quinta-feira, 19 de novembro de 2015

De como o cronista não confessa que o seu médico de clínica geral é muçulmano por medo que lhe tratem da saúde, constata que os banqueiros são bons no fado, dá receita de outrem em tempo de Master Chef, discorre sobre bandeiras, hinos e slogans, renega músicas satânicas e seus autores, perdoa fraquezas presidenciais passadas e futuras, acabando por fazer perguntas estranhas e estúpidas, não fosse ele o totó que todos reconhecem


O mais fácil teria sido escrever com letras gordas “FECHADO POR LUTO GRAVE” e remeter os leitores comodamente para o meu texto “O Silêncio, a Reflexão e a Dúvida” (a), que publiquei nas páginas 29 e seguintes no meu livrinho “Hieróglifos Órfãos de Roseta” em 2011, embora o tivesse escrito em 2004, velho portanto de 11/12 anos mas ainda legível à luz dos acontecimentos da semana passada.
Estava eu a assistir, com um grupo de bons amigos, ao concerto dos 40 anos da ADFA - Associação dos Deficientes das Forças Armadas -, quando recebi um SMS do meu Filho a dizer-nos do atentado em Paris (10 mortos, dizia) e que já tinha falado com a Irmã, que estava bem e em casa. O concerto foi muito bom e, embora o único nome de mim conhecido fosse o de Manuel Freire, passou gente de alto nível artístico pelo palco da Aula Magna, incluído o Fanan do “Conta-me como foi” e o Presidente do Montepio que é exímio a cantar o fado, tendo eu ficado à espera que o Fernando Ulrich subisse ao palco para interpretar a rábula “Aguenta-te tó Zé”, mas não estava no programa. Apesar da inquietação interior, relembrei a posteriori que o Manuel Freire, entre uma canção a que não dei atenção e a incontornável “Pedra Filosofal”, se referiu a José Niza e a Reinaldo Ferreira (Filho do célebre Repórter X), tendo, do primeiro lido o poema “Uma bala perdida”, e do segundo também um poema sobre a guerra colonial que, por mais voltas que desse à net não consegui encontrar, mas como Deus escreve sempre direito por linhas tortas (hoje muito tortas mesmo), caí sobre isto que não posso deixar de registar:

Receita para fazer um herói
Tome-se um homem,
Feito de nada, como nós,
E em tamanho natural.
Embeba-se-lhe a carne,
Lentamente,
Duma certeza aguda, irracional,
Intensa como o ódio ou como a fome.
Depois, perto do fim,
Agite-se um pendão
E toque-se um clarim.

Serve-se morto.

          Reinaldo Ferreira

Devo uma explicação pela escrita que pus sobre a bandeira da imagem de hoje. Quando do episódio do Charlie Hebdo, o “Je suis Charlie” tornou-se moda, viral, como se diz hoje, usar esta expressão para mostrar de que lado se estava. Eu utilizei-a nas minhas versões “Je suis Charlie…mais pas con!!!” e, mais tarde “Je continue à être Charlie…mais je ne suis toujours pas con!!!”, escolham vocês se por cobardia ou por dúvidas que me assaltaram. Nessa altura todos, e digo todos, cometemos erros pelo simples facto de não estarmos calados. Lembro-me do Papa Francisco a dizer aos jornalistas num avião que o transportava não sei de onde ou para onde, que se alguém ofendesse a sua Mãe ele lhe daria um murro na cara, e a muitos repetir a frase “ils l’on bien cherché”, tudo constelado por “se” e “mas”. O que acontece é que o massacre do Charlie Hebdo foi perpetrado contra “infiéis blasfemos”, e o ataque contra o Hiper Cacher, contra judeus, não visando portanto todos nós, e daí o Benfica-Sporting do “Je suis Charlie” na lapela ou da sua ausência. Como isto agora foi outra coisa, ou seja, um ataque animal vingativo e raivoso contra a maneira ocidental de viver, contra todos nós, cristãos e judeus no mesmo saco, embora não desdenhe o “Je suis Paris”, sinto poder falar em nome de todos os visados e gritar alto “NOUS SOMMES PARIS!”. E quando digo em nome de todos, refiro-me sobretudo àqueles que fazem coisas que eu não faria, e aqui lá vem a raposa do Senhor de La Fontaine, estão verdes não prestam, porque os meus gostos são do século passado ou porque a idade já não mo permite - só dá bons conselhos quem já não pode dar maus exemplos, escreveu e cantou Fabrizio De André -. Tento explicar: se me perguntarem se eu iria ao Bataclan ouvir uma banda que se intitula “Águias do Metal Morto”, que interpretava a composição “Beija o Diabo”  quando o comando assassino fez confundir o tatá…tatá…tá das balas das AK 47 com o solo de bateria, eu diria que não, mas, e agora é Voltaire, darei tudo para que quem gosta o possa fazer em liberdade e, sobretudo, o possa continuar a fazer sem o terror de estar a cometer um pecado, e ter de pagar por ele ainda do lado de cá da vida. Ao ouvir o Presidente Hollande a ameaçar justamente as hordas do ISIS com a potência da “force de frappe” gaulesa, lembrei-me dele a sair do Eliseu à socapa, de Lambretta e capacete, para um encontro amoroso clandestino e, como até isso faz parte do nosso modo de vida, daria tudo para que ele o possa continuar a fazer. Muito melhor que, por temor de um Deus, segundo eles, não conhecedor do perdão, estar à espera da morte, em seu nome, para ir para o céu brincar aos médicos com mil virgens por cabeça, como se isso fosse mercadoria fácil de encontrar, e muito menos se é para ir para a cama com aqueles javardos assassinos.

