Alguém lhe pousou ao
de leve uma mão no ombro e ele voltou a cabeça, entre o intrigado e o
aborrecido, pensando que mais alguma lhe iria acontecer naquela Avenida, e viu
um jovem sorridente e manso que apenas lhe disse: - Vem! Levantou-se e seguiu-o,
a ele que se dirigia ao seu Tuk-Tuk destes que emprestam a Lisboa um ar de
Bangkok comprado no chinês, e sentou-se sem nada perguntar. Ergueu o olhar à
direita e viu-a descer do Elevador da Glória e, ocupando todo o seu ângulo de
visão com a sua saia de chapéu-de-sol, encaminhar-se lentamente, como uma diva
no tapete vermelho do Festival de Veneza, na direcção da traquitana. Ele
susteve a respiração lembrando-se da última vez que se encontraram, o pintor
morto por terra, ela numa ascensão para a liberdade, ele inerte, carregado de
todos os dons recebidos durante a sessão de pose para a “Última Tela de Picasso”.
Fechou os olhos e
pareceu-lhe ouvir uma voz ciciada ao longe: - Faz-nos sonhar! Inclinou-se,
abriu a porta do “seu descapotável” não sem receio de lhe ouvir: - Se fosse há
20 anos teria aceite a boleia…, mas ela entrou sem nada dizer, compôs o largo
círculo da sua saia e ordenou ao jovem, com uma doçura que temia perdida,
que rodasse à toa por Lisboa, mas rápido porque o tempo que lhe fôra concedido
era escasso. Arrancou aos solavancos com um barulho de assador de castanhas,
uma parvoeira completa, e eles mais não fizeram que dar-se as mãos e,
finalmente, olharem-se nos olhos. Num encantamento que apagou a noção da viagem
e dos locais percorridos à pressa, dos Restauradores ao Comércio, da Sé às
Portas do Sol, da Graça a Santa Clara, dos Barbadinhos a Sapadores, da Penha de
França à Fonte Luminosa, do Chile à Figueira, do Rossio à Anunciada, ele, que
tanto, tanto tinha para dizer, sussurrou apenas: - És o meu amor pequenino, ao
que ela respondeu, com aquele sorriso que confere verdade a tudo: - Tinha de
voltar porque és o meu oxigénio; lá sufoco! Sustiveram ambos a onda de palavras
que se entrechocavam na garganta como cavalos diante da mossa no Pálio de Siena, e sentiram-se como se estivessem no meio
de uma multidão tornada de repente transparente, ou solitários na última fila de
um cinema cheio a deitar por fora.
E mais nada. Mesmo
que ele soubesse tocar braguesa, concertina ou cavaquinho, e o jovem tivesse, por
milagre, um ali à mão, ele não lhe poderia mostrar a sua arte porque uma só
pessoa não forma uma roga. Nem um beijo trocaram. Ao sol da Rua da Palma (onde
eu um dia encontrei a minha alma, dizia o fado), ela notou que ele não estava
bem, tirou os sapatos, subiu para o assento e começou a rodopiar com tal
ligeireza e velocidade que transformou a sua saia num verdadeiro chapéu-de-sol
para o cobrir dos seus raios. Feita sombra, ele abriu os olhos ainda feitos à
luz, olhou em redor e para cima e, sentindo a engenhoca a elevar-se no ar pela
força do vórtice, como se da Passarola de Frei Bartolomeu de Gusmão se tratasse,
percebeu qual a verdadeira e justa arquitectura da perfeição deste mundo, risco
sublime da mão de Deus.
Quando o Tuk-Tuk
parou no Largo da Anunciada, ele agarrou-lhe o rosto com ambas as mãos,
aproximou o seu do dela, ouvindo-a dizer: - Não podes dar-me o beijo que ambos
desejamos porque o contrato de liberdade provisória assim o exclui, mas, mesmo
se longe, estarei sempre contigo. Abriu a portinhola, desceu e dirigiu-se ao
Elevador do Lavra, sempre com aquele passo de rainha, entrando nele sem se
voltar, como aconteceu no dia da sua ascensão. Ele estremunhado, deixou a “Nau
de nha ilusão” e, com música nos ouvidos, sentou-se no primeiro banco que
encontrou.
Deve ter adormecido
novamente, pois que voltou a sentir uma mão no ombro. Desta vez era uma Agente
da PSP que lhe perguntou: - Sente-se bem Senhor? É que já subi e desci a
Avenida três vezes e está aqui sempre na mesma posição. Precisa de ajuda? Balbuciou
um muito obrigado, está tudo bem, estava só a descansar, obrigado. A Agente
afastou-se com o olho nele que, confuso, como se tivesse qualquer coisa muito
urgente para fazer, tirou carta e pena da sua mochila e, lembrando-se das
últimas palavras ouvidas durante o sonho (teria sido um sonho?),e usando-as
como mote, escreveu de um só golpe, sem hesitações ou emendas:
Sempre contigo, um
beijo
Foi grito que me
encheu o dia
Trocou esta calma
por desejo
Pondo-me a sonhar
como queria
De longe sentimentos
afloram
Tão fortes de não
poder calar
Porque os corações
onde eles moram
Mais juntos não
poderiam estar
E sem arte para
gritar quanto sinto
Sentei-me num banco
da Avenida
E cheio de
felicidade, e não te minto
Ofereço-te deste
modo a minha vida
De poeta que tem em
ti o absinto
E é de corpo e alma
a coisa querida!
Abraço.
Lisboa, 11 de Setembro de 2014
** Este São Pafúncio nada tem a ver com o Pafúncio, marido da
Marocas, que George Mc Manus nos ofereceu de 1913 a 1940 em banda desenhada. O
Santo foi um cristão egípcio, que viveu no século IV, perseguido e torturado
por isso, e este uma personagem convencida, pretensiosa e arrogante, “virtudes”
herdadas por aqueles pafúncios que temos todos hoje de aturar. A história
repete-se e a literatura profetiza.