Mas, perguntareis vós, onde é que ele quer chegar com isto, e eu
respondo que a lado nenhum porque me sentei sem ter a mais pequena ideia sobre
o que iria escrever, e apanhado desprevenido pus-me a lançar bite sounds (vêem como estou atento!)
numa vã tentativa de encontrar objecto para a escrita, e agora estou aqui a
navegar à vista como um actor que esquece a deixa e olha aterrorizado para o
ponto ausente da sua caixa, ou porque desmaiou ou porque foi assaltado por
necessidade imperiosa. E aqui fez-se luz (juro que tudo isto se passa em tempo
real), e agarrando o ponto pelos colarinhos este faz-me de ponto e lembra-me
que também fiz teatro, uma só vez, e felizmente para os potenciais
espectadores. Mas passo a relatar e com esta me safo mais uma vez.
Corria o ano de 1976 e o país era a Bulgária, aquele “onde tudo
aquilo que não é proibido é obrigatório” como escrevi na pag. 25 do meu
primeiro livrinho, era eu o “Senhor Cônsul de Portugal” (ver pag. 48 do mesmo
in-fólio) e o meu amigo Yildirim Keskin (A) Conselheiro da Turquia. Acontece
que este distinto diplomata, que foi mais tarde Embaixador em Lisboa, fosse
também escritor e tivesse na gaveta, desde 1971, uma peça de teatro escrita
directamente em francês - depois traduzida em turco e em grego -, intitulada “Un homme sain d’esprit”, à letra “Um homem
são de espírito” mas que eu traduziria por “No seu juízo perfeito”, que em
turco deu “Akli Basinda Bir Adam”,
tendo a sua versão original sido publicada em 1979 e, aquela em grego, sido levada à cena e premiada
no Festival de Teatro Amador de Corinto em 1983.
Yildirim Keskin, que traduzido em português seria Raio Fendente, já
que todos os nomes turcos têm tradução - tu
sais Octaviou que mon nom ça veut dire Foudre Tranchante (lembro-me da sua
Mulher Gulgun, ou Rosa, e do Filho de ambos Jan, ou Vida) -, era um
afabilíssimo diplomata e escritor que, na pureza da sua língua e na
simplicidade do seu estilo, escrevia, em fuga surrealista diante da alegoria da
existência, sobre a crise de identidade do homem só e impotente, com a sua
racionalidade, perante o mistério universal que o rodeia, focando, como
Pirandello, o contraste entre a aparência e a realidade. No seu primeiro
romance “O Reino de Uma Noite”, de 1957, escreveu que “a felicidade é acreditar
numa mentira” e, alguém que o conhecia e apreciava dele disse: “Escritor nihilista,
nunca deixou de procurar o sentido da vida sabendo que o homem, mesmo tendo
consciência da sua absurdidade, pode, através da vontade e da coragem, dar um
significado à sua existência”.
Voltando ao teatro, disse-me um dia Yildirim que gostaria muito de
ver a sua peça representada para avaliar o que daria sobre as tábuas de um
palco, e daí tirar as suas conclusões para decidir sobre a sua publicação; quem
sabe até se não a retocaria. Pedi-lhe uma cópia dactilografada (ainda a
conservo), li-a, falei dela a colegas de outras embaixadas que eu sabia estarem
para aí virados e, todos, pusemos em pé uma trupe de teatro ad-hoc para a inédita peça do Yildirim
que, radiante, passou a dar todo o seu apoio e conselho a esta internacional
banda de inconscientes a meterem-se numa aventura fora da sua zona de conforto
(onde é que eu já ouvi esta?). Um turco, o autor, 5 franceses 5, uma belga, um
holandês e um português, começaram então a estudar o original, cada um com a
sua cópia, a escolha dos papéis foi consensual, e a ensaiar duas/três vezes por
semana, ora em casa de um ora em casa de outro, sempre com um Volga negro do
KDC - Комитет
за държавна сигурност, os do guarda chuva assassino, lembram-se? - à porta, já que aquelas repetidas reuniões noturnas que duravam até às 2/3
da manhã começaram a fazer espécie aos guardiões do regime.