Como já disse quase tudo o que queria, da forma habitualmente confusa mas disse, e já não consigo arrumar outras que gostaria de dizer, da maneira escorreita como fazem aqueles que escrevem bem nos jornais ou opinam nas televisões, como ontem dois generais lusitanos que, diante das câmaras fizeram aquilo que José Niza dizia que eles sabiam fazer, isto é, generalizar, vou então imitar as altas patentes e espalhar umas minas no terreno da minha escrita, esperando que façam barulho sem ferir.

- Foi comovente ouvir a multidão à saída do Stade de France, ainda sem plena consciência da enormidade do que estava a acontecer, a cantar a Marselhesa numa demonstração de união perante uma ameaça à Pátria, palavra tão desvalorizada nos tempos que correm. Já a letra do que cantavam, palavras repetidas que já não fazem sentido e talvez não sejam as melhores para unir o que quer que seja: “Aux armes citoyens, qu’un sang impure abreuve nos sillons” (Às armas cidadãos, que a nossa terra - o sulco do arado - se sacie de um sangue impuro). “Contra os canhões, marchar, marchar!” Os canhões agora são as bufas da Senhora Merkel e as palavras do nosso hino são do tempo do Mapa Cor de Rosa e dirigem-se contra o nosso mais antigo aliado. Se tudo isto faz sentido…

- Admirável a Senhora Margarida Sousa, há 26 anos porteira de um prédio da Avenue Voltaire, paredes meias com o Bataclan, que acolheu na sua “Gaiola Dourada” 40 jovens aterrorizados, entre os quais uma rapariga com duas balas nas costas, que deitou no seu sofá enquanto subia a pedir ajuda a um médico que vive num andar superior. Não consta que tivesse pedido os passaportes à entrada e, como não era um filme, não recebeu qualquer cachet.

- Igualmente admirável aquele jovem pianista que, carregando o seu piano para o meio das flores e das velas a arder, tocou “Imagine” de John Lennon, um sonhador que também morreu inutilmente na rua às mãos de um louco e fanático assassino.

- E agora quem combate o ISIS, para além dos americanos, como lhes compete, com os seus drones guiados pelos algoritmos do Skynet, e dos franceses, cheios de razão, pese embora o reconhecimento de Estado que Hollande lhes está a oferecer com as suas bombas? Os curdos, peshmergas ou não, que são bombardeados pelos turcos? Os hezbollah, para muitos também eles terroristas, que levaram em cima com o atentado de Beirute, que não é Paris? Os russos, que não são nossos amigos, mas que tiveram mais mortos no avião sobre o Sinai que aqueles da Cidade Luz? O Irão, que só há pouco deixou de ser o Diabo em termos de país? Os turcos, nossos amigos da NATO, que poderão começar a lançar sobre o ISIS as bombas que lhes sobrarem dos curdos?

- Qual, para o Ocidente, ou seja, para nós, a ordem hierárquica do terror? Os ataques em Paris neste ano de 2015, confundindo os do Charlie Hebdo e do Hyper Cacher, e aquele evitado do TGV, com os do Bataclan, Stade de France, La Belle Équipe, Le Petit Cambodge, Le Carrillon, Casa Nostra e La Bonne Bière? Aqueles que já há anos atingem o Iraque, o Afeganistão, a Síria e a Nigéria, provocando centenas e centenas de vítimas inocentes? Os da Tunísia? Os últimos acontecidos em Ankara, em Beirute ou no Sinai? Os das igrejas católicas na Nigéria, na Síria e no Iraque, já quase esquecidos na nossa memória, mas que levaram o Bispo católico de Erbil a solicitar uma intervenção armada? Os das mesquitas xiitas pelas mãos dos sunitas?

