quinta-feira, 5 de novembro de 2015

História de amor e de raivas, com interrogações legítimas, tocadora de marimbas (anjo ou demónio a desviá-lo?), concatenamentos pós-Rego, tiradas filosóficas de trazer por casa, golpe audaz de jovem enamorado acabado no nevoeiro do Eco dos sonhos com cabriolet a afastar-se em fade out. Helena e Páris, ou Dante e Beatriz com final feliz.


Caminhava já há uma boa meia hora com aquele passo largo e ritmado que a sua ainda jovem idade permitia. Com a cabeça carregada de raivas e interrogações, e uma única certeza: hoje iria tirá-la, ou roubá-la, que importância tinha, daquele sorvedouro de areias movediças em que se debatia na ânsia de ter uma vida, se é que àquilo se podia chamar vida. Só ele sabia quanto lhe custou subir para cima daquela pilha de livros, para chegar à aldraba da porta do seu coração. Ao descer a Rua da Beneficência não deixava de remoer aquela frase do Papa Francisco “enquanto não houver comida para todos não haverá paz para ninguém”, como se fosse um velho de ideias fixas, ou talvez lhe agradasse sentir-se velho para não achar ridículo o amor que sentia por aquela que de anos já o tinha ultrapassado há muito.

Tinha visto na televisão, na véspera, o sorriso escarninho do VPM e a jaqueta florida da Senhora Ministra, dois que de alimentação entendem, e de tanto repetirem o tema dele sobrevivem, ele nos mercados, ela nos portos de pesca, na tomada de posse, em ambiente de velório, de um moribundo à espera de um milagre de Nossa Senhora do Rato. Que poderá vir a acontecer neste país de Fátima e de Jesus. A raiva que lhe apressava o passo era a de pensar que, por um terço de quanto o prisioneiro do 44, agora livre no 33, terá de pagar por fuga ao fisco (dizem, que nestas coisas sou muito cuidadoso), tínhamos perdido 21,5 milhões de likes em Milão, os quais em vez de irem para o pastel de nata ou para o Vinho do Porto, se dividiram entre a moamba, o ceviche, o vatapá, escorpiões fritos e minhocas gratinadas, o perú e o hambúrguer, a paella, o goulash, a raclette e o smörgasbord, para não alargar a lista às iguarias dos 140 países que lá estiveram, incluindo as nepalesas, que até essas não faltaram apesar do terremoto. As interrogações que o faziam abrandar eram também elas filhas do mesmo tema: Porque é que no País das Maravilhas ninguém ouviu falar da Carta de Milão, documento de empenho e esperança e herança do tema da EXPO 2015: “Alimentar o Planeta/Energia para a Vida”? Não estivemos lá porque havia muito mais para além do negócio? Quanto valem 21,5 milhões de likes? Será que o nosso lixo poderia ser luxo para outros?
 
E, ora abrandando, ora estugando o passo, foi-se chegando ao monstro sobrelevado que tomou o lugar da passagem de nível do Rego, subiu os degraus de ferro de dois em dois e, ao chegar ao lado de cá, deu de caras com uma jovem sentada no chão a tocar marimbas. Parou a olhar e a ouvir, eram lindas, ela e a música, não se atrevendo sequer a pensar deixar uma moeda no chapéu de coco andino que, por terra, estava ainda vazio. Como vazia ficou também a sua cabeça que, esquecendo raivas e interrogações, se deixou levar pela beleza que, no dizer de Dostoiévsky, um dia salvará o mundo, sentou-se ao lado da jovem e, esquecendo momentaneamente o motivo que o fizera passar por ali àquela hora, apeteceu-lhe ficar naquela terra de ninguém, entre o Rego e o Bairro Santos, a aprender a tocar marimbas com ela que, parando de o fazer, levantou os olhos para ele e, com uma doçura infinita, lhe disse as palavras que tiveram nele o efeito de uma mola que o fez erguer e correr dali para fora: - Seria bom, mas não te esqueças ao que vais.

