quinta-feira, 25 de fevereiro de 2016

Prometidos restos de Sanremo requentados, melhores de um dia para o outro tal qual os carapaus fritos, música e muito, muito, mais de um génio predestinado e brincadeira amarga à beira mar de um palhaço pobre com lágrimas.


Quando prometo cumpro, com excepções que confirmam a regra, e lembro-me de ter anunciado na crónica da semana passada que vos faria ver e ouvir os dois momentos altos do Festival de Sanremo 2016 que foram aqueles protagonizados pelo maestro Ezio Bosso - Meu Deus, como é possível! -, e pelo cómico siciliano Nino Frassica -  chora palhaço, chora… -, mas abro aqui um parêntese para me corrigir porque me recordo de vos ter dito que não ouvi novidades musicais no citado festival, mas ao escutar repetidamente a canção vencedora “Un giorno mi dirai”, muito bem interpretada pelo histórico complexo “I Stadio”, mudei de opinião - só os burros e políticos aparentados não o fazem – porque é um belo rock, com uma bela letra – a carta de um Pai a uma Filha – que nos faz pensar, emocionar e comover. Fecho o parêntese.

Voltando aos dois momentos que aqui vos deixo com a respectiva tradução, digo-vos que, tanto o momento de Ezio Bosso, incluindo a interpretação da sua composição  Following a bird”,  como aquele  em que Nino Frassica nos diz o poema “A mare si gioca”, não podem deixar de vos fazer correr uma lagrimazita, e de provocar uma reflexão sobre os mistérios da vida que tantos tentam desvalorizar, ou mesmo destruir, sem razões válidas, mesmo que a alguns pareçam aparentes. Acrescento, no que toca ao maestro, tratar-se de alguém praticamente desconhecido no seu próprio país, com uma brilhante carreira feita entre Londres e Nova Iorque, que aceitou apresentar-se numa manifestação menor, em relação à sua  música, no que foi uma espécie de perdão à sua terra que nunca até agora lhe tinha dado nada, e só por isso foi admirável.  Quanto ao cómico, devo dizer que sendo ele, neste momento em Itália, o expoente máximo de uma comicidade surreal e non sense, consegue, como todos os grandes actores cómicos, dar um enorme dramatismo à sua interpretação, dramatismo esse suportado por poucos e essenciais gestos, perfeitas pausas e inflexões e expressões faciais que, sendo aquelas próprias da sua veia cómica, se suspendem no momento em que normalmente explodem em graça: único e sublime, como a música que acompanha o poema de Tony Conto. 

Seguem as traduções, seguramente com erros e omissões, para aqueles que não conseguirem captar tudo o que foi dito e recitado, e isto para memória futura, pois que, como afirmava Umberto Eco “ A memória está na alma”:

Ezio Bosso (com o apresentador Carlo Conti):

Carlo Conti: - Ezio, estás em Sanremo!

Ezio Bosso: - E o que é que faço aqui?

C.C.: - O que fazes? É a tua arte que te traz cá! Tu és famoso em todo o mundo, mas sei que quando eras pequeno a porteira da tua casa te dizia que um dia irias a Sanremo. É verdade?

E.B.: - Sim, já me lixaste!

C.C.: - Porque é que te lixei?

E.B.: - Porque penso naquela Senhora bonita que traduz tudo quando falo, porque agora estou emocionado e falo pior do que é costume… Devo fazer uma coisa que me faz estar bem: quando começo um concerto digo CIAO, é uma palavra belíssima, e aquela Senhora quando era rapazinho, todos os dias, eu andava ao Conservatório, me dizia: Espero ver-te em Sanremo… e eu respondia…não Senhora, eu não canto!!!! Não, não, quem sabe… talvez dissesse agora “eu tinha-te dito”.

C.C.: - O mundo tem necessidade de música?

E.B.: - Certo, porque a música somos nós, a música é uma riqueza que partilhamos, que aqueles que se nos aproximam nos ensinam que nós pomos as mãos mas a coisa mais importante que existe é escutar.

C.C.: - É verdade…é fundamental. Amanhã estará na Royal Opera House de Londres, e depois estreia um espectáculo no Royal Ballet com as suas músicas… . Sábado estará em Vilnius. Mas onde encontras toda esta energia?

E.B.: - A música é uma verdadeira magia, de facto sabem que não é por acaso que os maestros têm uma varinha como os magos. Pensa que a música me deu o dom da ubiquidade; a música que escrevi está em Londres, dirigida por um bravo maestro com o ballet mais importante do mundo ... junto com o da Scala ... e eu estou ali, tenho o dom da ubiquidade, a música é uma riqueza e sobretudo, como dizia o grande maestro Claudio Abbado, é a nossa verdadeira terra.

C.C.: - Há poucos meses saiu o teu último CD que é “A 12ª câmara” (a), porque, segundo uma antiga teoria, 12 são as câmaras da nossa vida.

E.B.: - Sim. Eu gostei… levo sempre um pouco de água ao meu moinho…

C.C.: - Claro, obviamente,  também eu gostei…

E.B.: - Mas, neste momento, nós os homens somos estranhos porque damos por adquiridas as coisas belas…

C.C.: - Estão ali…são belas…

E.B.: - As câmaras são uma coisa…inventámo-las nós, para nos protegermos, e demos-lhe nomes e então eu que às vezes… temo-las todos uma câmara que não nos agrada mas onde entramos. O nome original da canção era câmara, os trovadores não vendiam canções mas câmaras…como acontece neste momento…Então, a mim que gosto de bisbilhotar, explorar o que por vezes damos por adquirido, encontrei uma coisa belíssima, às vezes sucede… a santos e a cães… mas a todos, dentro e fora, uma câmara que é escura, que nos é fechada, é pequena… eu encontrei esta teoria que diz que nós não somos uma linha, mas somos 12 câmaras e na última, que não é a última ... porque tudo muda ...Recordemos a 1ª… porque quando nascemos não podemos recordar porque não vemos… mas ali recordamo-las e estamos prontos a recomeçar, e ali somos livres.

