Aprende-se sempre.
Para tentar perceber alguma coisa fui ver o filme “A Queda de Wall Street” e lá
pesquei mais alguma coisa da tramóia daquela dúzia de idiotas fechados, que o
excessivo poder do dinheiro transformou, na ausência de autoridade, pela via
verde da nossa ignorância, em bando de perigosos criminosos à solta. Os quais,
afirma-se no filme, odeiam os poetas, que por seu lado, os detestam. Nesta conformidade,
Umberto Eco foi o seu contrário (era também poeta), já que utilizou o máximo de
autoridade, com o mínimo de poder, para nos tornar menos ignorantes. Filósofo,
semiólogo, ensaísta, escritor, eu diria, um homem curioso que soube ler o
mundo, interpretando-o para nos oferecer qualquer coisa nos antípodas daquilo
que nos “deu” a freenança tão bem
retratada no filme, isto é, a estrada justa para pensarmos e agirmos por nós
próprios. E aqui volto às coincidências que ultimamente me atenazam, porque Eco
viu durante anos, da janela do seu apartamento de Milão, onde viria a falecer,
o Castelo Sforzesco, cenário daquilo que foi a sua exaltação, porque me parece
redutivo e pífio chamar-lhe velório quando a música, por ele escolhida, foi o
“Elogio da Loucura” de Arcangelo Corelli, música que ele próprio tocava na sua
flauta ao serão com os amigos, muitos dos quais o vieram recordar. Gostaria
muito de saber o que escreveria ele sobre este facto e em que termos o faria,
ele que, para além de ser o grande mestre da interpretação dos sinais era senhor
de uma ironia infinita.
Quando escrevi no
título “Sto. Agostinho, Eco, Lourenço…” não tinha em mente qualquer ligação entre os
três; tendo sido uma espécie de impulso, tenho agora de tecer a trama para não
ter de o mudar ou para que o mesmo arrisque não fazer sentido, como para mim
não faz sentido, na minha falta de saber, o título do último livro do mestre,
acabado dois dias antes da sua morte (a), “Pape Sàtan Aleppo”. De Sto.
Agostinho, pensando em Eco, saltaram-me logo ao caminho estas confissões do santo:
“Quando ganhei mais
coragem, afastei de mim aquele denso nevoeiro e convenci-me de que se deve
acreditar mais nos que ensinam no que naqueles que mandam”.
“Tudo o que for insuficiente ou excessivo, porque desprovido de medida,
encontra-se submetido à indigência. A sabedoria é a medida da alma”.
De Eduardo Lourenço,
que, se não fosse por mil outras coisas, teve o mérito de nos explicar os
porquês de sermos como somos, fazendo com que um povo mais propenso a acreditar
nas fáceis e aliciantes verdades das “Wall Street”, do dinheiro ou da grandeza,
todas falsas, comece a considerar e a rever-se naquelas de Eco que, em
Portugal, podem ser aquelas de Jorge de Sena ou José Augusto França, ressalto os
dois textos abaixo:
“ Os portugueses vivem em permanente representação, tão
obsessivo é neles o sentimento de fragilidade íntima inconsciente e a
correspondente vontade de a compensar com o desejo de fazer boa figura, a
título pessoal ou colectivo. A reserva e a modéstia que parecem constituir a
nossa segunda natureza escondem na maioria de nós uma vontade de exibição que
toca as raias da paranóia, exibição trágica, não aquela desinibida, que é
característica de sociedades em que o abismo entre o que se é e o que se deve
parecer não atinge o grau patológico que existe entre nós”.
“Os portugueses não convivem entre si, como uma lenda tenaz o
proclama, espiam-se, controlam-se uns aos outros; não dialogam, disputam-se, e
a convivência é uma osmose do mesmo ao mesmo, sem enriquecimento mútuo, que
nunca um português confessará que aprendeu alguma coisa de outro, a menos que
seja pai ou mãe…”.
