quinta-feira, 14 de abril de 2016

Gosto, não gosto, muito, pouco, nada…


Gosto de me sentar para escrever depois de escolher bem a caneta adaptada ao teor do texto, verificar a cor da tinta, e certificar-me se é suficiente para o que tenho para dizer.

Não gosto de me sentar para escrever e constatar não ter nada de jeito para dizer, o que é notoriamente o caso de hoje.

Gosto de espalhar à minha frente, na mesa de trabalho, todos os jornais, revistas, recortes, notas e rascunhos que me servirão para copiar as coisas que vos impinjo.

Não gosto de comer nêsperas ao pequeno-almoço e ler na embalagem “Nisperas-Pequeños bocados de gran sabor”, quando, por insípidas que eram, só se distinguissem de batatas pela cor e pelos caroços.

Gosto de saber que a Zona Franca da Madeira não tem, nem de perto nem de longe, nada a ver com o que se passa nos outros off shores, Panamá incluído, simplesmente porque não é um off shore, e que as inúmeras empresas que lá se registam o fazem pelo clima ameno da ilha e pela Festa da Flor. De um romantismo desarmante.

Não gosto de saber que quem afirma o que reportei no parágrafo anterior, sabe de estar a mentir e que o faz por interesses pessoais. Lobo escondido a conselho do Estado.

Gosto de saber que há uma empresa produtora de videojogos - Molleindustria - que actuam como remédios homeopáticos contra a vigente idiota loucura dos tempos. Exemplos: “Tamatípico”, um tamagochi virtual que critica o trabalho precário, “Oiligarchy”, que põe a nu os meandros da indústria petrolífera, “Faith Fighter”, sobre a guerra das religiões, ou ainda “Pedopriest”, sobre a pedofilia na igreja católica. Pode-se dar ao polegar com utilidade.

Não gosto de saber que há milhões de chineses, especialmente de minorias étnicas de zonas rurais, os Miao, os Dong e os Yao, que estando à margem do desenvolvimento económico do país, estão a ser arquivados à força em arranha-céus em cidades onde não sabem viver e, por isso, votados a uma morte lenta, sem terem ao menos, para alívio do seu infinito desespero, um Mediterrâneo para morrerem ao tentar atravessá-lo.

Gosto de saber que não chegaram ainda a Portugal os vouchers de trabalho que já circulam aos milhões por essa Europa fora: o empregador vai aos correios, ou à tabacaria da esquina, e compra um voucher de 10 euros com que pagará uma hora de trabalho ao eventual trabalhador que, após a sua prestação e com o dito cujo devidamente obliterado, passa pelos mesmos locais de emissão levantar o fruto do seu trabalho que, após os descontos para a Segurança Social, para o IRS, para o Serviço Nacional de Saúde, para despesas burocráticas e para o legítimo lucro dos distribuidores, se reduz a cerca de metade. Tudo legal, como os off shores, transformando uma geração de precários numa de voucheristas, sempre rasca generation, para usar um anglicismo!

Não gosto que se ponham os meninos e meninas das escolas portuguesas a brincar ao faz de conta com as mochilas dos refugiados, e que o Senhor Presidente da República ajude a oficiar essa liturgia. Pareceu-me imoral, para usar uma palavra contida, ter de ouvir a menina Joana Vasconcelos dizer que meteria nela as suas jóias portuguesas, uns novelinhos de lã e agulhas para se entreter, esquecendo os tampax (Pocket Pearl, desta vez) para o caso de lhe apetecer fazer um lustre para iluminar o campo de Indomeni; bem os phones para ouvir música e os óculos escuros para ver o menos possível, sem esquecer uma mola da roupa para tapar o nariz que não suportaria os cheiros que reinam em todos os locais onde os verdadeiros refugiados se amontoam como animais, tratados sem respeito nem dignidade.  Acontece que a televisão nos mostra todas as desgraças, facultando-nos a banda sonora, mas não dá ainda para nos revelar os odores que, por si só, tornariam inabitáveis as nossas casas. Mas isso que importa às nossas “criancinhas” fofas e rechonchudinhas que têm as câmaras da televisão à disposição para debitarem as suas alarvidades?

