quinta-feira, 17 de setembro de 2015

Sinal da Cruz sobre pelos no sinal, névoa partilhada entre Alessandria (que não é Alexandria) e o Cairo, os que vivem a chorar e os que morrem a rir, gorjeios, ais e delíquios da Piaf versus outros sons e movimentos, malas de alto design made in Portugal atrás de grades, Deus é morto ou Palavras perdidas?


Por muitas piruetas, cambalhotas e contorcionismos que faça no ginásio duas vezes por semana, não voltarei nunca mais a conseguir benzer-me com o dedo grande do pé direito – pelo sinal da Santa Cruz, livre-nos Deus Nosso Senhor, dos nossos inimigos… -, como fazia em cima da cama nas manhãs de domingo, em brincadeiras com os meus irmãos, agarrando o pé com ambas as mãos e levando-o à testa e ao queixo, lembrando-me de uma velha que vivia na aldeia da minha Avó e que tinha no queixo um sinal cheio de pelos, e era sempre uma risota pensando na velha a benzer-se e a dizer pelo sinal com o polegar em cima do sinal com pelo, recordando-me agora que uma vez a minha Avó estava no quintal sentada num banquinho a falar com uma vizinha/prima (eram todos primos) e eu cheguei-me e disse-lhe que a Mari Felícia (a velha) parecia uma cabra com aqueles pelos no queixo, e aí a minha Avó ficou muito corada e mandou-me embora: depois chamou-me para me ralhar porque ficara muito envergonhada com a prima Purificação porque ela era irmã da Mari Felícia, e nós temos de ter sempre cuidado com a língua pois nunca sabemos com quem estamos a falar, lição que nunca aprendi, o que se calhar até foi bom porque me sinto leve, tão leve que até os bolsos vazios ajudam, e não pensem que, nos dias de hoje, isso não contribui para esta estranha leveza que carrego comigo. 

Todo este intróito porque estou a ler dois livros ao mesmo tempo, ambos importantes (todos os livros são importantes), diferentes em tudo e que, por isso, se podem ler ao mesmo tempo visto não haver contaminação possível, embora eu tenha descoberto que o nevoeiro que domina todo o romance “A Misteriosa Chama da Rainha Loana”, de Umberto Eco, italiano de Alessandria, que me fez tornar à memória o episódio autobiográfico pio-circense que abre esta crónica, caiu sobre as ruas do Cairo e insinuou-se na alma dos habitantes do “Edifício Yacoubian” que assim se intitula aquele do escritor egípcio Alaa El Aswany.  Começo por este último que a minha Filha Margarida me ofereceu, numa tradução francesa do árabe (Egipto), talvez para que eu não falasse de assuntos que desconheço (os ignorantes são abelhudos), já que a única coisa que sabia do Cairo, para além dos postais ilustrados, é que na década de 70 viviam nos jazigos dos seus cemitérios mais de um milhão de pessoas, e isto foi-me dito por um dos “meus” saudosos Embaixadores (os de Sófia já se foram todos), e fala o mesmo sobre a vida quotidiana na capital egípcia, e também em Port Saïd, tendo por fundo, no nevoeiro da memória, a nostalgia do esplendor da monarquia no tempo em que o Rei Faruk reinava também na Via Veneto da Dolce Vita, a revolução do Movimento dos Oficiais Livres, de Gamal Abdel Nasser, a transformar tudo e todos em 52/53, os conflitos que se seguiram à nacionalização do canal do Suez, até aos dias de hoje, que, após a morte do raïs em 1970, abriu a porta a uma nova era de extremismos que deu no que deu, isto é, “uma sociedade dominada pela corrupção política, a ascensão do islamismo, as desigualdades sociais, a ausência de liberdade sexual, a nostalgia do passado” como li na contracapa. Não é meu hábito ler um livro sem sublinhar muitas passagens ou tomar muitas notas para uso futuro, mas desta vez, embora o romance seja didáctico e eu tenha aprendido muitas coisas que não imaginava, fui atraído principalmente por parte de um diálogo, a dez páginas do fim, travado entre um jovem torturado pela polícia que se põe, por raiva e desejo de vingança, à disposição dos Irmãos Muçulmanos, e o emir do campo de treino clandestino onde foi afectado à espera de uma missão:

- Juventude do islão, o vosso dia chegou. O alto conselho Jamaa escolheu-vos para levar a cabo uma operação importante, diz o emir.

