Tendo atraído os
veneráveis leitores ao engano, ao chamar de bonsai à sua historieta da semana
passada, que afinal, como um bolo com demasiado fermento que, levado ao forno,
sai da forma de forma exagerada, porque ele há coisas que não se podem
encolher, o cronista, cansado e indeciso no caminho a percorrer, limita-se
desta vez a juntar mais uns retalhos à sua manta “artística”, como naqueles dias
em que o jantar são restos mas que lhe apetece chamar-lhes hors d’ oeuvres só para armar.
Retalho 6 – André, cavaleiro (adiado) das ondas
Muito antes do
relatado no Retalho 5 - Lixo da Costa do Sol, da passada crónica, já eu tinha
prometido ao André, como prenda dos 16 anos, uma colagem escultórica
representando-o a entubar uma onda do caraças e, tendo o hábito de cumprir o
que prometo, comecei por surripiar, na casinha das ferramentas do Monte Crato,
um pedaço de tábua velha e carcomida que pus de parte para servir de base.
Depois, inspirado na decoração de uma rotunda da Ericeira, comprei dois copos
de vidro, um azul e outro verde, que levei a um vidraceiro no Bairro Santos
para que mos cortasse segundo umas marcas que lhes fiz, o qual olhou para mim
com cara de grande solidariedade humana e debitou soletrando, como se temesse
alguma reacção tipo “voando sobre um ninho de cucos”, que os vidros curvos não
se podem cortar, pois que qualquer tentativa os partiria sem nenhum respeito
pelas minhas marcas. Vi-lhe um alívio no semblante quando - já a Mulher estava
com o telefone na mão, quem sabe se para chamar o 112 - pedi desculpa,
balbuciei um “não sabia”, agradeci e saí calmamente do local. Chegado a casa,
como que possuído pelo espírito de Michelangelo ou Rodin - o Jeff Koons e a
Joana Vasconcelos ainda não estão, felizmente, disponíveis -, dei duas
marteladas nos copos e com os seus cacos compus o tubo. Depois tirei uma
costela, desculpem mas esta é uma outra história, depois, dizia, com pedaços de
conchas, seixos, fios de cordas tudo apanhado na praia do Rio Cortiço e papel
azul, erigi um cenário de ventos e espumas à volta do tubo, no interior do qual
meti, em posição instável, um osso de choco (Eugenio Montale, Nobel) com um pedacinho
de tronco de esteva que, à semelhança daquele que deu vida ao malogrado ET do
meu Retalho 1 da crónica da há 15 dias (continuam a dar-se alvíssaras), era,
juntos mais uns gravetos à laia de braços, o retrato chapado do André na sua
posição de intrépido cavaleiro das ondas. Parecia tudo perfeito, mas como, tal
como acontece com as luvas, também não sei fazer nada com máscara e óculos, e
tendo usado Cola Super 3 (Perigoso, cola à pele e aos olhos em poucos segundos),
me dei conta que, um ano após uma operação às cataratas (para os velhos são
como os cabelos brancos, sentenciou o Dr. António Sampaio) comecei a ver coisas
estranhas, sombrias e inquietantes, pelo que suspendi os trabalhos sem ter
revelado o porquê a ninguém, como um puto que vai ao pote da marmelada e tem
medo de um ralhete ou de uma nalgada. Agora, feita a confissão, o André já pode
deixar de pensar que o Avô Tato é mais um aldrabão com futuro assegurado na
política, deixando-lhe aqui a certeza de que vai ter a sua “obra de arte”,
metida numa caixa acrílica, nem que seja lá para os seus 20 anos, quando já tiver
trocado a adrenalina das ondas do mar por aquela dos vórtices violentos do ar
que sustenta as asas dos seus futuros Boeings ou Airbus.
Retalho 7 – Pato marreco branco sobre sinistra sombra negra
Nos Jardins da
Fundação Calouste Gulbenkian, onde 2/3 vezes por semana passo de manhã para
respirar e descontrair, há, no meio de centenas de patos que o povoam, um todo
branco que eu, que deixei há muito de fixar imagens artificialmente em suportes
digitais, chegando-me as lentes dos olhos e a película da mioleira, talvez para
escapar ao rebanho “selfídico” que não deixa em paz nem o Papa Francisco, dei
comigo a procurá-lo para o imortalizar. Estava ele naquela manhã de sol,
afastado de todos os outros, a dormir na relva, peguei no telemóvel e
aproximei-me pé ante pé, com o sol pelas costas, para o surpreender posto em
sossego e, tanto me aproximei que o bichinho acordou e, dando com o intruso, se
levantou atapatoadamente para escapar e ir à vida; aí, na iminência de o
perder, cliquei à porca janota, não acreditando no que depois vi ter fixado
para sempre, ou seja a inesperada foto que é a imagem desta crónica, pena é que
a sua qualidade a torne imprestável por absoluta incompatibilidade com os
cânones da boa fotografia. Quando mais tarde zoomei sobre ela, a coisa tornou-se tão irreal que me lembrei de um
outro pato, este, sem sombra sinistra a tutelá-lo, composto por restos de
armazém de azulejos de cozinha e casa de banho, que está no muro do Jardim
Colonial, ao fundo da Travessa Marta Pinto - artéria povoada por bandos de
andorinhas do Rafael Bordalo Pinheiro, agora da Catarina Portas -, ali a Belém,
onde fica a Ermida Nossa Senhora da Conceição, hoje desconsagrada e sede do
“Projecto Travessa da Ermida”. Voltando ao patinho branco e ao Jardim da
Gulbenkian, lembrei-me agora de ter escrito um conto de Natal para crianças
intitulado “É Natal também no jardim”, situado nesse
jardim, o qual, magnificamente ilustrado por Sara Alves e Calaim, está no site da editora “Story Tellme” da minha
amiga Teresa Valente - www.storytellme.pt -
e pode ser adquirido, devidamente personalizado, como tudo o que de belo e
original a criativa editora produz.