C.C.: - Quando chegaste disseste-me atrás do pano: És um louco por me teres convidado…  e eu estou feliz por ser um louco, mas mesmo feliz. Agora vais executar “Following a bird” que tem um significado especial, particular?

E.B.: - Sim. Gosto de a tocar, e faço só uma pequena parte desta peça, que para mim é importante e com que abro todos os meus concertos. Eu sou um desastre com os títulos, mas este é em inglês (porque assim pareço mais engraçadinho) porque “Seguir um passarinho” não era nada interessante, não é…

C.C. : - É, em inglês, “Following a bird” é muito melhor…

E.B. : - Então seguindo aquele passarinho que voava perdi-me e pus-me a raciocinar sobre a importância de perder-se para aprender a seguir; nós dizemos que perder-se é feio, mas não, porque perder os preconceitos, o medo, a dor, aproxima-nos e faz-nos andar em frente. Agora tentarei tocar… mas estou agitado.

C.C. : - “Following a Bird”, maestro Ezio Bosso! 

(Segue-se a execução, magnífica na sua simplicidade; não deixem de ver mesmo que tenham coisas mais importantes). 

C.C.: - Não só tocaste em Sanremo mas tiveste até uma standing ovation, não só ao artista mas também ao homem.

E.B.: - Posso dizer uma coisa: recordem sempre que a música, como a vida, só se pode fazer de uma maneira: juntos! CIAO!

C.C.: - Obrigado! EZIO BOSSO!
 

(a)  Em italiano “La 12ª stanza” que se pode traduzir, como fiz, por “câmara”, mas também quarto ou sala, e lembrei-me agora das “Casas do coração” de El Rei D. Duarte no “Leal Conselheiro”, e pergunto-me se não seria esta a melhor tradução.
 

Nino Frassica (com o apresentador Carlo Conti) (A):
 
Carlo Conti: - Qual a canção de Sanremo que te agradou mais?

Nino Frassica: - A canção de Sanremo que me agradou mais ainda não foi cantada.

C.C.: - E a cantará esta noite Nino Frassica. Melhor, afasto-me e anuncio com atenção: “No mar brinca-se”, de Tony Conto, dirige a orquestra o maestro Pinnuccio Pirazzoli, e aconselho-os a estarem com atenção a esta interpretação de Nino Frassica!
 

No mar brinca-se

No mar brinca-se!

Podem fazer-se castelos de areia

Pode-se estar debaixo do chapéu de sol

A fazer  palavras cruzadas

Pode-se jogar com as raquetes e a bola

Podem-se fazer voar papagaios

E pode-se escrever o próprio nome na areia.

 

No mar brinca-se!

Podem-se dar umas voltas num barquinho

Pegar no colchão e tomar banho com o menino

Podes pôr-lhe as braçadeiras, a máscara

E quando sai da água estarmos juntos

E brincar com ele, com a pá e o balde

Porque no mar brinca-se.

 

No mar brinca-se!

As gaivotas sabem-no

Por isso voam rente à água…e gritam

E depois sobem, sobem, altíssimo…

E fingem ser nuvens.

Os pescadores são seus amigos

E lançam-lhes peixes

E elas agradecem, enchendo de alegria branca

Os quadros, os céus, as águas, a vida.

 

No mar brinca-se, brincam todos!!!

Pode-se brincar ao jogo do barco

Sobem todos para um de borracha

Até o encher para lá do inverosímil

E quando aquele que guia o barco,

Aquele que comanda,

Dá ordem de se lançarem todos ao mar

Lançamo-nos ao mar

É um jogo.

 

Quando eu era jovem trabalhava

Na Guarda Costeira, em Lampedusa

Quantas coisas eu vi!

Uma vez durante uma patrulha

Vimos 366 golfinhos enredados nas redes,

Tinham fugido das águas de onde tinham nascido,

Talvez por fome,

Talvez porque havia uma guerra submarina entre os peixes,

Libertámo-los todos das redes

E vimo-los nadar velocíssimos,

Saltar fora de água, e seguir-nos…

Brincavam!!!!!!

 

No mar brinca-se, brinca-se!!!

Há meninos que brincam

A estarem imóveis com a cara na água

Sem respirar, porque sabem bem

Que está para chegar a mão forte do pai

Que os levantará e os fará brincar.

 

No mar brinca-se!

No mar brinca-se! (vozes de crianças)
 

C.C.: - Em Sanremo 2016, um grande Nino Frassica.

N.F.: - Obrigado. 
 

(A) Uma tarde destas estava a ouvir música no carro estacionado no parque dos Inválidos do Comércio, quando vi chegar voando, com palradeira estridente, um casal de periquitos de colar vermelho que poisou numa nespereira, e ali se pôs a comer nêsperas durante um bom quarto de hora. Fiquei a admirá-los e notei que os melros, rolas, pardais e outros pássaros que por ali andavam a encher o papo e a tratar das suas vidinhas, nem por um momento se insurgiram contra aqueles intrusos que, vindos sabe-se lá de onde, se banqueteavam tranquilos nas suas barbas.

Abraço.

Lisboa, 25 de Fevereiro de 2016
Octávio Santos