quinta-feira, 24 de setembro de 2015

Eco do nevoeiro (sem Pessoa) guiado por misteriosa chama, ecos de coisas lidas e ouvidas, livros e filmes, viagem contagiosa em busca de recordações, citações em fila como processionárias, pesca em desconhecidas águas turvas, peças de puzzle que encaixam às escuras, nonagenária Nini Pampam, cucos teutónicos, tomates de cão (de ornitorrinco não disponíveis), cocó feito na vinha à la recherche, com fim inusitado e arame farpado inibidor de fugas.

 
Após as reticências que vos deixaram em suspenso na última crónica, hoje repito que o romance de Eco, “A Misteriosa Chama da Rainha Loana”, é todo uma outra coisa. O nevoeiro que nos torna tudo desfocado e fluido, da sua Alessandria natal (Lissandria em piemontês, patrono S. Baudolino, tás a topar oh meu!), e não Alexandria (de Nasser) como se lê erradamente na badana, dos vales do Bormida, do Tanaro e do Pó, das montanhas piemontesas e da ausente memória autobiográfica do protagonista, fornece ao autor motivo para páginas e páginas de alta literatura, a começar pela citação de inúmeros textos que outros grandes seus pares lhe dedicaram, de Abott a Dickens, de Dante a Pirandello, de D’Annunzio a Pascoli, de Emily Dickinson a Shakespeare, de Savinio a Campana, de Flaubert a Baudelaire. Deste último não resisto a recitar, isto é, a citar a citação: “Agora um mar de nevoeiro banhava os edifícios, e os moribundos no fundo dos asilos”. Como não resisto a constatar que Eco não deve ter tido grandes relações com Tabucchi, senão não teria passado ao lado de Pessoa e do nevoeiro que envolve a sua “Última nau” (Mensagem, Mar Português) e o seu ilustre e desejado passageiro:
          Vejo entre a cerração teu vulto baço
          Que torna.
          Não sei a hora, mas sei que há a hora,
          Demore-a Deus, chame-lhe a alma embora
          Mistério.
          Surges ao sol em mim, e a névoa finda:
          A mesma, e trazes o pendão ainda
          Do Império.
 
          Ou o seu “Nevoeiro” (Mensagem, Encoberto):
          Ó Portugal, hoje és nevoeiro.
          É a hora!

Nesta onda poética, e querendo sempre chegar-me à frente em bicos de pés, escrevi agora esta:

Na Feira Popular

O algodão doce que levo à boca

É nevoeiro que faz com que a tua imagem

Me lembre uma pomme d’amour!

Então, entro descalço

(sem ninguém ver)

Na tua alma, que não sujo. 

Liberto-me já deste nevoeiro sem eco de Pessoa, para não me deixar envolver por ele que, tão denso que se poderia cortar à faca como se fosse manteiga (“…o fumo amarelo que esfrega o focinho pelos vidros…”), perpassa em cada página deste livro difícil, e tenho de fazer atenção para não cair na esparrela de me pôr também a contar sonhos já que não conseguiria nunca descrevê-los com esta mestria - “Adormeci logo, e sonhei com terras e mares do sul feitos de tiras de nata distribuídas em longas tiras no prato da compota de amoras”. Fora então do nevoeiro e dos sonhos, para minha salvação, pois que para mim, que escrevo simples, não é fácil entrar na literatura de Umberto Eco, e eu já o devia ter adivinhado porque o “recado” já me tinha sido dado, e por duas vezes. Quando foi publicado “O Nome da Rosa” comprei-o imediatamente e comecei a lê-lo num avião entre Sófia e Viena, tendo-o esquecido ao desembarcar. Novamente o adquiri, mas como estava a ler outra coisa emprestei-o a um cidadão búlgaro – alguns falavam português por via de estadias de serviço “fraterno” em Moçambique -, que tendo nas mãos coisa proibida, e como tal apetecida, saiu do meu raio de alcance, não mo tendo nunca devolvido. Assim, confesso que nunca li “O Nome da Rosa” embora tenha visto o filme, o que não é a mesma coisa e me põe ao nível daquele que nunca tendo lido a Bíblia, dizia não valer a pena já que tinha visto o filme um ror de vezes. Quem não leu “Se isto é um Homem”, de Primo Levi, pode ter visto todos os filmes, alguns extraordinários e estou a lembrar-me de “A Vida é Bela”,  que se fizeram sobre a Shoa, mas não tem a noção exacta até  onde o horror conseguiu chegar.

