quinta-feira, 17 de março de 2016

Sempre Eco, jockey mercenário de palavras vencedor de todos os Pálios, fantasma dos coveiros da cultura, dentro e fora das muralhas, professor de magalas, exímio contador de anedotas de judeus, viaja agora com salmões na Nave de Teseu rumo à eternidade, com a benção judaica do ateu Ovadia.


Umberto Eco dizia que desejava que os seus leitores se divertissem tanto a lê-lo como ele se divertia a escrever. Como é que os meus leitores se podem divertir a ler-me se é com grande sacrifício, e trabalho, que me sento para escrevinhar esta meia dúzia de linhas por obrigação semanal? Em Siena, na Toscana, realiza-se todos os anos uma (na realidade, duas) corrida de cavalos, o Pálio de Siena, em que cada cavalo, que representa um dos bairros da cidade, é montado em pelo por um jockey mercenário, corrida com algumas regras mas sem quaisquer princípios éticos, na qual todos os comércios são tolerados. Uma das regras é aquela que, dando a primazia ao quadrúpede, diz que o primeiro cavalo a cortar a meta é o vencedor independentemente de ter ou não o jockey em cima. Isto para vos dizer que, quando acabo de escrever cada crónica, me sinto como o cavalo vencedor sem cavaleiro, não percebendo bem como aconteceu, só certo que o perdi pelo caminho. Uma coisa que sonhei escrever, caso para isso tivesse saber e capacidade, era um ensaio comparativo entre o Pálio e a política italiana, mas terei de deixar isso para uma próxima reincarnação, limitando-me talvez a rascunhar qualquer coisa sobre aquela portuguesa à luz das Lendas e Narrativas com uns pós do Pátio das Cantigas, tudo acompanhado com a música dos Xutos e Pontapés, que é como apetece tratar os protagonistas.

Eco, se alguma vez tivesse participado no Pálio, acabaria à frente, ele e o cavalo, provando que a força a nada serve sem a inteligência. E a sua está toda expressa no seu penúltimo livro “Como viajar com um salmão”, já publicado pela sua casa editora “A Nave de Teseu”, livro que é composto por textos que mais não são que uma divertida súmula de instruções para uso: como desmentir um desmentido, como sobreviver à burocracia, como fazer filosofia em casa, como evitar o carnaval, como tornar-se Cavaleiro de Malta e, como diz o título, como viajar com um salmão. Para aqueles que aconselham os aspirantes a escritores a não se meterem em política porque esta não passa esta de um facto circunstancial, Eco “ensinou-nos a não separar nunca a arte da ciência e da política. Nos vinte anos do consulado de Berlusconi teve valor simbólico para a resistência de toda a cultura europeia”, e isto são palavras do grande filósofo alemão Rüdiger Safranski. Eco era “claro, divertido e mordaz” disse Giovanna Cosenza, Professora de Filosofia, Comunicação e Teoria da Linguagem da Universidade de Bolonha, com um doutoramento em Semiótica sob a orientação de Umberto Eco, seu docente de referência: “Claro, porque tinha a capacidade extraordinária de traduzir sempre em palavras simples e concretas os conceitos mais difíceis, as relações lógicas mais abstractas, as reflexões filosóficas mais importantes. Divertido, porque nas suas lições alternava o alto com o baixo, um léxico rebuscado com palavras de todos os dias (asneiredo quando necessário), a argumentação mais complexa com anedotas, e era frequente os alunos desatarem a rir: nada é mais eficaz que ligar conceitos a emoções, e ele fazia-o. Mordaz, porque era sempre directo e imediato, isto é, dizia o que pensava no momento em que o estava a pensar; de fazer medo, tanto era o que ele sabia comparado o teu pouco, o tudo e o nada”.