- Quem perde e quem ganha agora no jogo dos interesses internacionais, e quem sobe e quem desce na classificação dos bons e dos maus? Perdem seguramente a Palestina, a Ucrânia, os refugiados e os partidos moderados europeus, e ganham a Hungria e a Polónia, Israel, Bashar al-Assad, a Rússia e a Frente Nacional da Senhora Le Pen e o PEGIDA, aqui em representação de todos os partidos extremistas europeus de direita e de esquerda, que viu agora cair este maná do céu dos seus inimigos. E também os “Eagle of the Death Metal” que irão ter casas cheias daqui em diante. Todos a correr à FNAC porque vêm brevemente a Portugal.

- Nós por cá ficamos todos bem e, sem qualquer ironia, digo que somos um país feliz, e a prova foram os 30 manifestantes do PNR diante da mesquita de Lisboa, embora eu tenha a certeza que muitos mais gostariam de lá estar, mas que  faltando-lhes a coragem, até para votar PRN, se limitam a inundar as redes sociais com vídeos tipo “olhó papão” contra os milhares de desgraçados que fogem apavorados dos seus países  pelo mesmo exacto motivo que vimos os jovens a fugir do Bataclan.

Vou acabar com uma pergunta sobre o poder do ISIS, duas aos serviços de inteligência franceses, mais uma sobre desculpas ou justificações, e um pedido utópico interno que salvaria in extremis a imagem de um homem. Vamos lá!

- Poderia o ISIS ser o que é sem que alguém comprasse o “seu” ouro negro e o branqueasse para o lançar no mercado internacional, e sem o escoamento das obras de arte roubadas (as destruídas em frente das câmaras são manobras de diversão) para o subterrâneo mercado de arte, também esse internacional, que fornece os multimilionários de todo o mundo, que irão mostrar orgulhosos pedaços de Palmira nas suas recepções das Mil e Uma Noites?

2ª A - É verdade que, não há muito tempo, se apresentou à entrada do Bataclan um grupo com a cara tapada por lenços palestinos, a kuffiya, pedindo para entrar, e que, tendo sido impedido pela segurança, respondeu se isso se devia ao facto do Bataclan ser propriedade de judeus, afirmando que voltariam em breve e que acabariam por entrar? Onde estavam os serviços?

2ª B - É verdade que um dos terroristas mortos em Paris, com largo cadastro, entrou na véspera do massacre pela fronteira belga, ao volante do seu carro, tendo sido interrogado e revistado pela polícia francesa, que acabou por o deixar seguir o seu caminho? Onde estavam os serviços?

- Ninguém tem dúvida que há milhares de muçulmanos, e outros, que nos arredores de Paris e Bruxelas têm precárias condições de vida. Se essa falta de condições serve de desculpa e justificação para acções hediondamente criminosas, porque é que um roubo num supermercado feito por uma Mãe com Filhos com fome, raramente é justificado e a fome dos Filhos não serve de desculpa?

- Imploro o nosso PR, que não estou a imaginar a sair de Vespa pelo portão da Calçada da Ajuda, nem que fosse para uma bisca lambida com o Oliveira e Costa, a convocar o Pedro Passos Coelho, o António Costa, a Catarina Martins, o Paulo Portas, o Jerónimo de Sousa, a Heloísa Apolónia, o André Silva, e mesmo o Rui Tavares, o Marinho e Pinto e a Joana Amaral Dias, para se sentar com eles à mesa, de onde só se levantariam para uma declaração comum e unitária sobre o que se passou esta sexta-feira 13 em Paris. I have a dream…, mas se fosse possível até lhe perdoaria o Manuel Dias Loureiro e o Duarte Lima e, talvez, o bon point ao BES na véspera do desastre. Irrevogavelmente imperdoável seria se durante a sua viagem à Madeira, para jogar às escondidas ou à cabra cega, ou ainda para um Rally Paper, como disseram alguns comentadores televisivos, convidasse o Alberto João Jardim para formar governo.

Abraço.

Lisboa, 19 de Novembro de 2015
Octávio Santos 

(a)  Desculpem a repetição, mas só depois vi que já tinha linkado este texto na minha crónica de 15/1/2015, após o episódio do Charlie Hebdo.
PS: Dois títulos de capas nacionais:
- Do “GO Portugal” : Nobody f*cks Jesus
- Do Correio da Manhã: Homem bomba filho de portuguesa (identificado por um dedo apanhado no chão, precisa a notícia).

PS (Última hora): Eduardo Stock da Cunha declarou à saída do Palácio de Belém, onde foi aconselhar o PR, em seu nome (Novo Banco) ou no do Ricardo Salgado (BES), que Portugal precisa de afirmar lá fora que honra todos os seus compromissos. E cá dentro?