Não é fácil, como afirmei acima, entrar na literatura de um escritor difícil que, neste livro, revolve sótãos e baús das suas recordações perdidas na ânsia de compor um passado – “as lúgubres e duráveis recordações, este raio de morte que deixamos ao viver” - tornado ainda menos decifrável por se referir a geografias, cronologias, livros, jornais, discos, factos, ocorrências e episódios que só por vivência se podem conhecer, e que, mesmo a quem aí viveu por mais de uma década, passam por filtro de malhas demasiado largas, não retendo senão uma pequena parte, embora seja curioso, e para mim muito gratificante, que coisas desconhecidas deixem de o ser por se casarem com coisas conhecidas que nelas encaixam. Com isto não estou a dizer para não lerem o livro, antes pelo contrário. Já aconteceu a todos ouvirem hoje falar de uma pessoa, uma coisa ou um assunto, pela primeira vez, e logo no outro dia voltarem a ler ou ouvir algo sobre o mesmo tema, e a mim, que comecei a ler este livro dois dias após a morte de Oliver Sacks - outro velho de 82 anos como Khaled al-Assad, guardião de Palmira (ver crónica de 9/9) -, deparo, logo na página 15, com o protagonista a falar de um homem que confundia a mulher com um chapéu, e a fila de processionárias, animalzinho que desconhecia até nos fazer passar dois meses de complicações cutâneas só porque o vento nos soprou os seus pelos malignos no pescoço; depois foi a canção e o filme “Bellezze in Bicicletta”, com SilvanaPampanini, dita Nini Pampam, que faz 90 anos amanhã e conheci em 1994, já entradota nos anos, quando foi madrinha de “Lisboa, Capital da Cultura Europeia” na cerimónia da sua apresentação em Roma, e o Rei Umberto II, o Rei de Maio, que a imprensa fascista chamava de Estrelaça, o Herdeiro, perenemente em fuga que acabou em Cascais, onde me lembro bem de o ver na praia e de o meu Pai nos advertir: - Vá meninos, vão jogar à bola lá mais para longe porque está aqui o Rei da Itália e não quero que o incomodem. Coincidências e recordações!

Aprendi também que o relógio de cuco é bávaro e não suíço, coisa que desconhecia mas agora, pensando bem, me parece natural ou não fosse essa adorável avezinha a que põe os seus ovos nos ninhos dos outros para não ter de os chocar nem de lhes dar de comer no bico, mas não é por estas singularidades que o livro vale a pena ser lido, ou melhor, tem de ser lido. O facto é que o Umberto é um brincalhão que consegue com as suas brincadeiras dar ainda maior densidade e veracidade aos seus escritos, jogando com os conceitos e os episódios que, tenho a certeza, lhe vêm à cabeça no decorrer da escrita, encontrando a forma mais dissimuladamente cómica de os encaixar no seu texto, mesmo que seja para despertar uma memória adormecida como é o caso do protagonista deste seu livro. Senão vejamos:

- A Mulher aconselha-o a dar um passeio matinal pelas ruas de Milão, pedindo-lhe para lhe trazer um ramo de rosas. E ele vai, mas aparece em casa com um frasco contendo um par de testículos de cão, em formol, restos de um laboratório científico do século XIX. Um autêntico achado por 40 mil liras! Pena não ter consigo dinheiro suficiente para levar também os “de gato, de galo e de outro bicho, com rins e tudo mais.” Comentário da Mulher, que para a próxima vez o acompanhará para não arriscar “…que voltes para casa com uns testículos de dinossauro e a ter de chamar um pedreiro para alargar a porta para poderem entrar.”, – “Será que tens a consciência de que és o único homem no mundo, o único à face da Terra desde Adão, a quem a mulher manda comprar rosas e volta para casa com um par de tomates de cão?”. “Não foi por acaso que pediste um ornitorrinco à tua irmã! (que vivia na Austrália, nota minha).

