Na semana passada
interrompi os meus textos sobre Escrita Criativa para pagar portagem aos 40 anos do 25 de
Abril, já que tendo todos escrito sobre esse tema eu não poderia ficar atrás.
Mas arrependi-me porque o que eu disse não acrescentou nada àquilo que foi mal
dito por uns, nem preencheu o vazio do que não foi bem dito por outros. Porque
uns houve que lançaram com honestidade uma maldição sobre a efeméride, outros a
cobriram com uma bênção hipócrita, e sobre a data a festejar só ficámos a saber
que foi maldita ou bendita conforme as actuais conveniências da maioria dos escribas,
dado que poucos se pronunciaram sem se colocarem no seu epicentro. Por isso, eu
que distribuo mais facilmente anátemas que unções, fiquei-me pela ambiguidade
que não me comprometeu nem com a verdade nem com a mentira, e daí o
meu arrependimento. Agora voltemos à Escrita Criativa, terreno onde me movo
mais à vontade, tanto mais que a tentação de escrever sobre a data de hoje, 1º
de Maio, não voltou a assaltar-me após um texto que escrevi em 2009 para
o “AICEP Notícias”, boletim interno da AICEP, "Do vale das rosas ao vale de lágrimas" posteriormente publicado no meu
primeiro livro “Hieróglifos Órfãos de Roseta”.
A Culturgest
realizou um pequeno curso de Escrita Criativa em quatro sessões, e eu,
convencido que se pode aprender sempre, lá fui cheio de curiosidade e vontade
de fazer bem. A primeira sessão foi no dia 21 de Março e lá estavam, a
responsável Carlota Gonçalves e mais 18 pessoas interessadas como eu, em saber
como tudo se iria passar, e a Carlota, depois de nos dar as boas vindas,
explicou-nos que iríamos escolher à sorte uma das obras do artista Pedro
Casqueiro que fazem parte da exposição Marginalia, que está patente na
Culturgest desde 14 de Fevereiro até 11 de Maio, observar bem aquela que nos
calharia na rifa, e escrever sobre ela um texto à maneira surrealista, tendo,
para isso, cerca de 45 minutos.
A mim tocou-me a
obra intitulada “Punishing Piece, 1994”, que era um “acrílico e serigrafia
sobre tampo de mesa”. Fotografei mentalmente a obra em todos os seus pormenores,
pensei em Cesariny, O’Neil, França e Almada, sentei-me e escrevi o texto que
segue abaixo *, não sem vos deixar algumas chaves de leitura para uma melhor
compreensão do mesmo. Assim:
- Ao olhar para a “
minha” obra de arte e para todas as outras que faziam parte da exposição, lembrei-me
do episódio verdadeiro da senhora da limpeza do Museu de Bari que descrevi no
meu texto de 27 de Fevereiro sobre ARTE e arte;
- No seu romance
“Os Adoradores do Sol”, Fernando Namora fala, no capítulo IX, página 116, de um
pintor, dizendo-o vindo da Inglaterra, que viveu algum tempo com uma
companheira num casebre em Monsanto, onde Namora exerceu medicina durante
alguns anos. Por coincidência, entrei anos mais tarde naquele casebre, olhei em
volta, havia somente uma mesa de cozinha e encostada a uma das suas pernas, um retângulo
de platex com, pintada, uma natureza morta – um canjirão e umas malgas – em
muito mau estado, mas que ainda hoje conservo apesar de ser aquilo a que os
franceses chamam uma croûte. Perguntei
pelo pintor descrito sumariamente pelo grande escritor, e foi-me dito que era
um jovem americano fugido à Guerra do Vietnam, que ali aportou um dia com uma
companheira e ali viveu, pintando e vendendo as suas obras a turistas, e assim
como apareceu também desapareceu sem deixar rasto. Nem o seu nome me souberam
dizer, e foi essa lembrança que me fez falar dele no texto;
- A ideia das
tábuas roubadas à Passarola de Frei Bartolomeu de Gusmão foi só um flash provocado pelo facto de passar
muito tempo com a minha mão direita sobre o tapete do meu rato que reproduz em
mosaico a dita Passarola. Pensando melhor, à
posteriori, não sei se liguei o falhanço da geringonça diante do Rei que
representava a Nação, à “traição” do pintor diante de um Presidente que deveria
representar a Pátria;
- Referi o
“faraónico palácio” onde estava a escrever, relacionando-o com a actual crise e
a sua origem, tentativa de imposição de um ultra liberalismo económico – para o
qual o homem deixaria de ser o alfa e o ómega -, a que eu chamei freenança na poesia “Trocadilho da Treta” publicada no volume “Manifesto Anti-Crise”. Frequentando
ultimamente o IPOFGL, veio-me a ideia peregrina de pensar se o dinheiro
empregue na construção do “faraónico palácio” não teria sido mais bem empregue
em Palhavã, tanto mais que agora sabemos que um outro banco vai ser criado para
cumprir funções que pertenceriam ao prestigioso hóspede do “faraónico
palácio”. Só esperamos por um sobressalto
de vergonha que impeça a construção de um outro “faraónico palácio” para a nova
e indispensável instituição bancária.