Estudioso da língua,
questão que para ele continuava aberta, ousando classificar a escolha de Dante
(língua toscana tornada italiana) como uma “confusa veleidade vanguardista”, dizia que na língua
nada é inocente e tudo é política, até na pontuação: “A Itália é uma república
fundada nas reticências” dizia, parodiando o artigo 1º da constituição “A
Itália é uma república fundada no trabalho”. Por cá poderíamos dizer fundada na
inveja e na falta de vergonha, e já não tanto no parece mal, porque parece que
já tudo parece bem. Eco, que em jovem foi dirigente da acção católica e
escolheu S. Tomás de Aquino para a sua tese, admitiu a sua “definitiva
apostasia” de qualquer fé religiosa a começar por aquela católica, trocando a
apologia do catolicismo por aquela do relativismo ateu. Não sabia, no entanto,
explicar as razões da sua perda de fé: “Foi com se se interrompesse um circuito
eléctrico”. Posso atrever-me a apontar-lhe uma incoerência quando afirma,
referindo-se à morte, que “Para lá daquelas portas de bronze é o caos, a
escuridão. Ou então o Nada, um deserto plano e desolado, sem fim”, declarando
pouco tempo depois que “no além se poderia vir a entender com Jesus”. Não é
obrigatório gostar de Eco, mas é uma pena não gostar de Eco, e isto foi-me
sugerido por Eduardo Lourenço que disse sobre Pessoa:
“Uma pessoa não se pode fixar na ideia de que é obrigatório
gostar de Pessoa. O Eça de Queirós tem uma página admirável sobre o homem que
não gostava da Gioconda. O meu amigo Vasco Graça Moura é o homem que não gosta
de Pessoa. Tal como a personagem de Eça não gostava da Gioconda. Não é
obrigatório gostar da Gioconda. Mas é uma pena não gostar da Gioconda.”
A influência de Eco
no pensamento ocidental nos últimos 50 anos foi talvez tão importante como a de
Sto. Agostinho em todos os séculos anteriores, salvo as devidas proporções e
por vias opostas. Sto. Agostinho declarou “lamentar em particular a sua aproximação inicial à filosofia
pagã, a qual jamais pode levar o homem à verdade como faz o cristianismo”, enquanto Eco, já vimos acima, trocou a “Cidade de Deus” pela
“Cidade dos Homens”. Dizia ele que “nós somos a nossa memória. Se alguém perde
a memória torna-se um vegetal e deixa de ter alma. Mesmo do ponto de vista de
um crente não penso que o inferno faça sentido se lá se chegar sem memória. O
sofrimento consiste em recordar o mal que se fez". Sto. Agostinho no “Milagre da
Memória” diz:
“Há imagens que acodem à mente facilmente e em sequência
ordenada à medida que são chamadas, as primeiras cedendo lugar às seguintes, e
desaparecem, para se apresentarem novamente quando eu quiser. É o que sucede
quando conto alguma coisa de memória. Ali se conservam também, distintas em
espécies, as sensações que aí penetram cada qual pela sua porta: a luz, as
cores, as formas dos corpos, pelos olhos; toda a espécie de sons, pelos
ouvidos; todos os odores, pelas narinas; todos os sabores, pela boca; enfim,
pelo tacto de todo o corpo, o duro e o brando, o quente e o frio, o suave e o
áspero, o pesado e o leve, quer intrínseco como extrínseco ao corpo. A memória
armazena tudo isso em seus vastos recessos, em suas secretas e inefáveis
sinuosidades, para lembrá-los e trazê-los à luz conforme a necessidade. Todas
essas imagens entram na memória por suas respectivas portas, sendo ali armazenadas.
Tudo isso eu guardo na minha memória, assim como o modo pelo qual o aprendi.
Também guardo na memória as muitas argumentações infundadas que ouvi contra
essas verdades. Essas objecções sem dúvida são falsas, mas não é falso
recordá-las. E lembro-me de ter sabido distinguir entre essas verdades e os
erros que se lhe opunham. Vejo agora que uma coisa é essa distinção, que faço
hoje, e outra o recordar ter feito muitas vezes tal distinção, ao considerá-las.
