quinta-feira, 18 de fevereiro de 2016

Sanremo (que não é santo) com suas flores e seus cantores, seus momentos altos (poucos) e baixos (muitos), intérpretes e beleza, emoções adiadas para a semana, poemas cantados e escritos, ousadias poéticas num templo de negócios e paixões assolapadas por mulheres de circo cantadas por um príncipe poeta e um palhaço pobre, triste e ratoneiro.

 e 
A semana passada foi semana de Sanremo e, como todos os amantes daquele que é, talvez,  o mais importante festival mundial de canções ligeiras, lá estive ao serão, colado ao ecrã do televisor de terça a sábado, 5 noites 5, a tentar ouvir as novidades em concurso, as guest stars, os cómicos de turno, as belezas que fazem obrigatoriamente de moldura ao apresentador, e a captar as tendências da moda, que até para isso o festival é montra.
Para não vos fazer perder muito tempo digo-vos já que grandes novidades musicais não houve, nem se esperavam, que o carrocel de famosos contou com Sir Elton John - real, magnífico mas claudicante -, a sua compatriota Ellie Goulding - nada de novo das margens do Tamisa -, o irlandês Hozier - muito agradável surpresa -, o franco-congolês Maître Gims - "rapeiro" africano suave -, Nicole Kidman - a beleza, a classe, a discrição -, os indígenas Laura Pausini - a pimba de sempre -, Eros Ramazzotti - o mitra de sempre -, e Elisa - o encantamento vocal e gestual -, todos vencedores de edições anteriores, e o maestro Ezio Bosso - meu Deus, como é possível! -, que protagonizou o momento mais emocionante da semana, tendo o outro momento alto sido obra de um dos cómicos, o siciliano Nino Frassica -  chora palhaço, chora… -; destes dois momentos dar-vos-ei conta na próxima semana, embora não tenha tido muito êxito a semana passada com a tentativa de vos obrigar a gostar do mesmo que eu, mas tentarei mais uma vez, só que hoje não,  para não arriscar perder-vos para sempre. Esquecia a beldade, que era romena, chama-se Mädälina Ghenea, foi a protagonista do último filme de Paolo Sorrentino,  La Giovinneza” (Youth), em que contracenou com os cotas Michael Kaine e Harvey Keitel, trocou,  durante as cinco noites, vinte e cinco vezes de vestido,  e mereceu este comentário de um jornalista a quem perguntaram o que achava dela: - Não sei, é a primeira vez que a vejo vestida! Na minha modesta opinião - sou macho mas não exerço - esta Senhora vai ter um futuro brilhante porque, protagonizando um nu que não ofende, nem a ela nem ao espectador, chega ao ponto de não provocar ciúme às mulheres legítimas de quem a está a admirar, e a isto chama-se pureza.  Da moda desfilada, venceu o clássico e a simplicidade, com evidência para as não cores, e a boa nova do retorno do blusão de pele, p'ró menino e p'rá menina, não obrigatoriamente negro, agora que nós portugueses nos estávamos a desmamar depois de décadas de uso e abuso intensivo.
Acontece que, na ausência de novidades, as emoções canoras nos foram transmitidas pelos artistas em concurso, não quando debitaram os seus inéditos, mas quando cada um deu a sua interpretação de uma cover, e aqui, o jovem Lorenzo Fragola, 20 anos, regalou toda a gente com a, talvez, mais bela canção de amor jamais escrita, da autoria do romano Francesco De Gregori, dito “O Príncipe”, intitulada “La Donna Cannone”, da qual vos deixo a versão original, o seu texto em italiano e a minha tradução livre. Como vão compreender trata-se de um homem apaixonado por uma Mulher que no circo é disparada por um canhão, furando o tecto da tenda, o qual lhe transmite, cantando, com palavras inflamadas mas contidas, quanto é grande o seu amor por ela.
Assim, e para dar conteúdo a esta crónica, veio-me vontade de escrever também eu a letra de uma potencial canção de amor por outra das vedetas/vítimas do maior espectáculo do mundo: a Mulher alvo do lançador de facas. Como sabem preciso sempre de me apoiar em poetas verdadeiros para construir as minhas incipientes poesias e, mais uma coincidência, fui dar na minha crónica de 27/11/2014 com o poema “Homem à beira-mar”, de Sophia de Mello Breyner, o qual foi dito no Auditório da AICEP, pelo ex-colega Miguel Malheiro Garcia, na sessão “Abaixo o Mistério da Poesia”, que teve lugar em 17/11/2009, no âmbito do ciclo “Cultura no Auditório”. Pus então o poema de Sophia em cima da mesa à minha frente e decalquei, primeiro a quintilha, depois as quatro quadras e no fim a septilha, rima por rima, copiando mesmo, sem pudor nem vergonha, o primeiro verso, e deu isto, só esperando que não me queiram mal: 


A Noite dos Milagres ou A Mulher Alvo

Nada trazem consigo. As imagens que encontram…
 
Começa assim Sophia “Homens à beira-mar”

Não a mim, ao ver-te ali à mercê da pontaria
De quem, certo ou incerto, armas te lança

O teu amado corpo, gira na roda, à espera…

As lâminas que silvam ao fender o ar

As luzes do circo que as fazem brilhar

São imagens que fixam o meu medo

De não ser eu do acaso o dependente.


 Faz-se silêncio no venerável público

O artista faz seus olhos pequeninos

Cala-se a corneta, rolam os tambores

E eu só, ali a rezar p´las minhas dores.
 
Quando a faca sai da mão que quero certa
Entra-me vento no peito por janela aberta
Por onde o coração me escapa esbaforido
Que antes de sofrer  já tem muito sofrido.
 
Insuportável sentir-te a sorte incerta
Correr sobre a mesa o dado bailarino
Desejar tanto morrer mas estar alerta
Na ânsia que termine o meu tormento.
 
Quando o estalar das palmas diz que é fim
E começo a sonhar com o que aí vem
Que tu, já sem plumas, p’ra mim corres
Tu que em cada noite me mil vezes morres
Te aperto nos meus braços, oh! meu bem
Certo que será outra a minha pontaria
Não falhar o teu corpo, e aí está a magia!

Abraço.
Lisboa, 18 de Fevereiro de 2016
Octávio Santos