Descobri ultimamente várias maneiras de fazer intervalos na realidade,
isto é, de a ela fugir ou pelo menos subtrair-me momentaneamente, inventando-me
aquilo que não sou, umas vezes escriba - prosa, poesia, teatro -, outras
bloguer, eu que sou alérgico a redes sociais, outras ainda artista plástico -
colagens em 2 e 3 dimensões com tudo o que me vem à mão -, recentemente
estilista de moda, inspirado naquele T-shirt de que vos falei no meu e-mail de
16 de Março (A), estando agora a preparar a colecção de Primavera/Verão, e até
palhaço só porque alguém na rua me achou com cara disso, tendo até agora dado
essa cara (muitas vezes de costas, mas sempre a cara) para a Fidelidade,
Limianos, Jumbo, Santander, Continente, Worten, Riberlaves, Esporão e Rubis
Gás, isto após uma boa centena de castings - 9/10% de êxito - o que, no dizer
da minha Agência - a mesma da Sara Sampaio - é mesmo muito bom.
Assim, nesta segunda-feira, 4/4, lá fui a mais uma prova, mimar “
um avô com idade 65/70 com bom ar, expressivo, simpático e que consiga contar
uma história e envolver-nos emocionalmente”, durante a qual tive de contar uma
história a um neto virtual, isto depois da habitual apresentação, com sorriso e
sem sorriso, com óculos e sem óculos, pirueta à esquerda pirueta à direita,
1,67 de altura, 72 anos (uma vez troquei mas não por lapso freudiano, apenas
porque seria bom), 50, 44, 40, 41, avelã, grisalhos, and I’m available for the scheduled dates for shooting, e lá me pus
a contar a história para uma cadeira vazia ao meu lado:
“Já sabes que o Avô
é um aldrabão, a história não é verdadeira mas vou-ta contar à mesma: acreditas
que consegui fazer levitar um gato? Não te rias mas foi assim. Sabes que os
gatos caem sempre sobre as patas, nunca viste um gato cair de costas pois não?
e que uma fatia de pão com manteiga cai
sempre com o lado barrado para baixo, não é? Baseado nestes princípios sagrados
barrei uma torrada com manteiga, amarrei-a no lombo do bichano com a manteiga
para cima, subi para cima de uma mesa e deixei cair o estranho binómio e não é
que, talvez para não desmentir as leis da física, o gato ali ficou a um palmo
do chão, levitando, sem saber que atitude tomar. “
- Boa! - disse o operador de câmara, conte lá outra, um pouco mais
expressivo se faz favor, sem esquecer que tem o miúdo aí ao seu lado. Engoli em
seco, e lá saiu esta:
“Um homem andava há
anos a preparar um número de circo e, quando achou que estava perfeito,
apresentou-se na grande tenda do maior circo do mundo pedindo para falar com o
Director. Depois de muitas negas - no circo há burocratas que não são nenhuns
palhaços - lá entrou no gabinete do Director, entre a jaula dos tigres e a roulotte
da mulher barbuda, o qual sem sequer olhar para ele lhe atirou um - Vá lá
mostre ao que vem, mas seja rápido! Então o homem tirou de um dos bolsos do
casaco um pianinho de cauda, do outro um banquinho de piano, colocando ambos em
cima da secretária do Director; da algibeira das calças apareceu um ratinho
branco que, correndo, se sentou no banquinho, ajeitou o rabinho como se fosse a
cauda de um fraque e começou a aquecer as mãozinhas, enquanto que do colete
voou um pardalito que foi direitinho poisar em cima do piano, e aí o Director
levantou finalmente os olhos dos seus papéis resmungando um – E então? Então o
nosso homem disse para o ratinho – Toca, Amadeu! e o ratinho começou logo a
tocar um lead de Schubert, Schumann ou Brahms, o que fez com que o Director abrisse a boca de
espanto e perguntasse: - E o passaroco? – Canta, Luciano, ordenou o homem,
agora feliz, e o pardalito abriu as asinhas e começou a cantar com uma voz
melodiosa cheia de requebros. - Parem tudo, já chega, gritou o Director com os
olhos esbugalhados, pondo à frente do dono dos animaizinhos um contrato em
branco para ser assinado, repetindo entre o nervoso e o exaltado: - Escreva aí
a soma que entender e o prazo que lhe convier que eu assino por baixo, mas com
uma condição: tem de me dizer qual é o truque, senão nada feito. O nosso bom
homem ainda tentou balbuciar que era tudo verdade, que lhe tinha dado muito
trabalho chegar àquele resultado, tudo sem truques nem artimanhas, mas perante
a fúria insistente do Director que ameaçava rasgar o contrato, lá inventou esta
para não perder a oportunidade da sua vida: - Sabe Senhor Director, é que o
pardalito não canta, é o rato que é ventríloquo!”
