quinta-feira, 10 de dezembro de 2015

De como o cronista se torna tradutor por nada ter a dizer de seu, se põe a traduzir notícias sobre vítimas de atentados, desastres ecológicos anunciados, o papão da não inflacção, descida de Francisco aos “infernos”, aquecer o planeta ou voltar ao arado, os véus e os Queen, turcos na corda bamba da UE ou vice-versa, FMI com olhos em bico e poesia de adeus ao cesto.

 
Hoje um jornal velho de dez dias é como a notícia que chegava a cavalo anunciando uma batalha perdida há dois meses; já não serve para nada. Mas a falta de assunto é tão grande, ou melhor, a informação é tanta e tão acavalada uma na outra que, não tendo tempo para a ler, ouvir ou visualizar e muito menos para a digerir, baixo as antenas e desvalorizo os seus conteúdos que me chegam enevoados (Eco, Sebastião, Eco) e, última coisa que me devia acontecer, não tenho qualquer ímpeto para tentar dar-lhes um significado, quanto mais para lhes intuir as consequências. É como se já não fosse para mim. Então, abro jornais com a data de 1 de Dezembro (como desenrolar papiros, à velocidade de hoje), que já foi da independência e agora é apenas um feriado desrespeitado, talvez porque a independência já não tenha qualquer significado, e, para me certificar que faço ainda parte do número dos vivos, começo a traduzir excertos de notícias sem importância daqueles poucos que sei ler, já que nunca fui prático em inglês para além do “the pencil of my cousin is on the table”, já percebi o que é que constitui uma maioria beneditina (era preciso tanto?), e não me interessa se podemos ou não podemos ser cidadãos ou se os Silvas de El Rey (Marcelo dixit) continuam a mamar na pingue vaca coroada, e eles, os excertos, aí vão devidamente identificados e traduzidos à porca janota:

Manuel Dias, francês por adopção
Sempre que conduzia champenois (habitantes da região Champanhe/Ardenas, capital Reims) ao Stade de France, Manuel cumpria o seu ritual. Após estacionar, comia uma bucha atrás do volante e bebia um café sentado numa esplanada. Depois voltava ao carro para ouvir o desafio no auto-rádio, como apaixonado de futebol que era. Na sexta-feira (13/11) tinham sido os clientes a pedirem para serem transportados por Manuel Dias, porque ele era profundamente respeitador do seu trabalho, quase transparente, no sentido em que nem ele próprio se dava conta das suas qualidades profissionais. Antes de transportar pessoas trabalhara numa siderurgia, numa filial da Saint-Gobain, tendo depois tentado a restauração e o pronto-a-vestir. Manuel Colaço Dias nascera há 63 anos em Portugal, na cidade medieval de Mértola, que domina do seu promontório as margens do Guadiana e tem como paisagem as colinas áridas do Baixo Alentejo. Tinha chegado a França, com os seus Pais, no fim dos anos 60, tendo-se instalado em Reims. Gostava dos prazeres simples, dos momentos passados em Família, nos quais desempenhava o seu papel de patriarca, com palavras de conforto portadoras de esperança, disse a Filha Sofia. Manuel Dias, pai de uma família muito unida, tinha uma Mulher, uma Filha de 33 anos e um Filho de 30.
(Le Monde: pág. 15, in Memorial do 13 de novembro. Le Monde publica cada dia retratos das vítimas dos atentados, a fim de conservar, com a ajuda dos familiares, a memória das vidas ceifadas).

Brasil. A onda tóxica no Atlântico
Alguém já a baptizou como “Fukushima do Brasil” ou seja, o mais grave desastre ambiental que feriu o país latino-americano. A ruptura dos dois diques que continham as escórias das minas da Samarco, um colosso australiano, provocou uma gigantesca onda de lama tóxica - mais de 60 milhões de metros cúbicos – no Rio Doce, a qual, após 17 dias, atingiu as águas do Atlântico. A lama, proveniente do Estado de Minas Gerais, poluiu dezenas de quilómetros das pescosas costas turísticas do Estado do Espírito Santo, paraíso de surfistas, e ameaça agora alastrar bem para além das fronteiras do país. O “tsunami tóxico” já provocou danos incalculáveis ao ecossistema e à inteira bacia do Rio Doce, considerado biologicamente morto. A ONU confirmou “altos níveis de metais pesados tóxicos e outras substâncias químicas igualmente tóxicas”.
(Corrière della Sera: pág. 3, in Primeiro plano, Conferência de Paris).