- Que Deus seja louvado, Deus é grande!, responde o aspirante a mártir.

- É a vontade de Deus. Que ele vos abençoe e acrescente a vossa fé. É por causa disto que os inimigos do Islão tremem. Eles têm medo de vós porque vós amais a morte tanto como eles amam a vida, sentencia o emir pondo fim ao diálogo. 

O romance parece terminar com a descrição do nosso herói a ser abatido a tiro numa rua do Cairo: “Sentiu-se envolvido num bem estar estranho no mais profundo do seu ser. Depois, vozes longínquas, sobrepostas, chegaram-lhe aos ouvidos: toques de sino, cânticos, hinos murmurados em ladainha, vinham até ele como para o acolher num mundo novo”, mas o autor reservou ainda as 4 páginas finais para nos transportar ao restaurante Maxim, oásis de um passado faustoso, onde, Cristina, a proprietária grega, mantinha o mais alto nível de serviço e cantava Piaf ao piano (...non, je ne regrette rien...), para a festa de casamento entre um ancião rico proprietário de um apartamento de luxo no edifício Yacoubian, e uma jovem proletária que habitava num dos inúmeros tugúrios construídos no terraço do mesmo edifício após a revolução. Então, os convidados da noiva, de boca aberta diante da magnificência, nunca imaginada, do local, sobrepuseram a sua vontade àquela dos convidados do noivo e, afastando Cristina do piano, pediram à orquestra que tocasse música própria para danças orientais; os habitués, primeiro timidamente e depois com alegria e entusiasmo, começaram a bater as mãos, os homens, e a fazer youyous, as mulheres, invadindo a pista de baile. Será que vai acabar tudo assim? 

O romance de Eco é toda uma outra coisa. O nevoeiro que nos torna tudo desfocado e fluido… Não! Vou deixar este para a próxima crónica porque já me alonguei e não quero perder audiência, mas não posso deixar de vos servir, como sobremesa, o que ouvi cantar a duas Senhoras, ambas com mais de 60 anos. Não sei porquê, ou sei mas não digo, em Portugal é mais conhecida e apreciada a Laura “Pimba” Pausini que a hard roqueira Gianna Nannini ou a indefinível, indecifrável e insuperável Fiorella Mannoia, mas as canções, chamemos-lhe canções,Dio é Morto da primeira, e Le Parole Perdute da segunda, não podem deixar de ser ouvidas e apreciadas, música, canto, letra e mensagem. “Siamo ancora in tempo, amore mio” como nos grita a Fiorella, ou Deus, mesmo que no fim a Nannini o faça ressuscitar, nos virou definitivamente as costas? Quem vai ganhar esta luta entre o Bem(?) e o Mal(?)?  Os que desejam ardentemente a Vida como bem supremo, ou os que aspiram à Morte, já que os ensinaram que é esse o fim último a atingir? Há esperança ou não? 

Não se aprende só com o que vem nos livros, sejam de Umberto Eco, de Alaa Al Aswany ou de qualquer outro escritor, mas também com Iracy, brasileira detida em Tires que passa o dia a coser à maquina bolsas e malas de senhora, de alto design português (Compra o que é nosso!), e o tempo restante a ler, que escreveu no seu diário: “Somos o que fazemos, mas o melhor que temos a fazer é mudar aquilo que somos”. Seria uma citação? 
 
Abraço.

Lisboa, 17 de Setembro de 2015 
Octávio Santos