O único barbeiro que
compreenderia o meu texto de hoje seria o Celestino se fosse vivo porque me
contava a história da formiguinha que entrava no buraquinho pegava um baguinho
de trigo e saía cá para fora e repetia, repetia, repetia cem vezes se preciso
fosse enquanto me cortava o cabelo e Deus sabe o que era ficar para ali imóvel
com medo que uma tesourada distraída por uma das formigas me cortasse uma
orelha ou que aquela máquina alicate infernal me entalasse um sinal no pescoço
fazendo-o sangrar e isso era morte certa no dizer dos velhos isso e um calo
agravado que era ainda pior que nem com ventosas ou sanguessugas havia salvação
mas o Celestino teria compreendido se fosse vivo e não o é há pelo menos meio
século porque ouvia a Mãe do menino perguntar: “- Sempre queres a canja com
pevides cuscos cotovelinhos aletria ou letrinhas?” - e o menino invariavelmente
respondia debaixo da toalha cheia de cabelos “- Letrinhas Mãe.” E a Mãe já
sabia que nesse dia ao almoço depois do Celestino arrumar as tesouras receber o
devido e despedir-se "- Até para o mês que vem se Deus quiser!", o menino ia comer
a canja fria pois começaria a procurar letras com a colher de sopa para as
alinhar na borda do prato fundo e escrever palavras quanto mais complicadas
melhor pois que seria mais difícil encontrar as letras todas que serviam mas
isso fazia parte do gozo da escrita “- Olha que comes a canja fria!” - dizia a
Mãe, “- O Pai está a chegar e sabes como ele é tem goela de pato come tudo
quente e a correr e já ele terá engolido a última sopa de pão que ensopou no
molho do guisado e tu ainda aí a espiolhar a massa nem sei para quê.” Mas o
menino sabia para quê e escrevia palavras esdrúxulas e proparoxítonas e
capicuas e nomes de pessoas de cidades de animais de rios de artistas de cinema
Myrna Loy era dificílimo porque o i grego não era fácil de encontrar como o
cromo do Costa Pereira nos rebuçados da bola que se trocava por três Matateus e
também Errol Flynn mas Vasco Santana era mais fácil como Jean Gabin
ou Cantinflas ou Pamplinas e um dia, escrevendo cidades, descobriu que
Roma ao contrário era amor e começou a fazer um carrocel de Roma à volta da
borda do prato fundo para se perder na palavra e já ninguém saber o que é
que ele queria realmente escrever e o ovo amarelo e a pata da galinha e os pedaços
de moela fígado e coração e pescoço, não porque a Mãe sabia que o menino não
gostava de pescoço mas adorava chupar os ossinhos todos da pata andava tudo por
ali a boiar e a esfriar no meio do caldo com olhinhos de gordura e umas
farripas de cenoura e cebola, não podia faltar a cebola às vezes com um cravo
de cabecinha espetado que lhe dava aquele sabor das Índias a que os portugueses
se habituaram, como se seu fosse, e o menino procurava letras e escrevia,
escrevia, escrevia por vezes coisas sem nexo mas que lhe soavam bem repetir
como a truta a trote tropeçou e estatelou-se na trampa ou a escola só para
jogar à bola porque sou um estarola e as letras saíam da borda do prato fundo
que tinha um filete dourado a desaparecer de tanto ser lavado com sonasol no
alguidar de zinco e entravam na cabeça do menino que as fazia passear pelo
cérebro e algumas ficavam lá perdidas e já não saíam cá para fora e é agora em
dias como o de hoje melancólicos em que a esperança se esvai e a fé precisa de
uma saponária, que elas saem sem sentido
nem nexo para comporem coisas incompreensíveis como esta que só o Celestino
poderia ler, intervalando as letras do menino com as suas formiguinhas que
saíam do buraquinho do celeiro, já sem os baguinhos de trigo mas com o seu
produto acabado, as letras já formadas que formavam palavras por milagre,
lembro-me de ver as formiguinhas do Celestino em fila indiana a carregar frases
feitas como "foge menino foge” e era o diabo ou “come a canjinha que arrefece”
e era o anjo e as palavras e as frases as das formiguinhas e as outras
volteavam no ar como que enroladas por um torvelinho e entravam nos ouvidos do
menino que as guardou todas e algumas eram bem feias e são aquelas que lhe
custam mais a dizer mas às vezes é preciso porque há sempre um filho de Putin que
a isso o obriga mas ele tenta ser gentil mas não sempre consegue, mesmo com aqueles que mereciam que houvesse Kalaschnikovs carregadas com palavras
pesadas para lhes disparar contra o coração mas qual quê eles têm cotas de
malha anti-palavras e advogados com
olhos de zombies que fazem as
palavras disparadas fazerem ricochete e atingirem-te a ti e o menino sabe isso
muito bem, por isso errou quando brincava com palavras na borda do prato fundo
da canja e que hoje não lhe servem para nada porque a palavra que já serviu
para derrubar colossos com pés de pastilha gorila, já eles descobriram como a
tornar inócua com um sorriso uma mentira e uma desfaçatez, uma calúnia mesmo um
crime, desde que sem provas que mesmo essas se destroem com outras palavras
porque as palavras se tornaram maleáveis indecifráveis eles inventam
significados novos para baralharem os dicionários e pôr-te às aranhas sem
saberes bem o que dizes ou pior com medo de usar as palavras que inventaste na
borda do prato fundo da canja com miúdos a esfriar diante dos novos inventores
de palavras novas que só querem dizer o que eles querem que seja naquele dia
mudando no outro, e assim, se o menino tem respondido “- Mãe, hoje quero
pevides ou cotovelinhos.” talvez hoje não estivesse tão perdido, soubesse falar
com eles todos para os desmentir ou estar de acordo e escusasse de andar a
meter-se em táxis sem destino aparente só para ter em quem vai ao volante interlocutores para as suas inúteis palavras
ou tentar pateta convencer a Odete Miranda cabeleireiro unissexo da 5 de
Outubro, que no canto do seu salão há um buraquinho por onde entram
formiguinhas a correr em fila indiana e em fila indiana saem carregando um
grãozinho de trigo, que todos sabemos não serão distribuídos igualmente por
todos nem em pão nem em massinha de letras para a canja. Repousa em paz
Celestino, barbeiro do menino arrependido de ter brincado com letras e formado palavras
vãs na borda do prato fundo da canja, que sempre comeu fria por sua exclusiva
culpa.
Lisboa, 27 de Março de 2014
Octávio Santos