Porque é que o BCE batalha para relançar a inflacção
“Faremos tudo o que devemos fazer para relançar a inflacção, logo que seja possível”, declarou em 20/11 o Presidente do BCE, Mario Draghi. “A questão não é a de saber se o BCE vai usar novas armas, mas quais”, resume Jonhatan Loyne no “Capital Economics”. “Na zona Euro, a extrema fraqueza da inflacção explica-se também pela insuficiente procura”, lembra Thibault Mercier do BPN Paribas. “As trocas com os países low cost contribuíram a reduzir os preços dos produtos importados”, pode ler-se num estudo dos economistas Gregory Claeys e Guntram Wolff, do think thank Bruegel, que explicam também que “a integração de milhões de trabalhadores no mercado de trabalho mundial, diminui o poder de negociação dos assalariados nas economias nacionais”. Temos que ficar inquietos? A questão divide os economistas. É certo que a baixa inflacção favorece, a curto prazo, o poder de compra dos consumidores, mas, uma vez instalada, passa a fazer parte das previsões das empresas, que cessam de aumentar os salários, o que pesa na procura e, por isso, nos seus lucros e intenções de investimento, com o risco de provocar uma espiral deflacionista e desencadear um círculo vicioso, no qual os consumidores começam a prever uma baixa de preços, adiando as suas compras e bloqueando assim a inteira economia. Os números: 60 mil milhões de euros é o montante mensal das compras de dívida pública e privada do BCE. 0,1% foi a taxa de inflacção na zona Euro em Outubro, longe do alvo de 2% preconizado por Francoforte. -0,2% é a taxa de juro para depósitos no BCE. Sendo negativa é o equivalente a uma “penalização” com que a instituição onera os bancos em troca da liquidez que eles deixam nos seus cofres. Temos que ficar inquietos?
(Le Monde: pág. 5 do caderno “Economia e empresas”).


A coragem política da viagem africana do Papa Francisco
O Pontífice foi a um continente instável para falar de paz, desafiando o perigo de atentados, reacção forte após aqueles de Paris. Muitos eram contrários à viagem do Papa à África Central e à sua arriscada presença em Bangui. Tinham razão porque foi um verdadeiro risco para a sua pessoa. Os militares franceses avisaram sobre a impossibilidade de controlar as diversas facções e as armas nas mãos de toda a gente. Francisco quis, apesar de tudo, ir a Bangui, respeitando o programa, incluindo a visita à zona muçulmana, a qual suscitou as maiores perplexidades. Teve uma extraordinária coragem pessoal, reveladora do profundo sentido do seu ministério, mostrando a audácia daqueles que vivem aquilo em que acreditam. Não teve medo de ir à mesquita central de Koudougou proclamar que “entre cristãos e muçulmanos somos irmãos”. Francisco desceu ao epicentro da instabilidade para falar de paz, antecipando a abertura da Porta Santa e o Jubileu da Misericórdia num “inferno” de violência, raptos, ódio, intriga política, corrupção e miséria. Foi também uma lição para nós europeus, apavorados com o futuro, especialmente após os atentados de Paris. De uma entrevista durante o voo de retorno: - Voltará à África, Santidade? – “Não sei, estou velho, as viagem são duras… Memorável foi a multidão: reflecti sobre a capacidade de fazer festa com o estômago vazio. A África é vítima, é mártir, foi sempre explorada por outras potências”.
(Corrière della Sera: pág. 23, in Visita pastoral).

O dinheiro e o clima
Alerta de mau tempo sobre o clima. A Terra e os espíritos aquecem-se à volta da grande questão deste começo de século. Questão que diz respeito, como sempre, à sociedade e à economia. Pois que a revolução industrial e capitalista, iniciada há mais de 200 anos, é responsável pelo aumento de gazes de efeito estufa na atmosfera, mudemos a sociedade. A economia de mercado não pode ser o problema e a sua solução. É uma quimera. O Primeiro Ministro indiano, Narendra Modi, não se enganou lembrando esta segunda-feira, 30 de novembro, no Finantial Times, por ocasião da abertura da Conferência de Paris sobre o clima (COP21), a posição do seu imenso país. Fora de questão, para ele, que a porta do desenvolvimento económico dos países emergentes lhes seja fechada por causa da luta contra o aquecimento. Para a Índia, como para os seus vizinhos chineses, indonésios ou africanos, o acesso à economia de mercado não é negociável. Sendo assim, que fazer?
(Le Monde : pág. 1 do caderno “Economia e empresa” in Perdas e lucros/COP 21).