E nada mais,
pedindo desculpa pela repetição de “faraónico palácio” que foi intencional como
contributo para tornar possível o tal sobressalto de vergonha, que também peço
desculpa de repetir.
*Texto que inspirou
a forma e o ritmo daquele outro intitulado “Escrita criativa com massa de
letrinhas na borda do prato fundo da canja”, editado em 27 de Março.
Culturgest
Fundação Caixa Geral de Depósitos
Escrita criativa
21 de Março de 2014
Exposição Marginalia de Pedro
Casqueiro
Punishing Piece 1994
Acrílico e serigrafia sobre tampo
de mesa
Colecção particular
Entrar na Marginalia
do Pedro Casqueiro sem a missão de cumprir um dever como fez a mulher da
limpeza que deitou para o lixo 5 das 40 obras de uma instalação em Bari é
sentir-se atraído pela única coisa viva na sala o olho azul que com ar
brincalhão para ver quem está ou não com cara de parvo ou de boca aberta a
olhar para aquilo tudo que é “arte” e o olho leva a olhar a parede oposta onde
5 tábuas 5 juntas com cola e se calhar pregos nos costados para se manterem
unidas e levarem em cima com meio quilo de uma papa cor de ranho para esconder
os veios naturais da madeira dando uma unidade de tampo de mesa de cozinha
pobre do interior das aldeias podia mesmo ser da aldeia mais portuguesa de
Portugal Monsanto na casa onde o pintor fugido à guerra do Vietnam pintava sobre
ela só a preto e azuis que são as únicas cores e não cores que violam a
monotonia do ranho que recordo tapa ou quase tapa 9 dos 16 furos redondinhos
que as tábuas sofreram vamos lá a saber se quando eram solteiras ou já casadas
com cola e pregos umas às outras para servirem para apoiar pratos pão vinho e
talheres enquanto mesa de cozinha ou tintas e pincéis e trapos para os limpar
quando a sua serventia era a arte do americano traidor da pátria que preferiu
pintar na serra que apertar gatilhos na humidade da selva da Indochina que
provocariam buracos na pele e nas entranhas de gente como ele mas amarelados e
com os olhos em amêndoa sendo plausível por esta reflexão que tivesse sido ele
a fazer os 16 buracos no tampo da mesa já que tinha sido programado para
esburacar fosse o que fosse e com receio de ver sair sangue que violaria o
preto e os azuis da sua mesa tapou 9 deles com os restos do ranho seco sempre
com medo que a sua clandestinidade o seu dever de não estar ali e a sensação de
se dedicar a um trabalho não seu acrescido tudo isto à feia acção de ter roubado
as tábuas a uma réplica da Passarola de Frei Bartolomeu de Gusmão para as fazer
voar vingando o original que parece não ter alçado voo para Rei ver mas que voa
agora junto com outras ousadias artísticas ao redor de uma sala do mais
faraónico palácio que alguém jamais ousou plantar no centro de Lisboa e voa voa
voa com as outras companheiras como morcegos que entrassem sem password no reino da freenança mostrando que sendo ou não
arte aceite por Da Vinci, Michelangelo, Caravaggio ou Raffaello são menos
tóxicas e perniciosas que outras obras que voam e perigosamente saem do
palácio.
Lisboa, 1 de Maio
de 2014
Octávio Carmo de
Oliveira Santos