quinta-feira, 22 de outubro de 2015

O raio da manta, que nasceu para cama single, alarga-se agora para matrimonial, esperando que não chegue nunca a king size, recebendo hoje os retalhos de uma instalação com bofes frescos, que, ordenada em sonhos, jamais verá a luz do dia (nem a escuridão da noite), de uma tentativa de emprisionar o movimento de um jockey de hipocampos sobre um osso de choco num mar de vidro, e de uma foto artística pífia de fofo pato todo ele pixéis: uma confusão do caneco!


 
Tendo atraído os veneráveis leitores ao engano, ao chamar de bonsai à sua historieta da semana passada, que afinal, como um bolo com demasiado fermento que, levado ao forno, sai da forma de forma exagerada, porque ele há coisas que não se podem encolher, o cronista, cansado e indeciso no caminho a percorrer, limita-se desta vez a juntar mais uns retalhos à sua manta “artística”, como naqueles dias em que o jantar são restos mas que lhe apetece chamar-lhes hors d’ oeuvres só para armar.

Retalho 6 – André, cavaleiro (adiado) das ondas

Muito antes do relatado no Retalho 5 - Lixo da Costa do Sol, da passada crónica, já eu tinha prometido ao André, como prenda dos 16 anos, uma colagem escultórica representando-o a entubar uma onda do caraças e, tendo o hábito de cumprir o que prometo, comecei por surripiar, na casinha das ferramentas do Monte Crato, um pedaço de tábua velha e carcomida que pus de parte para servir de base. Depois, inspirado na decoração de uma rotunda da Ericeira, comprei dois copos de vidro, um azul e outro verde, que levei a um vidraceiro no Bairro Santos para que mos cortasse segundo umas marcas que lhes fiz, o qual olhou para mim com cara de grande solidariedade humana e debitou soletrando, como se temesse alguma reacção tipo “voando sobre um ninho de cucos”, que os vidros curvos não se podem cortar, pois que qualquer tentativa os partiria sem nenhum respeito pelas minhas marcas. Vi-lhe um alívio no semblante quando - já a Mulher estava com o telefone na mão, quem sabe se para chamar o 112 - pedi desculpa, balbuciei um “não sabia”, agradeci e saí calmamente do local. Chegado a casa, como que possuído pelo espírito de Michelangelo ou Rodin - o Jeff Koons e a Joana Vasconcelos ainda não estão, felizmente, disponíveis -, dei duas marteladas nos copos e com os seus cacos compus o tubo. Depois tirei uma costela, desculpem mas esta é uma outra história, depois, dizia, com pedaços de conchas, seixos, fios de cordas tudo apanhado na praia do Rio Cortiço e papel azul, erigi um cenário de ventos e espumas à volta do tubo, no interior do qual meti, em posição instável, um osso de choco (Eugenio Montale, Nobel) com um pedacinho de tronco de esteva que, à semelhança daquele que deu vida ao malogrado ET do meu Retalho 1 da crónica da há 15 dias (continuam a dar-se alvíssaras), era, juntos mais uns gravetos à laia de braços, o retrato chapado do André na sua posição de intrépido cavaleiro das ondas. Parecia tudo perfeito, mas como, tal como acontece com as luvas, também não sei fazer nada com máscara e óculos, e tendo usado Cola Super 3 (Perigoso,  cola à pele e aos olhos em poucos segundos), me dei conta que, um ano após uma operação às cataratas (para os velhos são como os cabelos brancos, sentenciou o Dr. António Sampaio) comecei a ver coisas estranhas, sombrias e inquietantes, pelo que suspendi os trabalhos sem ter revelado o porquê a ninguém, como um puto que vai ao pote da marmelada e tem medo de um ralhete ou de uma nalgada. Agora, feita a confissão, o André já pode deixar de pensar que o Avô Tato é mais um aldrabão com futuro assegurado na política, deixando-lhe aqui a certeza de que vai ter a sua “obra de arte”, metida numa caixa acrílica, nem que seja lá para os seus 20 anos, quando já tiver trocado a adrenalina das ondas do mar por aquela dos vórtices violentos do ar que sustenta as asas dos seus futuros Boeings ou Airbus.

Retalho 7 – Pato marreco branco sobre sinistra sombra negra

Nos Jardins da Fundação Calouste Gulbenkian, onde 2/3 vezes por semana passo de manhã para respirar e descontrair, há, no meio de centenas de patos que o povoam, um todo branco que eu, que deixei há muito de fixar imagens artificialmente em suportes digitais, chegando-me as lentes dos olhos e a película da mioleira, talvez para escapar ao rebanho “selfídico” que não deixa em paz nem o Papa Francisco, dei comigo a procurá-lo para o imortalizar. Estava ele naquela manhã de sol, afastado de todos os outros, a dormir na relva, peguei no telemóvel e aproximei-me pé ante pé, com o sol pelas costas, para o surpreender posto em sossego e, tanto me aproximei que o bichinho acordou e, dando com o intruso, se levantou atapatoadamente para escapar e ir à vida; aí, na iminência de o perder, cliquei à porca janota, não acreditando no que depois vi ter fixado para sempre, ou seja a inesperada foto que é a imagem desta crónica, pena é que a sua qualidade a torne imprestável por absoluta incompatibilidade com os cânones da boa fotografia. Quando mais tarde zoomei sobre ela, a coisa tornou-se tão irreal que me lembrei de um outro pato, este, sem sombra sinistra a tutelá-lo, composto por restos de armazém de azulejos de cozinha e casa de banho, que está no muro do Jardim Colonial, ao fundo da Travessa Marta Pinto - artéria povoada por bandos de andorinhas do Rafael Bordalo Pinheiro, agora da Catarina Portas -, ali a Belém, onde fica a Ermida Nossa Senhora da Conceição, hoje desconsagrada e sede do “Projecto Travessa da Ermida”. Voltando ao patinho branco e ao Jardim da Gulbenkian, lembrei-me agora de ter escrito um conto de Natal para crianças intitulado “É Natal também no jardim”, situado nesse jardim, o qual, magnificamente ilustrado por Sara Alves e Calaim, está no site da editora “Story Tellme” da minha amiga Teresa Valente - www.storytellme.pt - e pode ser adquirido, devidamente personalizado, como tudo o que de belo e original a criativa editora produz.

