quinta-feira, 24 de março de 2016

Números e letras inúteis, romances constantemente procrastinados, Ítaca on Peniche, oragos do passado, massas não alimentícias, um anjinho em loja de santos, repertório de santas maravilhas não on-line, uma virgem em perpétua apneia, curadores/curandeiros, Marcelo, Jorge Mário e mais santinhos avulso.


No passado dia 16 acordei às 06.24 e, sem capacidade para pensar alguma coisa de útil, pus-me a jogar com os números 6, 16 e 24,  6x4=24,  4x4=16,  24-16=8,  4+4=8,  8+8=16, tudo certo, tudo par mas sem nexo, servindo só para preencher um vazio de criatividade porque se alguém  me  tem  pedido para escrever qualquer coisa eu não seria capaz, e aterrorizado, dei comigo a desfiar o rosário dos títulos dos livros que não escrevi, e aí veio-me em mente um  novo título para um romance sobre uma Mulher que espera – as Mulheres esperam sempre qualquer coisa -, que seria “Tu Ulisses ou Tolices”, tendo como subtítulos “Mas foi Penélope a heroína” e “História da espera de Maria da Pena Lopes”,  personagem inventada que habitava as Berlengas com um velho cego, um Filho inerme e um cão triste, à janela a remendar as redes de pescadores  de peixes e crustáceos que, sedentos de carne fresca, a assediavam, enquanto o Marido não descobria a maneira de se libertar de São Bento porque tropeçava em tolices que se sucediam àquelas que ele próprio debitava num crescendo diabólico em carrossel que lhe impedia a liberdade, tudo tão inútil como o meu joguinho com os números da madrugada de 16. No fim cheguei à conclusão que o único romance que eu estaria em condições para escrever seria um sem título, com todos os títulos possíveis mas descartados a cobrir toda a capa, e como nunca cairia na banalidade de escrever nada que começasse por “Era uma vez…” começaria inteligentemente com “Ponto Final”, o que me permitiria deixar todas as páginas seguintes em branco e poupar o leitor a mais uma desilusão literária como tantas que andam por aí, que seriam muito mais úteis se seguissem este meu figurino.
Tenho sorte porque estou a ler um livro útil e indispensável, “A Rebelião das Massas”, de Ortega y Gasset, cuja primeira edição data de 1930. O homem era de uma inteligência fulgurante e de uma presciência assustadora, como vos dei conta no meu e-mail da semana passada, permitindo-me repetir aqui quanto então escrevi:
- Lido no prólogo escrito em 1937 por Ortega Y Gasset para a edição da sua obra “A Rebelião das Massas”,  de 1930, permitindo-me eu o desabafo  “Gaita que o homem era bruxo!”:  

“Antes podia-se arejar a atmosfera confinada de um país abrindo as janelas que dão para o outro. Mas agora não serve de nada este expediente, porque no outro país a atmosfera é tão irrespirável como no nosso.”  

“…impõe-se necessariamente a probabilidade de um Estado geral europeu. A ocasião que leve de súbito a bom termo o processo pode ser uma qualquer: por exemplo, o rabicho de um chinês que se assome nos Urais ou um safanão do grande magma islâmico.” 

Só que, apesar, ou por causa, da sua inteligência e facilidade de explicar os fenómenos nascentes na sua época (entre as duas guerras), as duvidosas, para não dizer perigosas, ideias que lançou encontraram terreno fértil naqueles que, pretendendo incluir uma minoria predestinada a dominar a massa de “incultos” que não compreendiam o “maître à penser” e, como tal, seres inferiores, o que, a terem vingado, nos teria mantido nos séculos XVIII e XIX, tempos durante os quais  mandava quem tinha de mandar e obedecia quem tinha de obedecer,  pântano pregado ao longo da obra como salvador, usando de todos os subterfúgios semânticos para não o parecer. Ortega y Gasset é extraordinariamente convincente a impingir-nos que o que ele prega é sacrossanto, mas que cada um é livre de não o acreditar nem seguir; pena que essa nossa rebelião nos leve à desgraça e se cairmos nas ratoeiras que ele nos revela a culpa é nossa, senão vejamos: 

“ A multidão, de repente, tornou-se visível, instalou-se nos primeiros lugares da plateia da sociedade. Dantes, se existia, passava despercebida, ocupava o fundo do cenário social; agora passou para a boca da cena, é ela a personagem principal. Já não há protagonistas: só há coro.” 

“ Quer-se que o homem médio seja senhor. Então não se estranhe que actue por si e ante si, que reclame todos os prazeres, que imponha decidido a sua vontade, que se negue a toda a servidão, que não siga ninguém docilmente, que cuide da sua pessoa e dos seus ócios, que se esmere no vestuário: são alguns dos atributos perenes que acompanham a consciência de potestade. Hoje vemos que se encontram no homem médio, na massa.” 

“ O poder público sempre foi assim quando exercido pelas massas: omnipotente e efémero. O homem-massa é o homem cuja vida carece de projecto e anda à deriva. Por isso não constrói nada, mesmo que as suas possibilidades, os seus poderes, sejam enormes.” 

