quinta-feira, 17 de dezembro de 2015

Travestido de Pai (e Avô) Natal, empoleirado num escadote a pendurar todas as bolas na Árvore após ter acomodado o Menino nas palhinhas, o cronista lembra-se da “obrigação” da escrita e, inspirado pela COP21, faz uma patética tentativa de melhorar o ambiente tirando lixo de casa.


Como o Natal se aproxima e não temos certezas sobre se a sua celebração não será brevemente tomada como uma forma de prepotência e proselitismo, tenho tantas pequenas coisas para fazer que, não estando para ficar aqui sentado, ou a passear à chuva, a inventar um assunto para esta crónica, resolvi rebuscar gavetas à procura de qualquer coisita que, poupando-me a escrita, pudesse não parecer um remedeio. Assim, encontrei o texto que segue,  intitulado “Platão e Aristóteles”, o qual foi lido durante a sessão “Incertezas Económicas”, no Auditório da AICEP, em 26 de Maio de 2011, que teve a participação pro bono de três excelentes colegas: a Florinda Grave, o José Meira da Cunha e o Vítor Quelhas (A). 

Platão e Aristóteles

Não vamos confundir o conceito de mercado, que existe há 6.000 anos, com a economia, muito mais recente. O pensamento económico ocidental começa na Grécia porque foi aí o berço da nossa civilização. Foi no seio das cidades gregas que o homem toma consciência de ter uma vida política, identificando-se com o Estado, que não sendo uma realidade material o afirma com uma concepção altamente espiritualista. 

No Renascimento, admite-se que o homem não passa de um animal superior, concepção naturalista que influenciou os autores dos séculos XVIII e XIX que lançaram as bases da economia política. Concepção que ainda hoje influencia os autores contemporâneos que pretendem construir a ciência económica como ciência exacta. Tudo isto é posto em causa pelo marxismo que, na utopia de criar o “homem novo”, retorna ao pensamento grego segundo o qual a vida política é um aspecto essencial da vida espiritual do homem. Se abordarmos o estudo do marxismo encontraremos certas teses que não se compreendem senão à luz da filosofia grega. Eu, que vivi 13 anos num “paraíso do socialismo real” e,  empírico como sou, só sei analisar o marxismo à luz de exemplos de vida vivida, e a única verdade que posso afirmar é que onde havia socialismo não havia bananas. Posso explicar-me se assim o quiserem. 

Tudo isto para tentar compreender a influência dos dois grandes pensadores gregos, Platão e Aristóteles, que são os primeiros a tratar da organização económica no sentido em que hoje compreendemos esse termo. É curioso abrir aqui um parêntesis para recordar que tanto Adam Smith como John Keynes, foram ambos, para além de reconhecidos e estudados economistas, filósofos e moralistas como os seus ilustres antecessores helénicos. 

Platão, que é o grande percursor e um dos grandes inspiradores da concepção cristã do homem, vê na cidade um instrumento da salvação das almas. Esta concepção leva-o a propor a supressão da propriedade nas classes superiores da sociedade. 

Aristóteles, pelo contrário, defende a propriedade. A partir desse momento, portanto, levantou-se o problema do comunismo. Todavia, a oposição que existe entre as doutrinas dos dois filósofos é muito diferente do debate moderno que existiu até à queda do comunismo, entre liberais e marxistas. Platão e Aristóteles são idealistas, ao passo que a discussão moderna sobre o comunismo se desenvolveu na Europa Ocidental no seio de sociedades que adoptaram numa larga medida uma concepção naturalista do homem. 

Platão aos 20 anos encontra Sócrates e atravessa uma profunda crise interior; doravante só poderá servir o verdadeiro e o justo. Sócrates morreu por ter afirmado que existe uma justiça absoluta, superior às leis da cidade. O dinheiro e a lei, a riqueza e a justiça, são doravante para si poderes opostos. Expõe numa das suas Cartas, que lhe não é já possível encarar uma participação na acção política imediata, nas vulgares e baixas competições que a caracterizam. A acção eficaz exige que se esteja primeiramente em retiro para descobrir a verdade na contemplação, a teoria. Deste período de meditação saem os seus primeiros diálogos. É procurando dizer o que é a justiça e como é possível conformar-se com ela que Platão é levado, na República, a falar da organização da vida social e nomeadamente da vida económica. A cidade ideal corresponderia exactamente às exigências lógicas da vida em sociedade; seria portanto perfeita com nomeadamente as quatro grandes virtudes da sabedoria, da coragem, da temperança e da justiça. Mas para o Platão da República, o problema da atribuição das riquezas a um tal ou tal indivíduo não é de nenhum modo um problema de justiça. Parece, sim, que para ele o indivíduo não tem qualquer direito sobre a riqueza social, mas que tem apenas o dever de levar o género de vida conforme  função que lhe cabe. 