Sonho 2 – A Instalação

Começo por repetir o que escrevi há duas semanas no Sonho 1- A Colagem: Uma noite destas tive um sonho muito nítido e preciso, como quase nunca os sonhos são, no qual alguém me ordenava… de montar uma instalação a céu aberto, com uma tal precisão de pormenores que eu seria capaz de chefiar uma brigada de instaladores para a reproduzir fielmente, tanto mais que tenho na memória imagens anteriores que me ajudariam a uma fidelidade acrescida, como seja a vista, desde o alpendre das buganvílias do Monte Crato, do campo das vacas do Raúl, já no Pêgo Amarelo, plantado de banheiras velhas que, recolhendo a água da chuva, serviam de bebedouro aos bovinos, mas também aquela do porco aberto e pendurado na trave mestra da arribana, com os bofes a pingar, após a certeira facada do Ti Chico Crisóstomo (tenho ainda os seus gritos de misericórdia na cabeça), do barbear do suíno com uma telha depois de ter passado pelas brasas de uma fogueira ad hoc, do abrir da carcaça do pescoço ao baixo ventre, da extracção da bexiga para evitar inconvenientes contaminações sápidas, e da tripalhada desviada para o milagroso processo de troca de conteúdos naturais não consumíveis, por outros que nos fazem as delícias. Quanto aos ecrãs enganadores que nos escondem e dão a ver a realidade segundo as conveniências e pontos de vista, apenas os posso idealizar como metáfora política de hoje.

A propósito recordei-me da sexta linha do romance de Umberto Eco “A Misteriosa Chama da Rainha Loana” onde se lê “Era um sonho estranho, sem imagens, povoado de sons”, porque o meu, apesar de estranho, foi sem sons, povoado de imagens. Depois, no mesmo livro (quando uma coisa me encanta não a largo sem a desmanchar, fazia o mesmo aos relógios quando era pequeno), já na página 70 li “…eram testículos de cão, de gato, de galo e de outro bicho, com rins e tudo mais”. Será que influenciou o meu sonho?

Retalho 8 – Fressuras pingantes com/em banheiras e painéis móveis enganadores, tudo a céu aberto.

Então seria assim, se alguma vez eu tivesse à disposição o hangar da Joana Vasconcelos em Alcântara e a sua equipa de técnicos e operários instaladores, bastando juntar-lhes um magarefe ou dois, esta instalação ordenada em sonho, que nem por sonhos será executada (a não ser que alguém…):

Espalhar numa superfície plana ao ar livre um quadriculado de banheiras brancas vazias, cada uma com uma alta coluna de duche no topo da sua maior dimensão. Pendurar em cada uma dessas colunas uma fressura completa fresca de porco ou bovino (dependeria do sponsor), a qual ficaria a pingar os seus humores, cada uma para dentro da sua banheira. Levantar, fincando-a no terreno, uma rede de hastes metálicas verticais nos intervalos horizontais entre banheiras, ligar pelas suas extremidades superiores cada fila de hastes com cabos de aço estendidos firmes de uma ponta à outra e prover cada cabo com pequenos patins de roldanas corrediças que, ligados a um pequeno motor eléctrico, fariam mover horizontalmente rectângulos de plástico (ou outro material) branco que, pendurado cada um no seu patim móvel, se moveriam à altura dos bofes pendurados fazendo com que o potencial espectador, embasbacado como se estivesse no Louvre diante da Mona Lisa ou da Vitória de Samotrácia, visse e não visse a parte viva (ou morta?) da instalação, ou sejam as fressuras estáticas ali a transmitir sensações de grande densidade artística a quantos tivessem a felicidade de ser admitidos à performance pelo tempo que permitisse que a extraordinária visão não fosse anulada pelo limite de suportação das pituitárias que, não suficientemente treinadas, de arte moderna não entendem. Se fosse possível, mas não passa de um outro tipo de sonhos, isto é, daqueles que se fazem acordados, gostaria também de convidar para a vernissage a abundante Senhora do Cacilheiro de Veneza, em versão Joana Amaral Dias na “Cristina”, para uma esfregadela na fressura dentro de uma das banheiras, idealizando o “Nascimento de Vénus” de um Botticelli com guia de marcha para o Júlio de Matos e, dulcis in fundo, embrulhar tudo em papel pardo à maneira do búlgaro Christo, dando de brinde aos espectadores, como o contrapeso que era de uso impingir aos fregueses nos talhos do antigamente, o Palácio de Belém, com todos os seus cavacos e cavaquinhos lá dentro, tudo bem embrulhadinho em papel do BPN (que já pagámos).

 Abraço.
 

Lisboa, 22 de Outubro de 2015
Octávio Santos
 

PS: Ficava muito feliz se o Luís Allen se pronunciasse sobre a foto da imagem, nem que fosse com um seco “esquece, (Octávio) pato”!