Hoje vou tentar matar dois coelhos com uma cajadada. O primeiro já eu andava a perseguir desde a abertura deste espaço: pedir a leitores amigos o favor de ciclicamente atenuarem o eco que dentro dele ressoa, pelo vazio resultante da falta de frequência, escrevendo sobre um assunto que dominem, dando-lhe assim um motivo de interesse e ajudando-me a mantê-lo vivo. O segundo, veio-me ao lembrar-me de uma rubrica das Selecções da Reader’s Digest, intitulada “Meu tipo inesquecível”, em que o autor falava de alguém que o tinha tocado particularmente, e é por isso que hoje vou relembrar a pintora búlgara Lika Yanko.
Como sabem, servi na Embaixada de Portugal em Sófia, como Encarregado da Secção Consular, de Junho de 1975 a Dezembro de 1987, e durante esses doze anos e meio, para além das tarefas inerentes ao cargo, andei a arredar cortinas (de ferro) para ver se descobria coisas escondidas. E uma dessas “coisas” foi a Lika, que visitei inúmeras vezes na sua casa/atelier no Boulevard Dondukov, mesmo no centro da Sófia.
Lika
Yanko era - faleceu em 2001, com 73 anos - de origem albanesa, tendo nascido em
Sófia em 1928. Entrou aos 15 anos para a Academia das Artes, onde estudou
pintura na classe do Professor Detchko Uzunov, admirável mestre que, apesar
disso, não a consegue encarrilar nos
cânones vigentes, ou porque o espírito
de Van Gogh a habitasse, ou pela sua incapacidade de ajustar o seu estilo
original aos então requisitos da arte oficial que a obrigavam, a
ideologicamente correctos retratos de operários e camponeses, cenas de heróicos
actos militares ou a pujantes paisagens industriais. O certo é que acabou os
seus estudos artísticos com a menção de suficiente.
Começando
por exprimir livremente - terrível crime de lesa socialismo - o que a sua alma
poética lhe transmitia às mãos, Lika Yanko preenchia as suas telas com
conteúdos mitológicos, bíblicos ou fantásticos, sempre de uma originalidade
absoluta, ressuscitando arquétipos tais como o Sol e o amor, a Anunciação e a
maternidade, a fé e a esperança, Orfeu e Eurídice, Cristo e os Apóstolos, o
auto-sacrifício e o destino, o mundo do circo, jardins de delícias, o homem e o
mar, pescas milagrosas ou menos, enfim, o Universo. Utilizando materiais como
redes, cordas e guitas, seixos e vidros coloridos, botões, molas e colchetes,
ferragens minutas ou pequenos acessórios de cobre de uso eléctrico, que
misturados sabiamente nas telas com tintas e vernizes, transformavam-se, por
magia de uma alquimia muito sua, num todo com vida própria, poética e simbólica,
transmitindo-nos a sua energia espiritual em obras que, respeitando as
tradições bizantinas que impregnavam a velha pintura búlgara, fazem dela uma
moderna recriadora de ícones sagrados, ou atrevendo-se pelas tendências da sua
época, uma notável intérprete de um vanguardismo ocidental Europeu.
A sua
primeira exposição individual teve lugar em Sófia em 1967, tendo sido encerrada
seis dias depois; acusada de vanguardismo, formalismo e falta de disciplina, o
seu nome foi considerado tabu, estando proibida de mostrar os seus trabalhos
até 1981, ano em que Ludmilla Jivkova, então Ministro da Cultura, autorizou
novamente uma exposição das suas obras, fruto da
sua condição de Filha do ditador Todor Jivkov, que a mantinha imune aos ataques
dos cães de guarda do regime, imunidade que lhe custou cara, tendo falecido aos
37 anos, nesse mesmo 1981, em condições nunca bem esclarecidas.
Em Março
de 2013, por ocasião dos 85 anos do seu nascimento, foram expostas numa galeria
em Sófia, com um enorme êxito, 23 das suas obras, tendo alguém dito que se
tratava de uma das mais expressivas artistas búlgaras do século XX.
Ora,
durante os últimos dos seus 14 anos de ostracismo e segregação, e também depois
da sua reabilitação, que acabou por ser minimizada pela morte da sua “patrona”,
tive o privilégio de frequentar, como já acima referi, a casa/atelier de Lika Yanko, de adquirir
algumas das suas obras que guardo ciosamente, e de me ter tornado seu amigo,
como são prova os inúmeros trabalhos que ofereceu aos meus Filhos e pelo
episódio que passo a descrever:
Na
sala onde nos recebia, tinha muitos dos seus quadros nas paredes e, entre eles
um, enorme, representando o sistema solar com todos os seus planetas, obra
magnífica que, pelas palavras secas da Lika sempre que alguém se propunha
adquiri-lo, não estava à venda. Uma das pessoas que mais insistentemente
perguntava quanto quereria ela para o vender, era a Embaixatriz de França,
Madame Le Breton (mais tarde Embaixatriz em Lisboa), que recebia sempre a mesma
resposta: - Este quadro não está à venda! Acontece que numa das minhas últimas
visitas à Lika, senão a última para dela me despedir, ela subiu numa cadeira,
retirou a tela da parede e, estabelecendo um preço modestíssimo, entregou-mo
dizendo que o quadro era meu. Está hoje em Paris em casa da minha Filha
Margarida.
Antes da
sua morte, Lika Yanko doou 82 das suas obras à Sofia City Ar Gallery, onde se encontram em exposição permanente,
e quadros seus são propriedade de inúmeros diplomatas ocidentais que, tal como
eu, depois de arrumarem o carro em posição discreta ou em rua paralela, visitavam
“às escondidas” o antro de produção de maravilhas que era aquele 1º andar do
Boulevard Dondukov, onde éramos recebidos pela Lika, que falava pouco, pela sua
irmã Denka, que falava muito, e ouvindo uma voz misteriosa que provinha de um
quarto a que não tínhamos acesso, e que, no dizer das manas, era Maman que estava sempre reclamando
qualquer coisa. Não tendo os visitantes alguma vez visto tintas, pincéis,
cavaletes e outras ferramentas da arte, com excepção de uns frascos de verniz
que apanhavam a luz do Sol directamente de uma janela, afirmava uma Embaixatriz
de Portugal que a pintora era a personagem misteriosa escondida e que, tanto a
Lika como a Denka eram apenas marchands
d’art que vendiam as obras da soi-disant
Maman. Para adensar este mistério, as fotos que se encontram na net como se de Lika fossem, são, e sou eu
a jurá-lo, de Denka, porque a Lika, e sou sempre eu a jurá-lo, é aquela que
aparece no quadro com um cão pela trela, que vi durante anos pendurado na sua
sala e que também não estava à venda.
Abraço
Abraço
Lisboa, 2 de
Janeiro de 2014.
Octávio
Santos