Sei que em 1962 ainda não tinha televisão em casa porque me recordo
de ter parado em frente da montra de uma loja de electrodomésticos na Rua
Augusta ou Áurea – ou talvez na Rádio Victória, candeeiros bem bonitos,
modernos, originais, compre-os na Rádio Victória não se preocupe mais, porque
na Rádio Victória, Embaixada do bom gosto, quem lá vai é bem servido e sai
sempre bem disposto -, a ver, por cima do ombro de outros como eu, os últimos
dramáticos minutos da final da Taça dos Campeões Europeus, em Berna, durante os
quais o Benfica sofreu a bom sofrer para aguentar aqueles 3 a 2 contra o
Barcelona, que tanta alegria e orgulho nos deu. Depois chegou também o desejado
aparelho, um NordMende, mas até esse momento a minha janela para a cidade (o
meu Mundo) era aquela da casa de jantar da Travessa do Moínho de Vento, 23, que
dava sobre a Quinta do Tobias e o cosmos humano que a mesma abrigava (ver a minha crónica de 3/4/2014), e os campos verdes com ovelhas a pastar que existiam onde depois
se abriu a Avenida Infante Santo até à Cova da Moura. Pois dessa janela, antes
e depois dessa abertura, ia vendo o meu Mundo, gravando o que nele se passava e
fazendo juízos sempre pessoais, mas nem sempre correctos, de quanto ia
acontecendo diante dos meus olhos.
Ia também ao cinema de vez em quando, ao Paris (hoje, que
vergonha!), ao Europa ou ao Cinearte, raramente aos grandes, Império, S. Jorge,
Condes, Éden, Politeama, Monumental, Odeon, etc…, mas o que ali via com
desmesurado encanto, desdenho ou terror – lembro-me de ter visto “As
Diabólicas”, para maiores de 18 anos, apenas com 12 – era de tal modo distante
da minha realidade que me influenciaram tanto como hoje a visão de “Avatar” ou
de “Terminator”. Quando não havia “telenovela” entre os membros da fauna que me
passava debaixo da janela, ou não havia o semanal espectáculo de Robertos, os
carros que desciam o tobogan da Rua de Sant’Ana, virando depois à esquerda para
a Tenente Valadim que era um beco contra o muro do Hospital da Estrela (até já
esse se foi!), seguindo em frente em direcção à Rua de Buenos Aires ou, mais tarde,
virando à direita para a nova Infante Santo, raramente não pretos, a esses
conhecia-os todos por marca, modelo, origem e motor, tendo feito, calculem,
desafios de contagem por marcas, ganhos a partir de certa altura, sempre e com
grande diferença, pelo Carocha, e antes dividindo a vitória entre o Opel, o
Ford, o Austin, o Morris, o Renault, o Peugeot, o Chevrolet e o Fiat, poucas
vezes pelo Citroën, o DKW ou o Simca,
nunca pelo Javelin, o Volvo, o Alfa Romeo, o Jaguar, o Sunbeam Talbot, o
Mercedes ou o MG; o Japão, com os Toyota
e Datsun chegou depois, e a Coreia, com os Hyundai e KIA, já eu não era “português”.
Em momentos de acalmia, durante os quais nem os “rapazes da rua”
desciam a Rua de Sta’Ana com os carrinhos de esferas, nem o Alfredo maluco dava
as suas correrias espalhando nuvens de perdigotos com a imitação do barulho da
moto idealizada, nem a preta das alfaces apregoava a sua fresca mercadoria,
acontecia-me adormecer e prolongar pelo sonho o espectáculo da vida. Ainda
hoje, quando desperto noite funda a meio de um sonho, tenho vontade de me
levantar para tomar notas sobre o mesmo a fim de não o esquecer, acabando
invariavelmente por não o fazer, chegando de manhã sem qualquer memória e
zangado comigo mesmo pela falta de força de vontade que tanto recomendo aos
outros. É por isso muito estranho que ainda hoje me recorde de dois sonhos que
fiz há mais de 50 anos, diante daquela janela, sentado no único cadeirão que
existia na casa de jantar, e vou agora registá-los para não arriscar
perder-lhes o tema e a trama. É curioso que, referindo-se ambos à construção de
uma casa, possam ter condicionado a minha ambição juvenil de me tornar
arquitecto, felizmente nunca concretizada já que corria o risco de nunca acabar
qualquer projecto.
1º Sonho
Um homem jovem começou a construir uma casa pelo telhado e, das duas uma, ou os
sonhos são fantasia ou anjos lhe seguravam as telhas com fios invisíveis; a
casa foi nascendo, depois das telhas seguiram-se as traves do telhado, a
chaminé, o tecto, as paredes com vãos para janelas e portas, o soalho e a laje
que o sustentava, mas não os alicerces porque o homem se descobriu incapaz de
os construir. Diante da casa, que levitava a um metro da terra, o homem subiu
por uma escada que apoiou à entrada da porta e entrou em casa, tendo-lhe
agradado o que viu e, sobretudo, estar nela, pelo que começou a enchê-la com
tudo aquilo que uma casa precisa, móveis, roupas, livros, pessoas, louças,
banheira, fogão e outros pertences sem os quais uma casa não seria uma casa.
Instalou-se e nela viveu como se fosse natural viver numa casa suspensa sem
alicerces, mas onde incrivelmente tudo funcionava sem que ninguém desse pela
extraordinária manutenção daquele estado de coisas. Então acordei e, embora
tente ainda hoje encontrar uma explicação para o estranho sonho, nada me ocorre
que jeito tenha e arquivo tudo na conta dos sonhos que, por definição, não
pertencem à vida real. Ponto final.
2º Sonho
Um homem começou a construir uma casa como mandam as regras. Abriu
os caboucos e neles começou a assentar os alicerces. Terminados estes, percebeu
que não tinha conhecimentos nem ferramentas para começar a levantar as paredes
e ali ficou diante da obra a magicar como havia de resolver o problema que lhe
impedia continuar a construção da casa. Entretanto, tentava encher o espaço com
tudo aquilo que uma casa precisa, móveis, roupas, livros, pessoas, louças, banheira, fogão e outros
pertences sem os quais uma casa não seria uma casa, mas percebeu que nada disso
era possível. Então sentou-se junto dos alicerces da sua casa, que queria
perfeita e equilibrada, e ficou ali à espera que um milagre acontecesse. Então
acordei e, embora tente ainda hoje encontrar uma explicação para o estranho
sonho, nada me ocorre que jeito tenha e arquivo tudo na conta dos sonhos que,
por definição, não pertencem à vida real. Ponto final.
Abraço.
Lisboa, 6 de Agosto de 2015
Octávio Santos