- Ou quando, na casa de campo em busca do passado, entrou na casa de banho para acabar de ler o jornal, e lhe apeteceu ir fazer cocó à vinha, a ouvir os pássaros e as cigarras. Acabada a tarefa, “tinha comigo o jornal e rasguei a página dos programas televisivos" (parece que estava em Portugal – nota minha), para se limpar;  “levantei-me e olhei para as minhas fezes. Uma bonita arquitectura em caracol, ainda a fumegar. Borromini. Devia ter o intestino em ordem, pois é sabido se só nos devemos preocupar se as fezes são demasiado moles ou até líquidas”. Aqui lembro-me da cruzada que lancei contra o Renova preto por mais que evidente perigo para a saúde pública, mas não sou o Eco, que continua a sua incursão escatológica incomodando Proust. – “O cocó não era ainda a minha infusão de tília – estava-se mesmo a ver, como podia eu ter a pretensão de levar por diante a minha recherche com o esfíncter? Para reencontrar o tempo perdido, a diarreia não serve, mas a asma sim. A asma é pneumática, é sopro (embora penoso) do espírito: é para ricos que se podem dar ao luxo de ter quartos forrados a cortiça (anúncio Amorim? – nota minha). Aos pobres, nos campos, não lhes sai da alma, sai-lhes do corpo”, e termina muito elevadamente: “Os caminhos do Senhor são infinitos… passam também pelo olho do cu.”

Tenho a certeza, sinto-o já, que este livro de Umberto Eco, que é o primeiro que leio dele (e confessando-o estou a arriscar a minha reputação), vai ser tão importante para mim como foi para ele a descoberta daquele “…livro, de capa policromática…La Misteriosa Fiamma della Regina Loana… e deparei com a história mais desenxabida que alguma vez a mente humana pôde conceber….Enfim, uma história mesmo muito parva.” Mas que, mesmo assim, acordou o seu protagonista envolto em nevoeiro.

Cansado de Eco, ou defendendo-me para que ele não tome conta de mim, cito de memória uma brincadeira que repito muitas vezes aos meus Netos (chato de merda, devem pensar, mas limitam-se a dizer, já disseste isto cem vezes), e que agora, que a repeti mentalmente não me perguntem porquê, ou sei mas não digo, começa a ter sentido:

No tempo em que os submarães  alaminos

Atacavam Moscavém e Sacavide

No tempo em que os barbarós subiam às arvóres

P’ra comer os passarós

Alguém que por ali passia assim disava:

Mas que mudagem de linguança vem a ser esta! 

Tudo me torna à lembrança, coisas velhas e coisas novas, no meio deste nevoeiro, cerração para Pessoa, sem um fio condutor que as torne consumíveis por outros fora de mim; dizia Yambo, o protagonista de Eco, para Paola, a Mulher que acabara de conhecer sem reconhecer: “Sabes que as citações são os meus únicos faróis no nevoeiro”.

Abraço.

Lisboa, 24 de Setembro de 2015
Octávio Santos 

PS: Longe de mim querer dramatizar o que se passa nas fronteiras externas da União Europeia, mas deixo aqui o meu repúdio absoluto pela utilização do arame farpado, repúdio que sinto visceralmente desde que visionei este dueto. Apraz-me, no entanto, constatar que o produto em causa não foi ultimamente por nós exportado para a Hungria, e que, para a nossa vizinha Espanha, único caso em que as nossas exportações apresentam um incremento substancial (27,56%) nos primeiros 7 meses de 2015, em relação ao período homólogo de 2014, tal aumento sirva para conter ímpetos de vacas ou porcos, se bem que me assinalaram movimentos suspeitos do lado de lá da raia, na zona de Olivença (Olivenza).