quinta-feira, 28 de abril de 2016

Último retalho da manta do centenário, natureza não completamente morta, aqui relatada pelo cronista com a minúcia e precisão de um Fernão Lopes perseguindo empresa de navegação, desta vez em águas calmas, no metro do Lumiar à Praça da Figueira, com excursão automóvel a S. Pedro de Sintra.


A imagem já a estão a ver aqui a encabeçar esta crónica nº 100 e dizem que uma imagem vale por mil palavras, mas não neste caso porque me veio a gana de contar-vos tudo e então foi assim - e não acrescento “ prontos” por temer que o fim esteja longe -, estava eu a olhar para uma natureza morta do Goya numa exposição de pintura espanhola no Museu das Janelas Verdes, que representava uma mesa rústica com tudo em cima, como nozes e avelãs, rebuçados, um cesto com um pano de cozinha com ervas e ramos de cheiro, talheres oxidados, barros, faianças e vidros, umas cascas de caracóis e uns escaravelhos secos, e até um coelho morto. Com esta na cabeça calhei ver em casa uma caixa de madeira daquelas para uma só garrafa de Vinho do Porto, gravada a fogo com o nome do produtor, James R. Dow, levei-a ao Sr. Agostinho na Rua do Lumiar, dei-lhe as minhas instruções, e dois dias depois fui lá buscá-la transformada em mesa - não me deve nada, foi tão pouco, disse-me ele – que passou a ser a base daquela que seria a minha natureza morta em 3D, só não o sendo porque o Bernardo me deu a ideia de lhe introduzir uma planta viva num vaso com terra e tudo, hera trepadeira que tenho agora de regar todos os dias com uma colher de chá. 

E aqui começa o relato chato das diversas fases da “criação da obra prima”, e o rol de todas as peças que a compõem: Fui a um dos 50 chineses das Avenidas Novas e comprei uma tela de 60x40, e ao ferrageiro por baixo da minha casa (nem este nem o chinês aceitaram sponsorizar a obra pelo que não cito nomes) vindo de lá com um tubo de Pattex – Não mais pregos (estes pagaram); dividi a tela no sentido horizontal – 23 cm para baixo e 17 para cima -, pintei a parte inferior com tinta acrílica “amarelo vermelho de Nápoles” comprada no El Corte, colando-lhe a mesa em baixo à direita. A parte superior foi forrada a seda vermelha com flores-de-lis douradas, tiras de uma minha gravata Guy Laroche comprada há mais de 30 anos no freeshop do aeroporto de Viena. Começou então a minha peregrinação à Artspot, na Rua Alexandre Ferreira, paralela à Rua do Lumiar, aquela dos Inválidos do Comércio, e lá adquiri o que consta do rol abaixo:

Tabuinhas e perfis de diversas medidas, 4 molduras, uma cruz, duas cantoneiras, uma roda de leme e uma âncora e quatro rodelinhas furadas, tudo isto em madeira; 50 telhas, uma meia cafeteira, uma moldura, um violino e dois livros, estes em gesso; uma moldurinha redonda, uma bandeja, duas chaves e uma placa gravada “Feito à mão”, em metal, e ainda um espelho oval, um camafeu em resina, diversas tintas acrílicas, colorantes para madeira e diluentes. Munido de todo este arsenal, fui fazendo por esta ordem:
 

Pintei um perfil em ouro velho e colei-o a delimitar as duas zonas da parede de fundo; com umas tabuinhas tintas cor panga-panga (agora diz-se wengué) construí o soalho, com outras o tecto com barrotes à vista, tudo bem colado e pregado não vá a casa cair, e arquivemos já a parte de cima, aquela forrada a seda, que tem penduradas três molduras em ouro velho cada um com o seu quadro - “La Fornarina” de Rafael, a Guilhermina Suggia deste blogue, e um outro que não sei de quem é mas  que representa um batoteiro  a jogar as cartas com uma Senhora (sueca? refiro-me a ela, não ao jogo), uma moldura oval em estanho polícromado com o espelho, a cruz de madeira, meio ouro meio estanho, com um crucifixo colado em cima, este encontrado nas minhas coisas búlgaras, e uma prateleira apoiada em duas cantoneiras (tudo wengué), a qual suporta 3 naperons de linho e renda (depois explico quando descrever o cadeirão), uma concha de madrepérola com dentro um cestinho originário da Colômbia, que serve de ninho a um ovo de passarinho apanhado intacto numa rua de Lisboa, debaixo de uma árvore, estando ali como metáfora do seu próprio duplo  milagre, mais dois castiçais em estanho com velas, tudo encontrado nos acessórios de aniversário do El Corte, velas que só acendi para a fotografia porque queimam o tecto e lá se vai a obra para o maneta, mas  talvez o faça um dia durante um happening queimando tudo em directo para o You Tube, que receberia muitos likes, quanto mais não fosse dos milhares de pirómanos à solta neste país.

Aqui obrigo-me a revelar os outros fornecedores, porque a sponsorização assim o exige, com a respectiva lista de bens fornecidos:
 

-Do Hospital da Bonecas, na Praça da Figueira, 7, trouxe: um cadeirão em madeira, um gato de louça, um cestinho de verga, uma malga de faiança polícroma e dois pratos metálicos com os respectivos talheres. 

-No Horto do Campo Grande, em São Pedro de Sintra, encontrei um vaso em faiança, o seu prato recolhe água, em plástico, um vaso com uma hera anã e uma bobeche de vidro transparente com filete dourado.