Recobrados os sentidos, e o sentido, afastou-se com aquela música nos ouvidos e lá foi palmilhando o caminho que o separava do seu objectivo e, afastadas de vez as ideias negativas, deu-lhe para encadear episódios e conceitos retirados “daquela pilha de livros” (concatena, Filho, concatena!), começando por incomodar Homero que, chocando-nos a nós modernos, põe Menelau, não só a felicitar Helena que o deixa, a ele e aos Filhos, para seguir o irresistível Páris, episódio que desencadeou a Guerra de Tróia, mas a exaltar a sua decisão, tudo isto numa absoluta ausência de revolta moral. Saltando de Homero (politeísta) para Dante (um só Deus), que situa no Inferno (Canto V, 2º Círculo) não apenas Dido e Eneias, Paolo e Francesca e Tristão e Isolda, mas também Helena e Páris, aqueles mesmos louvados por Homero pela boca de Menelau, todos “os que aos vícios da carne se entregavam, razão aos apetites submetendo”. E de Dante a Kant, verdadeiro articulador do radicalismo de Descartes, que afirmou que “se somos sujeitos auto-suficientes, então nenhuma lei,  senão aquela que damos a nós mesmos, pode determinar como devemos agir”, com cada sujeito a substituir Deus como ordenador do mundo, tudo isto corroborado por Sartre, já que a principal característica do existencialismo é a de atribuir ao Homem “ a total responsabilidade da sua existência”,  desmentindo assim Homero (outra vez ele) que é absolutamente convicto que quando Helena fugiu com Páris, o fez levada por Afrodite.  Daqui é fácil saltar para Melville que, um século depois de Kant e uma geração antes de Nietzsche, teve noção da crescente ameaça do niilismo, pondo na boca de Ismael, o narrador da fatídica viagem do Pequod (Escrevi um livro malévolo, mas sinto-me imaculado como um cordeiro, escreveu ao seu amigo Hawthorn), que “ O tecelão Deus tece; está ensurdecido pelo barulho do seu trabalho e não consegue ouvir nenhuma voz mortal; e nós, que contemplamos o tear, estamos ensurdecidos pelo seu besourar; e é somente quando nos afastamos que ouvimos os milhares de vozes que falam através dele (Moby Dick, pg. 481).” Teve, no entanto, a percepção que a recuperação dos deuses de Homero seria uma maneira de o superar: “ Se, no futuro, alguma nação altamente culta e poética voltar aos primórdios dos alegres e primaveris deuses da antiguidade, e os entronizar novamente no actual céu egoísta; na actual colina deserta; podeis ter a certeza que o grande cachalote seria elevado e reinaria no grandioso trono de Júpiter (Moby Dick, pg. 497).”
 
Chegado ao seu destino, bateu à porta e, na espera, começou a pensar nela voltando a Dante, que inspirou os chamados trovadores franceses a desenvolver uma nova maneira de entender o amor; não o desejo erótico grego nem a ágape cristã, mas um sentimento novo, o amor cortês ou romântico, que implicava “devoção total a uma pessoa que se tornava o centro da nossa vida”. Como Beatriz e foi para o génio florentino e Ofélia para todos os Pessoas que teve de aturar. Ou Helena e Páris? A porta abriu-se finalmente, ela encarou-o sem temor ou sentimentos de culpa, como se estivesse à sua espera, pegou-lhe na mão e levou-o até à sala de jantar, onde à volta da mesa posta estavam sentados o Marido e os Filhos, estes mais ou menos da sua idade. Espera, disse-lhe, e pegando na sopeira serviu cada prato, incluindo o seu próprio, sentou-se, formulou um firme “bom apetite” e todos comeram em silêncio perante aquele “convidado de pedra” que não podia ser outro que um emissário de poderes mais altos. Levantou-se então da mesa com um “volto já”, saiu a porta da sala e regressou com um casaco vestido e uma bolsa a tiracolo. Vai correr tudo bem, disse, mas não sei se, ou quando, voltarei; pegou-lhe novamente na mão e saíram de casa. No ascensor (sempre os ascensores), sem uma palavra, deu-lhe o beijo que, vivido dez andares, não esquecerá nunca mais.

Já na rua, entraram no carro que tinha ficado ali estacionado à espera que ela descesse, como prometido, e ele acordou com o barulho do fechar da porta, ficando meio estremunhado a olhar fixamente para o lugar vazio ao seu lado, a tentar perceber o que se tinha passado. Num gesto automático ligou o rádio que passava uma versão de “El Condor Pasa”, tudo marimbas e flauta de Pan, olhou para cima e pareceu-lhe  ver a sua sombra por detrás do nevoeiro (Eco, Eco, Eco, Eco…) das cortinas da janela da sala, a acenar-lhe com a mão um longo, lento, simples mas significativo Adeus.


Abraço.
 

Lisboa, 5 de Novembro de 2015
Octávio Santos