos, se bem que tudo aconteça segundo o logos”, e com isto aquietei-me até que descobri que Teilhard du Chardin, teólogo francês do século passado, tinha para ele que “o Universo caminha para um ponto final de amadurecimento, o Ponto Ómega, que tem como protótipo o Cristo (o Ungido, sempre em grego), o que significa que um dia a humanidade toda desenvolverá espontaneamente a sua divindade”.  Será que estamos perto da meta?

É difícil escrever com a televisão acesa, com o fito de não perder pitada do que se passa à nossa volta, porque és obrigado a fazer zapping entre os cento e tal canais à disposição para pescares entre as diversas opiniões e pontos de vista, e não é que vou cair na RTP Memória durante a transmissão requentada da telenovela “Os Lobos”, ouvindo durante aqueles escassos 10 segundos uma gaja boazona e inflamada dizer a um gajo convencido com cara de parvo:    - Tu  bebes gasosa e arrotas a champanhe! Fugi a sete dedos no telecomando e pensei que gostaria de conhecer o autor da rebuscada e incisiva frase para lhe explicar que autor deriva do latim augere, que significa aumentar, e que ele não me tinha aumentado nada com a frase da sua autoria. Minto, aumentou-me o desconforto e o descrédito.

Noto que entre os livros empilhados ao meu lado não tenho nada sobre as duas grandes guerras do século passado, assunto da maior actualidade já que há uma quase unanimidade quanto à iminência de uma terceira, e saio disparado para o Pó dos Livros na busca dos indispensáveis incunábulos. Ali chegado atiro-me ao habitual rito de apreciar capas, ler títulos, subtítulos, badanas e contracapas, e quase esqueço as guerras que demandava, embrenhado em pequenas coisas que me saltam à vista como “o futuro tem um coração antigo”, ou “se o tempo fosse um caranguejo “, ou “só posso ser feliz nos lugares onde não estou”, ou ainda que “os actores do cinema mudo eram muito superiores aos do cinema sonoro, porque tinham de nos transmitir os seus estados de alma unicamente com as expressões da sua face, os olhos em primeiro lugar”. Passeio a vista num volume sobre Spartacus e a revolução dos escravos, e vem-me em mente a Via Appia com cruzes cada cem metros, de Roma a Cápua, lembrando-me então que me interessa consultar a última legislação sobre os direitos dos trabalhadores em Portugal, pergunto no balcão onde o posso encontrar e obtenho a seguinte resposta. - Veja nas prateleiras da ficção científica. Perguntando-me se a escravatura acabou ou se está a renascer das suas próprias cinzas como os incêndios, todos por causas naturais, do nosso verão quente, mas vejo que estou a divagar porque afinal o que desejava era adquirir os livros sobre as guerras passadas e, poupando-vos pormenores, corro com eles debaixo do braço direito a casa.

Sento-me e leio ambos em diagonal, como fez Kennedy com os relatórios preliminares da sua inteligência sobre a Baía dos Porcos, e muito mais tarde Bush F.P. (a) com o das armas químicas do Saddam, desgosto-me obliquamente de tudo o que leio de 1914 a 1945, não sei o que me deu, pego numa maquineta de furar papel e transformo-os em confetis, capas e tudo, espalhando-os pela casa fora, e sabem como são os papelinhos de carnaval que se infiltram como piolho por costura por tudo quanto é sítio, e a casa coberta com os restos das passadas guerras, da cama de dormir à mesa de comer, da porta de entrada às janelas, da banheira à cagadeira, da biblioteca ao frigorífico, da frigideira ao PC, do Sto. António em madeira com o Menino ao diabólico quadro a óleo de N.Anguelov, dos tapetes aos cortinados, tudo, tudo minado que vai ser um bom sarilho limpar aquilo que até pelos olhos e narinas nos entra empurrado pelo vórtice do ar condicionado. Arrependido pelo gesto inconsulto senti-me inerme diante do desastre e pensei que tinha provocado, com as sementes das duas terríveis guerras que tentara decifrar, a tão anunciada terceira que muitos temem que chegue mas que já cá está, multiplicando-se também por culpa minha por todos os recantos do único lugar que nos foi dado (ainda o logos?) para viver.

Cheio de sentimentos de culpa, pelo menos das culpas que me cabem, eu, anti herói por excelência, lembrei-me dos jovens militares americanos que, com a sua pronta e decisiva acção, fizeram abortar um potencial episódio da guerra em curso, e fiquei orgulhoso quando soube que um dos nóveis heróis, agora com a Legião de Honra ao peito, presta serviço na Base das Lajes, quase tão orgulhoso como quando o mundo soube que o cão da Família Obama era um cão-de-água português. Estamos sempre presentes quando os grandes factos se produzem, com actuações não de pouca monta. À parte estes legítimos sobressaltos de orgulho lusitano, que têm o mérito de me fazer esquecer as minhas fraquezas e omissões, houve, pelo menos, duas declarações de Senhoras nossas patrícias, uma Ministro e outra ex, que me atiraram outra vez para a fossa da minha infelicidade onde o orgulho de ser português se dissolve, e foram:

- Gabriela Canavilhas disse das touradas: “ É indesmentivelmente uma prática cultural e, sendo uma expressão cultural com que a esmagadora maioria dos portugueses está de acordo, não há razão para que seja posta em causa”. Gostaria de conhecer o pensamento da excelsa Senhora sobre a tradição cultural de excisar e infibular meninas em países como, por exemplo, a Guiné Bissau. Ou será que estou a debitar mais uma das minhas invenções e, ainda por cima, a situá-la num país que para Portugal não existe? Peço a Deus que o António Costa, no caso improvável de vir a ser Primeiro Ministro depois de tudo o que o seu partido tem feito para que o não seja, não se lembre de a fazer novamente Ministro da Cultura.

- Assunção Cristas disse das sardinhas que não poderia satisfazer as legítimas aspirações dos pescadores portugueses, porque as contas que tem de apresentar aos seus patrões em Bruxelas não passariam na prova dos nove a que seriam sujeitas e, assim, lhe poderiam puxar as orelhas, ou ainda pior, vingar-se de nós. A Senhora é exímia a fazer contas de subtrair e dividir (b), menos nas de somar e multiplicar, ou não tivesse a escola daquele que destruiu a nossa frota de pesca por um prato de lentilhas (fora de prazo), e que nos ensinou que 19 menos 1 é igual a 18. Ao menos a este não o poderemos eleger outra vez, e as sardinhas não faltarão nos nossos pratos, só que pescadas por barcos espanhóis nas nossas águas, portanto fora das suas quotas. Mas boas à mesma!

a) Filho do Pai. Só isto.
b) Ai de nós quando formos governados pelos filhos dos retornados, disse Natália Correia. Além de poetisa era bruxa?

Abraço.

Lisboa, 27 de Agosto de 2015
Octávio Santos