“Como é que faço a explicar à minha Mulher que quando estou à janela estou a trabalhar?”, perguntava ele que, no dizer de um dos seus alunos “nunca um chapéu cobriu tanta inteligência, para além de toda a biblioteca que a sua cabeça continha”, aluno que um dia lhe perguntou quem eram para ele os clássicos: “– São aqueles que estudamos na escola, aprendemos a amá-los depois da escola, e nos prolongam a vida”, foi a resposta do mestre que, talvez sem o saber, falava de si próprio.  Um dos maiores troféus do “semiólogo por antonomásia” foi, no contar de Furio Colombo, jornalista e comunicador, obtido durante uma conferência em Pequim, onde deparou com uma sala cheia, a rebentar pelas costuras, mas de velhos. Dos jovens que esperava nem o cheiro! Eco, só com o seu saber, a aterrorizar um inteiro regime preocupado com o que ele poderia transmitir às novas gerações. Conta ainda Furio Colombo, seu amigo desde os bancos da escola e agora sócio de “A Nave de Teseu”, ter-lhe recomendado quando assentou praça, de não ir para a tropa armar em culto pois que isso poderia prejudicar as suas relações com camaradas e superiores. Um dia passou pela caserna para o cumprimentar e, ao informar a sentinela ao que ia, teve como resposta: “- Agora não é possível porque o Professor está a ensinar”.

Recordando que acaba de ser publicado em Itália, em 26/2/2016, o seu último livro “Pape Satàn Allepe” (ver crónica da semana passada), deve ser dito que isto foi um gesto de militância, para além de um acto de fé. O livro foi publicado pela nova editora “A Nave de Teseu”, que Umberto Eco fundou com um punhado de amigos em Dezembro de 2015. Tal como os outros accionistas fundadores, Eco quis meter areia na engrenagem do monopólio da edição italiana após a aquisição da Rizzoli pela Mondadori, propriedade do clan Berlusconi. Ao financiar o projecto com 2 milhões de euros, declarou: “- É para mim uma forma de luta contra o Alzheimer, mais eficaz que as palavras cruzadas”. Todos os livros de Eco serão doravante editados pela nova casa editora, à medida  que se libertem dos direitos.

Na minha crónica de 3/3, há 15 dias, falei-vos do seu amigo Moni Ovadia, judeu que passava com ele noites e noites trocando entre si  “furiosamente” as suas anedotas, a ponto de Eco lhe ter perguntado numa dessas noites: “- Agora que já sei todas as tuas e tu sabes as minhas o que é que vamos fazer? Não te preocupes, respondeu Ovadia, porque a piedade do Alzheimer e da arteriosclerose nos fará esquecer todas para depois recomeçarmos. Acontece que Ovadia referiu tudo isto na cerimónia de despedida de Umberto Eco, e ainda uma anedota judaica que este lhe tinha contado, tendo acabado a sua intervenção com uma bênção que considerou um dever judaico, de não crente a não crente: “Que Deus te abençoe e te proteja, sobretudo porque não o crês...o bom Deus, na sua infinita misericórdia, suporta os crentes mas prefere os ateus”. Deixo-vos aqui a oração de Ovadia, não para que ouçam a anedota, mas para que se dêem conta da atmosfera que envolveu a cerimónia fúnebre – que não teve nada de fúnebre -, e sobretudo pela bênção que, sem saber se seria desejada pelo seu amigo, lhe deu por dever da sua religião, da qual se declarou não crente. Paradoxo a provar que, mesmo para homens sem fé, há qualquer coisa a eles superior.

Para acabar volto à sua aluna Giovanna Cosenza que disse nestes dias: “Engana-se quem pensa que Umberto Eco nos deixou. O Professor está vivo, está ainda no meio de nós, não só porque vive nos textos que produziu e estão espalhados por todo o mundo, mas porque vive nas dezenas de milhares dos seu ex- alunos que tiveram a sorte de se apinharem nas salas onde leccionava, e o fizeram por meses e anos.”

Como é que faço a explicar aos meus Netos que quando estou enfronhado num livro, numa revista ou num jornal, ou de nariz levantado a cheirar o ar pelas Avenidas Novas e arredores, ou na Avenida da Liberdade, estou a trabalhar, talvez também para eles? Ou bastará dizer-lhes que “é preciso ser como as girafas para se comerem só as folhas melhores ao mesmo tempo que nos aproximamos do céu”, como dizia o Mestre.
 

Abraço.


Lisboa, 17 de Março de 2016
Octávio Santos