Sonho 2 – A Instalação
Começo por repetir o
que escrevi há duas semanas no Sonho 1- A Colagem: Uma noite destas tive um
sonho muito nítido e preciso, como quase nunca os sonhos são, no qual alguém me
ordenava… de montar uma instalação a céu aberto, com uma tal precisão de
pormenores que eu seria capaz de chefiar uma brigada de instaladores para a
reproduzir fielmente, tanto mais que tenho na memória imagens anteriores que me
ajudariam a uma fidelidade acrescida, como seja a vista, desde o alpendre das
buganvílias do Monte Crato, do campo das vacas do Raúl, já no Pêgo Amarelo,
plantado de banheiras velhas que, recolhendo a água da chuva, serviam de
bebedouro aos bovinos, mas também aquela do porco aberto e pendurado na trave
mestra da arribana, com os bofes a pingar, após a certeira facada do Ti Chico
Crisóstomo (tenho ainda os seus gritos de misericórdia na cabeça), do barbear
do suíno com uma telha depois de ter passado pelas brasas de uma fogueira ad hoc, do abrir da carcaça do pescoço
ao baixo ventre, da extracção da bexiga para evitar inconvenientes
contaminações sápidas, e da tripalhada desviada para o milagroso processo de
troca de conteúdos naturais não consumíveis, por outros que nos fazem as
delícias. Quanto aos ecrãs enganadores que nos escondem e dão a ver a realidade
segundo as conveniências e pontos de vista, apenas os posso idealizar como
metáfora política de hoje.
A propósito
recordei-me da sexta linha do romance de Umberto Eco “A Misteriosa Chama da
Rainha Loana” onde se lê “Era um sonho estranho, sem imagens, povoado de sons”,
porque o meu, apesar de estranho, foi sem sons, povoado de imagens. Depois, no
mesmo livro (quando uma coisa me encanta não a largo sem a desmanchar, fazia o
mesmo aos relógios quando era pequeno), já na página 70 li “…eram testículos de
cão, de gato, de galo e de outro bicho, com rins e tudo mais”. Será que
influenciou o meu sonho?
Retalho 8 – Fressuras pingantes com/em banheiras e painéis móveis
enganadores, tudo a céu aberto.
Então seria assim,
se alguma vez eu tivesse à disposição o hangar da Joana Vasconcelos em
Alcântara e a sua equipa de técnicos e operários instaladores, bastando juntar-lhes
um magarefe ou dois, esta instalação ordenada em sonho, que nem por sonhos será
executada (a não ser que alguém…):
Espalhar numa
superfície plana ao ar livre um quadriculado de banheiras brancas vazias, cada
uma com uma alta coluna de duche no topo da sua maior dimensão. Pendurar em
cada uma dessas colunas uma fressura completa fresca de porco ou bovino
(dependeria do sponsor), a qual
ficaria a pingar os seus humores, cada uma para dentro da sua banheira.
Levantar, fincando-a no terreno, uma rede de hastes metálicas verticais nos
intervalos horizontais entre banheiras, ligar pelas suas extremidades
superiores cada fila de hastes com cabos de aço estendidos firmes de uma ponta
à outra e prover cada cabo com pequenos patins de roldanas corrediças que,
ligados a um pequeno motor eléctrico, fariam mover horizontalmente rectângulos
de plástico (ou outro material) branco que, pendurado cada um no seu patim
móvel, se moveriam à altura dos bofes pendurados fazendo com que o potencial espectador,
embasbacado como se estivesse no Louvre diante da Mona Lisa ou da Vitória de
Samotrácia, visse e não visse a parte viva (ou morta?) da instalação, ou sejam
as fressuras estáticas ali a transmitir sensações de grande densidade artística
a quantos tivessem a felicidade de ser admitidos à performance pelo tempo que permitisse que a extraordinária visão
não fosse anulada pelo limite de suportação das pituitárias que, não
suficientemente treinadas, de arte moderna não entendem. Se fosse possível, mas
não passa de um outro tipo de sonhos, isto é, daqueles que se fazem acordados,
gostaria também de convidar para a vernissage
a abundante Senhora do Cacilheiro de Veneza, em versão Joana Amaral Dias na
“Cristina”, para uma esfregadela na fressura dentro de uma das banheiras,
idealizando o “Nascimento de Vénus” de um Botticelli com guia de marcha para o
Júlio de Matos e, dulcis in fundo,
embrulhar tudo em papel pardo à maneira do búlgaro Christo, dando de brinde aos espectadores, como o contrapeso que era de
uso impingir aos fregueses nos talhos do antigamente, o Palácio de Belém, com
todos os seus cavacos e cavaquinhos lá dentro, tudo bem embrulhadinho em papel
do BPN (que já pagámos).
Lisboa, 22 de
Outubro de 2015
Octávio Santos
PS: Ficava muito
feliz se o Luís Allen se pronunciasse sobre a foto da imagem, nem que fosse com
um seco “esquece, (Octávio) pato”!