Resumindo, devo dizer que eu, para além do papel de um fugitivo de
si próprio (como uma luva…) num hotel de uma estrela, em convivência com uma
nefelibata, um velho do contra, uma empregadinha, uma criada para todo o
serviço impossível de aturar e um proprietário/recepcionista meio filósofo, todos suspeitos para o esbirro que
se apresenta em busca de um culpado no meio daquela bizarra e heterogénea
companhia, tive também de construir o cenário com torres de iluminação e tudo o
que se pode ver na imagem, incluído o relógio de parede feito com uma caixa de
sapatos, sendo também minha a escolha da banda sonora, “A Catedral da Angústia”de António Vitorino
d’Almeida, aceite entusiasticamente por todos. Assim, a “nossa” peça de teatro,
sem figurinista nem guarda roupa (cada um com as suas coisas), em que cada um
se maquilhava à porca janota, sem produtor, sem director, sem ponto, com
cenógrafo (eu), um só (aquele grandão com barba, o pequenino sou eu) que fazia
de sonoplasta, fotógrafo, luminotécnico e contra-regra, onde todos eram
encenadores, que levou dois meses a ensaiar, foi levada à cena quatro vezes,
digamos com agrado geral e, sobretudo, com a visível satisfação do autor que,
feliz com o resultado, começou desde logo a tratar da sua publicação, o que
veio a acontecer em 1979 como acima já referi.
Desta minha “aventura”, nunca mais repetida para o decoro e boa paz
da arte de Talma, recordo agora coisas que gostaria de assinalar para encerrar
esta crónica:
- As quatro representações tiveram lugar, primeiro na Residência do
Embaixador da Turquia, e depois em casa do Conselheiro da Grécia e na de um
outro diplomata que não consigo recordar-me agora e, a última, aquela da imagem
acima, numa sala de festas posta à nossa disposição pelo Ministério dos
Negócios Estrangeiros búlgaro, depois de chegarem à conclusão (que alívio!) que
não estávamos a conspirar contra o regime.
- Nesta última pode-se ver que a parede de fundo está coberta por
um lençol branco. Acontece que estavam lá penduradas fotografias do Lenine e do
Gueorgui Dimitrov. Eu fui da opinião de deixar tudo como estava e introduzir
uma bucha no meio de uma das deixas do proprietário do hotel, qualquer coisa
como “herdei-o do meu pai que o herdou do meu avô” apontando as fotos, mas
todos os outros foram pela solução do lençol. Perco sempre…
- No fim da primeira representação, o meu saudoso Embaixador
António Manuel Menezes Cordeiro deixou cair, ao vir felicitar-me, um
diplomático “agora percebo tudo”. Na altura fui eu que não percebi.
- As colunas que suportam a iluminação (candeeiros de secretária transfugidos
clandestinamente de diversas chancelarias ocidentais) foram construídas com as
grades que tinham levado de Lisboa os azulejos da Viúva Lamego (ponta de
diamante e dente de leão) com que compus (com estas mãozinhas) o lambril da
sala de jantar da residência dos nossos Embaixadores em Sófia. Ainda lá devem
estar, mas a casa da Ulitza Ivatz Voivoda, 6 tem agora outros inquilinos. O que
eu daria para lá ir espreitar!
- Numa das representações, não me lembro se no primeiro ou no
segundo acto, saltei uma das deixas o que atrapalhou quem contracenava comigo,
felizmente sem que o público tivesse dado conta; no intervalo combinámos os
dois metê-la como bucha numa das cenas da acção do acto seguinte, e assim foi.
Recordo-me o autor feliz, quase aos pulos, a dizer-nos no fim: “O teatro é isto!”
Cai (definitivamente) o pano.
Para terminar sirvo-me de Kipling, não percebendo se aquele do If…
ou o do Menino da Selva:
"Copiaram tudo o que puderam alcançar
Mas não podiam agarrar o meu
espírito"
A) Soube agora na net que trocou este estranho mundo, em
Fevereiro de 2012, por outro que ele agora já conhece e nós não, onde o encontrarei
para discutirmos, entre católico e muçulmano, sobre o porquê das coisas. Au revoir Yildirim, que la foudre soit toujours avec toi!
Abraço.
Lisboa, 14 de Janeiro de 2016
Octávio Santos