As muçulmanas: “Quem nos trava são os homens, não a religião”
“Os homens devem dirigir as mulheres por causa da preferência que Allah concede a uns em relação às outras…”, recita o Corão na Sura IV (Na-Nisa’, As Mulheres), verseto 34. Naturalmente, o problema reside na contextualização histórica. Em Itália, o uso que os machos fazem do conceito é muitas vezes criminoso. O homicídio da paquistanesa Hina Salem, massacrada e enterrada em 2006 pelo Pai com a ajuda de alguns parentes machos, e aquela da marroquina Saana Dafani, esfaqueada pelo Pai em 2009, acenderam um farol sobre a condição das jovens acusadas de comportamentos demasiado ocidentais. “Se estás mais  interessada num cinto explosivo que num vestido de noiva branco,  ou nas fantasias das princesas da Disney, vem até nós”, prometem os propagandistas de al-Zawra, a escola jihadista que, de Raqqa, oferece cursos de cozinha e lei islâmica, de economia doméstica, armas e meios de comunicação a centenas de jovens como Merieme Rehally, Irmã Rim no mundo do Twitter,  estudante que deixou Pádua para se arrolar na logística sob a bandeira negra de Al Baghdadi. “Alguma experimente pôr um lenço na cabeça e procurar trabalho”, escrevia provocatoriamente a italo-jordana-palestinesa Sumaya Abdel Kader: “Bom, a probabilidade de sucesso é igual a zero!”. Era em 2008 e, pioneira entre as de segunda geração, Sumaya tinha criado a personagem de Sulinda, 30 anos, que, no romance autobiográfico “Uso o Véu e adoro os Queen” satirizava o hijab, véu que emoldura a face, reivindicando a liberdade de o endossar. “ Dão-nos uma máquina de lavar roupa, aí na Síria? Achas que posso levar o gato? “. Este o léxico familiar, via Skype, de mamma Assunta para a sua filha Maria Giulia, agora Irmã Fátima no Califado, (a arrumar o carro com o Marido para irem ter com ela, quando foram detidos) que nos diz muito acerca da grande confusão mental que induziu, e continua a induzir, um sem número de mulheres europeias e, agora, cada vez mais italianas, a engrossar as hordas do ISIS.
(Corrière della Sera: págs. 1, 8 e 9, in “O Islão em Itália”).

A Turquia joga com a fraqueza europeia
Face a uma Europa desunida e volúvel, o Presidente turco, Recep Tayyip Erdogan, é em posição de força. E gosta disso. Bruxelas corteja Ankara, actor chave de uma dupla crise que na realidade é só uma: a do fluxo migratório cujo destino é a UE, e o caos do Médio Oriente. Mas na sua relação complicada com a Turquia, a Europa é menos vítima de Erdogan que da sua própria incúria. É um triste espectáculo. Três horas de negociações em Bruxelas, domingo 29 de Novembro, entre os europeus e a Turquia, para tentar dominar o fluxo migratório mais forte que o Velho Continente conheceu depois de 1945, resultaram num acordo mínimo e sem calendário. A Turquia de Erdogan é um parceiro difícil e imprevisível. Tem uma atitude ambígua contra a organização do Estado Islâmico, do qual é também ela vítima. A deriva autocrática do seu Presidente e o seu discurso muitas vezes depreciativo dirigido ao Ocidente, afastam-na, cada dia um pouco mais da UE.. Tudo isto é verdade. Mas o que as crises nascidas da tempestade médio-oriental descobrem em primeiro lugar, são as fraquezas de uma UE em plena regressão: ausência de um mínimo de política externa e de defesa comuns; ausência de uma política de imigração; inexistência, ou muito poucos reflexos,  de solidariedade entre os seus membros. Tudo isto é registado em Washington, em Moscovo e em Pequim. Mas também em Ankara.
(Le Monde: pág. 24, in Editorial).

China, o Yuan será convertível e reduzirá o peso do Euro
A China dá mais um passo para a sua integração no sistema financeiro mundial com o ingresso do renmimbi, a “divisa do povo”, no clube fechado das moedas de reserva globais. Ontem o FMI deu luz verde à introdução do yuan, o outro nome da divisa chinesa, no cesto das divisas que compõem os Direitos Especiais de Saque (SDR), isto é, a unidade de conta do FMI que até agora compreendia o US dólar, o Euro, o Yen e a Libra Esterlina. O renmimbi entrará no cesto, como quinta divisa, em 1 de Outubro de 2016, quando passará a ser livremente utilizável, e pesará 10,92%. A new entry  redimensionará o peso das outras divisas: o euro descerá de 37,4% para 30,9%, o yen de 9,4% para 8,3%, a libra esterlina de 11,3 para 8,1%. Substancialmente invariável o US dólar de 41,9% para 41,7%. Que coisa significa? Os SDR são uma divisa teórica. A inclusão do yuan é, por isso, sobretudo simbólica: certifica que a moeda chinesa tem agora um papel significativo no comércio mundial e é usada livremente  a nível internacional. É por isso que Christine Lagarde, número um do FMI, define a decisão como “um marco importante” para a economia chinesa e um “reconhecimento” dos progressos feitos pelas autoridades de Pequim na reforma do seu sistema.
(Corrière della Sera: pág. 25, in Economia).

Ciao basket
Kobe Bryant, o fora de série atleta do Los Angels Lakers, anuncia que no fim da época acaba a sua carreira, e abandona com uma poesia:

Caro basket,

Estou pronto a deixar-te.

Fizeste-me viver um sonho e amar-te-ei sempre.

Mas não posso mais amar-te com a mesma obsessão.

Corri em todos os parkets e atrás de cada bola por ti.

Dei-te tudo!

O meu coração pode suportar a batalha,

A minha mente gerir o cansaço,

Mas o meu corpo sabe que chegou a hora de dizer adeus.

Amar-te-ei sempre.

 (Corrière della Sera: pág. 37, in Desporto).

 
Abraço. 

Lisboa, 10 de Dezembro de 2015
Octávio Santos