Lembro-me, portanto, de ter muitas vezes compreendido isso, e confio à memória
o acto actual de distingui-las e compreendê-las, para me lembrar, mais tarde,
de que hoje as compreendi. Lembro-me então de que me lembrei; e se mais tarde
lembrar de que agora pude recordar estas coisas, será ainda por força da
memória.”
Não é obrigatório gostar de Sto. Agostinho, mas é uma pena não
gostar de Sto. Agostinho, diria Eduardo Lourenço que, a propósito de memória se
distraiu de si para se recordar de coisas mais altas, senão leiam:
“Estive sempre ao lado da minha vida
distraidamente longa. Nunca estive atento. Vendo bem, vivi em dois registos.
Como se a vida real não me dissesse respeito. Sempre a fingir que não estava
lá, para não estar onde estava. No fundo sou pouco sério.”
“Tenho uma grande memória do
simbólico. O mundo real é o mundo da poesia e da ficção. Há um diálogo
constante com o que leio ou li. Com os livros e as personagens. São a minha
família secreta.”
De Umberto Eco, que no segundo ano do liceu fundou uma revista
intitulada “Não tenho vontade de estudar” onde, para além das suas reflexões,
metia os seus desenhos e caricaturas, escreveu Nuccio Ordine, professor de
literatura italiana e filosofia: “O desaparecimento de Umberto Eco deixa um
vazio que não se pode preencher. Agora ficamos mais sós sem Umberto, sem a sua
amizade. O seu bom humor, e as suas anedotas contadas mesmo durante as ocasiões
mais sérias e os eventos mais formais, vão fazer-nos falta, como nos vão fazer
falta a sua auto ironia e os seus contundentes comentários sobre os desvios
culturais e políticos.” E é pegando nas suas anedotas que quero acabar esta
crónica. O seu amigo Moni Ovadia, actor, escritor, compositor e cantor
italiano, nascido na Bulgária de pais hebreus sefarditas, foi um dos que falou
na cerimónia de despedida de Umberto Eco no Castelo Sforzesco, tendo lembrado
que a cada encontro trocavam entre si as últimas anedotas ouvidas, tendo mesmo
contado a última que tanto tinha feito rir Umberto, e que não repito aqui por
ser longa como todas as anedotas de judeus. Lembrei-me então, e porque Eco foi
cremado, se por um bambúrrio da sorte o tivesse encontrado lhe teria contado
aquela do alentejano que morre e a Mulher vai à loja que vende tudo da sua
terreola, onde compra todas as embalagens de creme Nívea disponíveis nas
prateleiras, o que espantou o tendeiro que não resistiu a perguntar-lhe: “ - Mas
p’ra que raio é que quer tanto creme? - Ao que a recém viúva retorquiu: - É que
o meu homem morreu e pediu para ser cremado!” Fico a imaginar o Eco a rir-se
por trás da barba, que usava, dizia ele, para esconder a fealdade, e a dizer-me
que no seu caso, já que era piemontês, seria cremado com Nutella!
Para acabar de maneira séria e não dizerem que levo tudo para a
galhofa, lembro, a propósito do filme que fui ver, que Eco escreveu no seu
ensaio “Construir o inimigo” : “Para manter o povo sob controlo, é necessário
inventar constantemente inimigos, e pintá-los de maneira a inspirarem medo ou
repugnância.”. No filme é dito expressamente que hoje os inimigos são “os
pobrezinhos e os emigrantes”.
a) Ao folhear a revista “L’Espresso” de 25/2, dei com isto na página 4:
«A rubrica semanal “A Carteirinha de Minerva”, de Umberto Eco, não é publicada por
uma indisposição do autor».
Abraço.
Lisboa, 3 de Março
de 2016
Octávio Santos
P.S. - Já me tinha
referido a Umberto Eco na minha crónica de 24/9/2015; hoje, após a sua morte,
voltei ao mestre, mas o que deixei por escrever não pode ser guardado só para
mim e, por isso, vai ser novamente objecto da(s) minha(s) próxima(s) crónica(s),
pedindo desde já desculpa pela monótona insistência.