Disto isto passemos à mesa que vamos dividir em parte de cima e parte de baixo. A parte de cima foi coberta com uma toalha feita de um pano bordado que uma amiga brasileira, já falecida, nos ofereceu em Sófia nos anos 80 do século passado. Sobre a mesa temos um vaso de faiança, comprado branco no El Corte e decorado por mim, a azul e ouro velho, com motivos vitícolas copiados de uma chávena de café “Made in USSR”, vaso que contém um ramo de flores secas naturais que uma florista do Mercado do Saldanha me ofereceu, mais uma flor de orquídea seca em casa. À volta do vaso temos, da direita para a esquerda, a meia cafeteira e uma caneca de estanho, sendo esta última o primeiro dedal da Manuela quando a Mãe começou a ensiná-la  a costurar, com uma asa que lhe inventei, o cesto de verga forrado com um tecido aos quadradinhos tirado de uma embalagem de camembert, com pão verdadeiro feito em casa, 4 rebuçados sendo 2 do Dr. Bayard, um pratinho de metal, com um naperon de renda, com um bolo que vinha na “Galette des Rois” que comprámos este Natal na L’Éclair da Av. Duque d’Ávila, um outro pratinho idêntico, vazio, com os talheres ao lado, uma malga polícroma também vazia (que se pode encher de quinoa ou bagas goji), uma estrela-do-mar, uma casca de mexilhão e outras conchinhas, bivalves e búzios, uma moldura, azul e ouro, com uma “Cabeça de Velho” de Dürer, alternativa ao rinoceronte por ele imortalizado, que não era mais que aquele que D. Manuel I mandou ao Papa Leão X, e acabou por morrer afogado ao largo de Génova, porque a sua gravura é horizontal e o Velho é vertical (os velhos são quase sempre verticais), um prato de vidro (a bobeche) com laranjas bonsai e kunkuates secos, uma garrafa de Fernet-Branca e outra forrada a palha, que contém essência de alfazema “Spiritual Sky”, nunca aberta, oferecida em Sófia por uma outra amiga brasileira, esta felizmente ainda viva. Na parede sobre a mesa está pendurada a moldura metálica com o camafeu. E vamos para baixo da mesa. 

E aí vemos, levantando a borda da toalha, da direita para a esquerda: um atado de lenha, uma bilha (roubada ao presépio), uma pinha, uma bandeja metálica com romãs anãs secas, da nossa varanda, um pedaço de madeira fóssil apanhado na praia, uma lasca de xisto alentejano, uma roda de leme e uma âncora, um caixote feito de uma embalagem de camembert, com frutos secos de roseira brava do Jardim da Gulbenkian, duas telhas que sobraram do telhado, um ramo seco de malvas e pinhas e, por fim, um balde de madeira (também roubado ao presépio) com um botão de rosa seco.

Acabada a mesa, temos no espaço livre ao seu lado, na parede, um Sto. António com o Menino em, digamos, azulejo, e duas chaves penduradas. A cobrir parte do chão um tapete feito com uma minha outra velha gravata, esta de Roma, “Antiche Seterie Fiorentine”, tendo como trama e franjas um pano subtraído de uma das gavetas da cozinha. À esquerda a invenção do Bernardo, ou seja, o vaso com a hera, chamando a atenção para o seu bordo forrado com uma parte do mesmo pano de cozinha do tapete e para a sua decoração em losango, pedaço que sobrou do original bordado da toalha da mesa. No chão, um violino e o seu arco, um livro de pautas musicais, um gato que brinca com um novelo de lã vermelho e um livro aberto, vermelho e ouro, que ficou esquecido junto a uma das pernas do cadeirão que, por si só merece um capítulo especial. 

Cadeirão que comprei forrado e estofado à porca janota, como diria a Dona Lilita do Café Correia de Vila do Bispo. Atirei-me a ele, arranquei tudo, forrei a parte exterior com  o avesso da minha gravata Guy Laroche,  recheado de discos de microfibra de algodão daqueles com que as Senhoras limpam tudo o que lhes apetece pôr na cara; para o assento e as costas, que sofreram o mesmo tratamento, enchimento de algodão e tudo, usei o tecido que passo a descrever. Nos casamentos em Itália, e agora também em Portugal, é costume oferecer-se aos convidados, e também aos amigos e conhecidos que contribuem para a “Lista de Casamento”, as chamadas bomboniere, que não passam de uma pequena lembrança para assinalar o evento. Quando a minha colega da Embaixada em Roma, Berenice Rossini, se casou com um tal Ferdinando – eu gozava com ela por casar com um gerúndio -, a bomboneira que recebemos foi um saquinho de linho cheio de amêndoas de Sulmona, com uma renda e o monograma “F B” bordado, e foi desse saquinho que nasceu todo o estofo da cadeira, assento e costas, mas também os 3 naperons da prateleira e aquele do prato do bolo.

E agora só faltam poucas coisas, a saber: os óculos que a Senhora da casa deixou na cadeira, feitos de fio eléctrico, a malha que estava a tricotar, que é um pedacinho de umas calças de pijama velhas com dois alfinetes cabeçudos subtraídos da caixa da costura, e um haltere de 20 kg, escondido atrás do vaso com a intenção de, juntamente com a âncora e a roda do leme, lançar a dúvida sobre se a dona da casa será mesmo uma velha Senhora ou um marinheiro reformado. 

O remate final são as telhas, todas pintadas à mão com diversas misturas de acrílico amarelo, vermelho e branco, umas ervas que entretanto passaram do ramo de Domingo de Ramos para o telhado, e a placa gravada “Feito à mão”, em baixo à esquerda. Um dia terá uma moldura iluminada, uma abóboras no telhado em homenagem ao romance homónimo de Mestre Aquilino Ribeiro, ficando os ninhos de andorinha para mais tarde, andando eu neste momento a tentar capturar uma aranha para que, caso aceite residir na casa, me teça uma teia debaixo da mesa. 

Abraço.

Lisboa, 28 de Abril de 2016
Octávio Santos