Gosto de saber que se começou a escrever sobre aqueles que nos países ditos de acolhimento, estão a encher os bolsos com o negócio dos refugiados; mais lucrativo que o da droga, no dizer de alguém apanhado numa escuta telefónica. “Prophugopoli” foi o título do livro que encontrei, que trata de Lampedusa e da rede de traficâncias que daí irradia.

Não gostei de saber, pela boca de um especialista, que um dos orgulhos gastronómicos nacionais, o fumeiro, é um dos principais responsáveis pelas despesas com saúde pública neste país e pelos lucros da Servilusa. Mas vá lá um incauto cidadão repeti-lo nas feiras e feirinhas do Portugal em Directo! Traidor à Pátria seria o mínimo que ouviria.

Gostei, por falar em Lampedusa, do aspecto “gatopardesco” do Congresso do PSD: mudar tudo para que fique tudo na mesma. Desde a minha experiência búlgara que não via eleitos com 95%, mas pelo menos temo-los fora da circulação por uns bons quatro anos. A austeridade até a pachorra nos levou.

Não gostei de saber que os medicamentos que tratam o maior órgão do nosso corpo, que é a pele, não têm qualquer espécie de desconto ou merecem reembolso por parte de quem deveria tratar-nos da saúde. Como estão de moda os seguros de saúde para animais, é como se dos mesmos fossem excluídos os pescoços das girafas e as trombas dos elefantes, contemplando só os cérebros daqueles irracionais com eventual queda para a política, que não é uma espécie em vias de extinção.
 
Gostei, e partilhei, da indignação geral pela morte, por incúria médico-veterinária, da cadelinha Amélie de Maria João Bastos, que tendo sido internada numa clínica para uma destartarização com extracção dentária, acabou por morrer por motivos ainda não esclarecidos. Declarou a popular actriz que “os animais, tal como os seres humanos,  devem ser tratados com respeito e dignidade. São, e a Amélie era, um membro da família”. Entretanto foi instaurado um inquérito para apurar responsabilidades.
 
Não gostei de ouvir, após a morte do lutador português de Artes Marciais Mistas (MMA), João “Rafeiro” Carvalho, por lesões sofridas durante o combate que travou em Dublin com o atleta irlandês Charlie “The Hospital” Ward, seja o seu treinador Vítor Nóbrega - também responsável pelo Nóbrega Team – dizer que “foi uma fatalidade difícil de prever”, que “foram cumpridas todas as normas de segurança” e que “a arbitragem seguiu todos os procedimentos correctos e habituais”, seja o seu colega de equipa Filipe Catanho afirmar que as imagens que vimos do combate “são comuns” embora “possam parecer violentas” para quem não conhece a modalidade, acrescentando que os jovens lutadores “devem ter em atenção que ninguém deixou de jogar futebol quando Féher morreu”. Edificante, especialmente após o Ministro do Desporto da Irlanda ter declarado que “já tinha visto o perigo destas situações surgir há dois anos”, que “claramente existe um problema”, e que iria reunir-se com  os responsáveis da Agência Nacional do Desporto “para ver o que é possível fazer para regulamentar (A) este desporto”. Entretanto foi instaurado um inquérito (na Irlanda) para apurar responsabilidades.

Gostei muito de ter passado aqui  hora e meia a vasculhar papéis para desencantar estas coisas para vos contar, mas no fim…
 
…não gostei mesmo nada desta crónica por achar que os leitores teriam merecido muito mais, mas foi o que se pôde arranjar.
 
 A)  O MMA é uma modalidade de combate que mistura técnicas das mais variadas artes marciais, com reduzida protecção (luvas de dedo aberto, coquilha e protector bucal) e elevada violência, mas com linhas vermelhas que não podem ser ultrapassadas – cabeçada, dedo no olho, morder, puxar cabelo, beliscar, arranhar e cuspir no adversário, ataques à coluna e parte de trás da cabeça e joelhadas na cabeça de um adversário que esteja no chão (cotoveladas são omissas).
 
Abraço. 

Lisboa, 14 de Abril de 2016
Octávio Santos