No decurso do diálogo da República foi posta já nitidamente a questão de saber se a cidade perfeita era realizável. E Sócrates respondeu com muitos cambiantes. Platão insiste nomeadamente na necessidade de estabelecer a igualdade das fortunas; se existir uma classe dos sem nada, estes serão uma fonte perpétua de revolução. Ora Platão descobriu que realmente o grande obstáculo para os reformadores sociais é um obstáculo de ordem económica. O fim essencial é estabelecer a amizade entre todos os cidadãos; qual é a organização económica e social apropriada para esse fim? O verdadeiro meio, responde Platão, é a comunidade absoluta dos bens. O comunismo é-nos assim apresentado pela primeira vez como um ideal de alcance geral, mas não é menos verdadeiro que a sua obra, pela maneira profunda e eloquente como põe os problemas políticos, foi o verdadeiro ponto de partida da filosofia económica e social da nossa civilização. 

A personalidade de Aristóteles é-nos muito menos conhecida que a de Platão. Várias das suas obras não chegaram até nós e é difícil determinar o carácter das que possuímos: cursos, notas ou verdadeiros tratados. As duas obras principais que tratam dos problemas económicos são a” Ética a Nicómano” e a “Política”. 

Aristóteles é o adversário do “comunismo” de Platão e mesmo do igualitarismo que Platão defende nas Leis. Quando trata da propriedade, Aristóteles opõem-se muito vivamente à ideia de Platão segundo a qual a comunidade dos bens seria o regime ideal. “Em geral, escreve ele, partilhar a vida de outrem, colocar tudo em comum, é para o homem uma empresa difícil entre todas”, acrescentando que “ os possuidores de bens em comum ou indivisos têm entre si conflitos muito mais frequentes que os cidadãos cujos interesses estão separados”. 

Aristóteles não será um comunista nem partidário da rigorosa igualdade das fortunas. Todavia, encontramos nele a importante tese de que, se a propriedade deve em princípio ser privada, o seu uso deve, ao contrário, ser comum. Aliás, o filósofo concretizará num outro texto que a quantidade de bens necessária à felicidade é tanto mais fraca quanto melhor é o indivíduo: “Porque a vida feliz requer um certo acompanhamento de bens exteriores, em quantidade menor para os indivíduos dotados de melhores disposições e em quantidade maior para aqueles cujas disposições não são tão boas”. 

Qual é, antes de mais, o princípio da justiça distributiva ? Ao procurá-lo, Aristóteles afasta novamente Platão. “A igualdade não é realizada quando se dá a todos os indivíduos a mesma coisa como nas Leis de Platão, porque os indivíduos são desiguais entre si. A verdadeira igualdade consiste, pois, em dar mais àquele que merece mais. É uma igualdade proporcional”. 

Ao admitir que há actos justos e injustos em si mesmos, independentemente da moralidade dos indivíduos, levanta a existência daquilo a que Hegel chamará moralidade objectiva. Apercebe-se deste modo toda a fecundidade dos princípios aristotélicos, mas terão de passar numerosos séculos antes que esses germes de uma ciência económica e de uma do direito possam desenvolver-se. Por seu lado, se Platão não se eleva, à ideia de uma ciência da história, pode, todavia, afirmar-se que a sua visão do mundo deixa aberto o caminho por onde ela se poderia introduzir. 

Vê-se então como a oposição do relativo conservadorismo de Aristóteles ao idealismo social platónico deriva da oposição que existe entre as respectivas concepções do mundo. O “comunismo” de Platão é realmente uma consequência da sua crença na vida futura (por muito singular que isso hoje nos possa parecer). A crítica desse “comunismo”, bem como do igualitarismo, desenvolvida por Aristóteles decorre da sua visão de uma humanidade que necessariamente permanece através do tempo conforme à sua natureza imutável. 

Nos vinte séculos que se estendem do século IV a.C. ao XVI da nossa era não se poderá fazer melhor do que procurar tirar partido das análises sociais de Platão e Aristóteles, não obstante o facto de ter desaparecido o mundo que lhes serviu de modelo. Este longo período de estagnação do pensamento político explica o porquê de Platão e Aristóteles continuarem tão próximos de nós. Até a uma época relativamente recente, nunca tiveram, na verdade, sérios concorrentes. Considerá-lo é prestar homenagem ao seu génio, mas é também verificar quanto foi profundo e prolongado o recuo da vida intelectual no Ocidente depois da queda das cidades gregas diante do invasor romano. 

Abraço.

Lisboa, 17 de Dezembro de 2015
Octávio Santos 

(A) Todas as comunicações produzidas, incluindo o fantástico cartoon da Florinda que é a imagem desta crónica, foram por mim coligidas numa brochura, que contém mais umas coisas minhas com umas ilustrações à maneira, da qual "argolei" 50 exemplares numerados, tendo ainda alguns na cave à espera de serem remetidos a quem se mostrar interessado. Desculpem esta vã tentativa de tirar lixo de casa, convencido que estou a salvar o planeta.