“ Os privilégios da nobreza não são originariamente concessões ou favores, mas, pelo contrário, são conquistas. E, em princípio, a sua manutenção pressupõe que o privilegiado seria capaz de conquistar em qualquer momento, se fosse necessário e alguém lhas disputasse. Os direitos privados ou privilégios não são, pois, posse passiva e simples gozo, antes representam o perfil aonde chega o esforço da pessoa. Por outro lado, os direitos comuns, como os « do homem  e do cidadão», são propriedade passiva, usufruto e benefício puro, dom generoso do destino com que todo o homem se encontra, e que não corresponde a nenhum esforço, a não ser o de respirar e evitar a demência. Eu diria, pois, que o direito impessoal tem-se e o pessoal sustém-se.” 

“ Por outro lado, é ilusório pensar que o homem médio vigente, por muito que se tenha elevado o seu nível vital em comparação com o de outros tempos, vai poder reger por si mesmo o processo de civilização. Digo processo, já não progresso. O simples processo de manter a civilização actual é superlativamente complexo e requer subtilezas incalculáveis. Mal pode governá-lo este homem médio que aprendeu a usar muitos aparelhos de civilização, mas que se caracteriza por ignorar de raiz os próprios princípios da civilização.” 

Poderia continuar a citar o livro, enchendo páginas e páginas,  mas penso que esta pequena amostra chegue para vos dizer o que queria dizer: que  o filosofo madrileno, que foi o divulgador  de um certo pensamento aristocrático que ainda hoje prevalece e talvez tenha agora, com tudo o que se passa à nossa volta, sofrido um recrudescimento que, mesmo que se possa tentar compreender, não se pode aceitar, não podendo o autor continuar a ser o seu curador através dos seus escritos que têm,  por isso,  de ser lidos com espírito crítico, muito crítico mesmo, para não termos de ir para um céu que não desejamos.  

Talvez por estar a ler Ortega y Gasset reparei que os seus livros, junto com outros do Papa Francisco, de Bento XVI, de Irena Sganovska, de Javier Echevarria, de Francisco Fernández-Carvajal, de Frei Luis Granada, mas sobretudo de Jesus Herrero, os quais se dedicam à crítica e comentário dos livros de Gasset, mas também àqueles de Torga e de Sebastião da Gama, com um incursão negativa por Saramago, estão nas montras daquela loja de santinhos, como lhe chamo eu, há 40 anos na esquina da Marquês de Tomar com a Barbosa du Bocage, junto com dezenas e dezenas de artigos religiosos, imagens do São Expedito ao Santo Padre Cruz de Alcochete, estatuetas de todos os santos conhecidos, do Menino Jesus de Praga ao Santo Padre Pio de Pietralcina,  redomas protegendo taumaturgos vários, crucifixos, taos, terços, presépios e outros objecto de fé para crianças,  tudo recortado a laser em contraplacado fininho, velas e círios, registos todos feitos à mão - 110 euros o mais caro -, tudo isto à volta de uma fotografia, brinde de 12 tipo passe,  um pouco descolorida, de um Senhor bonito e bem posto que foi proprietário do estabelecimento até 1996, ano da sua morte com 77 anos, passando a gerência à sua Viúva, a Senhora Maria, hoje com 85 anos, que me disse que a morte do marido foi como se lhe tivessem tirado o ar, e à Fátinha, Filha do casal,  que me contou,  fixando-me com aqueles olhos lindos que tem, que o Pai era Doutor e foi Professor da Escola Machado de Castro, e que tem  um Irmão também ele Doutor,  mas advogado.  

São estas duas Senhoras as curadoras das poucas almas da Freguesia das Avenidas Novas que continuam a frequentar este templo do passado que, mesmo assim sendo, é importante para o presente porque é indispensável preservar tudo como elas o fazem numa loja que não pode morrer embora não venda nada de útil,  convidando eu os leitores a visitá-lo: entrem com curiosidade crítica e, vá lá, mesmo mórbida, porque sairão com algum pequeno tesouro que lá encontrem. Desses tesouros sobressaem os citados registos que, votados à adoração dos santos, são pequenos altares ou ex-votos que, para as proprietárias da loja e para aqueles poucos que talvez os comprem, são também espelhos-relicários da sua fé.  Chamei a atenção da Fátinha para o facto de um registo de Santo António ter a menção “Sto. António de Pádua”, o que visivelmente a incomodou, e a mim me fez arrepender mil vezes o reparo, tendo-me dito que era um lapso da senhora que os faz e que iria reclamar o imperdoável erro. Tive a tentação de comprar uma tabuinha com um anjinho da guarda papudo com asas e tudo que tinha escrito por baixo:  

          Anjo da Guarda
          Minha companhia
          Guarda a minha alma
          De noite e de dia.


No fim limitei-me a adquirir os santinhos que compõem a imagem de hoje, um português que não é santo (Cruz), um italiano santo de há pouco (Pio), e um luso-italiano santo de há muito (António). Comprei ainda outro, S. João de Brito com dois africanos semi-nus ajoelhados perante ele, com a seguinte legenda: “Quero mais os matos do Maduré que os Paços do Rei de Portugal”. Daqui em diante passarei a dizer a Loja das Santinhas. 

Lembrei-me agora que o nosso PR levou como oferta ao Papa Francisco, na sua primeira viagem ao estrangeiro, para além de paramentos litúrgicos desenhados por Siza Vieira, um registo de Sto. António que, pertencendo-lhe, fazia parte da decoração da sua casa. Marcelo Rebelo de Sousa, curador da fé através de um grande Santo adorado, e disputado, por duas Nações. Tenho de passar a curar-me com mais atenção, dispensando os serviços de  curadores externos, sempre com tendência para curandeiros. 

Abraço.

Lisboa, 24 de Março de 2016
Octávio Santos