Não sei se vou ser escolhido ou não após esta prova, mas não
importa porque já tive oportunidade de vos contar estas histórias, pondo-vos no
lugar do neto que não estava. Lembrei-me agora que após a minha primeira
participação, que ocorreu no Jardim da Estrela em cima de um banco com uma
poesia lindíssima do poeta Anrique Paço d’Arcos, e foi aquela dos
cães vermelhos da Fidelidade, que até irritou o PAN, cheguei a casa e
escrevi isto, por acaso também sobre um neto, obviamente falso:
Fidelidade ou Só os cães
vermelhos são fiéis
De costas sou outra coisa.
Melhor. Muito melhor!
Sobretudo para os Netos.
Neste caso, Tomás, o falso,
Que chorava a comando
No intervalo do riso que lhe provocavam
O chorrilho de banalidades
Que inventava para que estivesse quieto.
- Na próxima cena, em vez de soprar,
cuspo-te no joelho!
E o cão, vermelho de provocar Jesus
E os seus seguidores
Levantava os olhos para mim
Não para o menino com dói-dói no
joelhinho...
Cão, mesmo maquilhado, não é estúpido.
Sabia que na minha mão esquerda
Escondida das câmaras
Havia comida que lhe ia dando
A coberto dos cortes da montagem.
Ali, no jardim da minha infância
Onde o meu Avô jamais me soprou uma ferida,
Admitindo que se sentasse comigo no banco
do poeta
Porque os meninos pobres não tinham
bicicleta.
No meio da confusão do caravanserai instalado
no meu jardim
Olhava a minha Basílica
Que nunca foi minha, porque nela não me
baptizei.
Minha só pelo fixador com que domava o
penteado
(O Tavinho tem um remoínho)
Para o Santo Sacrifício da Saída da Missa.
Mil novecentos e cinquenta e cinco.
A dois passos da Travessa do Moínho de
Vento, 23.
Depois casei uns irmãos em sessenta e três
E velei uma Avó em sessenta e seis.
E mais nada.
Dezenas de figurantes sofriam o olhar
arrogante
De quem os escolhia ou afastava.
- Não tem outras calças? - Esse t-shirt não
sff!
Não sei porque me calçaram uns sapatos de
vela verdes
Dois números acima.
Não sei porque me empoeiravam a fronha de
dez em dez minutos.
Sei que a menina bonita que passa de
bicicleta
Com o vermelhinho no cesto
Atravessava o Largo da Estrela
Cada vez que mudava de calças para calções
Ou vice
versa
Por ordens de quem sabia do assunto
Para ir ao encontro do seu Homem
Que cavalgava uma moto assustadora
E estava ali em missão de vigilância.
Sei que o Avô Ica e a Avó Toina
Passam agora o tempo diante da televisão
Para ver o Tomás, Neto deles
A ser consolado por um Avô de pacotilha
Que o Tomás nunca esquecerá
Porque lhe disse que o Vasco da Gama era de
Sines
Terra dos seus Avós.
Aqueles verdadeiros.
A Mãe, só,
(o meu pai vive na Amadora e a minha Mãe
nas Colinas do Cristo Rei)
De aparelho nos dentes, olhava embevecida,
Qual Nanarella em Bellíssima,
Um Tomás desembaraçado, descarado e
saltitante
Que era (é) o seu orgulho.
- Agora não leve esta camisa consigo; é uma
Armani!
Não respondi porque preciso de quanto vou
ganhar
Com aqueles dois segundos de inutilidade
Felizmente de costas.
Tenho um Filho desempregado com Filhos,
E a humildade de quem precisa foi mais
Forte que a arrogância da resposta que
engoli.
Temos de ter Fidelidade a qualquer coisa!
Mesmo que nos pese.
Agradeço todos os dias, que me permitam
Atravessar quatro vezes por dia os portões
das Necessidades.
Por elas...
Fim.
A)
Acabo de poupar
74,05 euros, e explico como: vejo no corner
da Zadig & Voltaire, no El Corte, uma T-shirt
branca, 60% algodão/40% Modal, cheia de buracos feitos a corte de tesoura ao
preço de 80,00 euros. Peguei-lhe, achei piada, mas realmente o preço era um
exagero, ainda por cima Made in India, só se justificando pela etiqueta que
arvorava o nome do inovativo e prestigiado
brand gaulês. Não é que passo no corner
da Easy Wear e dou de caras com uma T-shirt
em tudo idêntica salvo os buracos, 100% algodão, Made in Omisso, ao preço de
5,95 euros. Compro-a, chego a casa, agarro numa tesoura e, sem qualquer custo
adicional exceptuando a mais valia artística, ponho-a igualzinha à da marca
francesa que mais parece o de uma sociedade de advogados. E mais: peço à Manuela que lhe cosa uma
etiqueta da Guy Laroche-Paris que tirei de uma gravata minha que desmanchei
para usar numa colagem que estou a arquitectar et voilá, um dia destes vão ver-me por aí a laurear o queijo com
uma T-shirt francesa - a etiqueta do
lado de fora, bien sûr – à moda, dernier cri!
Abraço.
Lisboa, 7 de Abril de 2016 (os meus Pais fariam hoje 76 anos de
casados e eu ando a treinar).
Octávio Santos