Gosto de me sentar para
escrever depois de escolher bem a caneta adaptada ao teor do texto, verificar a
cor da tinta, e certificar-me se é suficiente para o que tenho para dizer.
Não gosto de me sentar para
escrever e constatar não ter nada de jeito para dizer, o que é notoriamente o
caso de hoje.
Gosto de espalhar à minha
frente, na mesa de trabalho, todos os jornais, revistas, recortes, notas e
rascunhos que me servirão para copiar as coisas que vos impinjo.
Não gosto de comer nêsperas
ao pequeno-almoço e ler na embalagem “Nisperas-Pequeños
bocados de gran sabor”, quando, por insípidas que eram, só se distinguissem
de batatas pela cor e pelos caroços.
Gosto de saber que a Zona
Franca da Madeira não tem, nem de perto nem de longe, nada a ver com o que se
passa nos outros off shores, Panamá
incluído, simplesmente porque não é um off
shore, e que as inúmeras empresas que lá se registam o fazem pelo clima
ameno da ilha e pela Festa da Flor. De um romantismo desarmante.
Não gosto de saber que quem
afirma o que reportei no parágrafo anterior, sabe de estar a mentir e que o faz
por interesses pessoais. Lobo escondido a conselho do Estado.
Gosto de saber que há uma
empresa produtora de videojogos - Molleindustria - que actuam como remédios
homeopáticos contra a vigente idiota loucura dos tempos. Exemplos:
“Tamatípico”, um tamagochi virtual
que critica o trabalho precário, “Oiligarchy”, que põe a nu os meandros da
indústria petrolífera, “Faith Fighter”, sobre a guerra das religiões, ou ainda
“Pedopriest”, sobre a pedofilia na igreja católica. Pode-se dar ao polegar com
utilidade.
Não gosto de saber que há
milhões de chineses, especialmente de minorias étnicas de zonas rurais, os Miao,
os Dong e os Yao, que estando à margem do desenvolvimento económico do país,
estão a ser arquivados à força em arranha-céus em cidades onde não sabem viver
e, por isso, votados a uma morte lenta, sem terem ao menos, para alívio do seu
infinito desespero, um Mediterrâneo para morrerem ao tentar atravessá-lo.
Gosto de saber que não
chegaram ainda a Portugal os vouchers
de trabalho que já circulam aos milhões por essa Europa fora: o empregador vai
aos correios, ou à tabacaria da esquina, e compra um voucher de 10 euros com que pagará uma hora de trabalho ao eventual
trabalhador que, após a sua prestação e com o dito cujo devidamente obliterado,
passa pelos mesmos locais de emissão levantar o fruto do seu trabalho que, após
os descontos para a Segurança Social, para o IRS, para o Serviço Nacional de
Saúde, para despesas burocráticas e para o legítimo lucro dos distribuidores,
se reduz a cerca de metade. Tudo legal, como os off shores, transformando uma geração de precários numa de voucheristas, sempre rasca generation, para
usar um anglicismo!
Não gosto que se ponham os
meninos e meninas das escolas portuguesas a brincar ao faz de conta com as
mochilas dos refugiados, e que o Senhor Presidente da República ajude a oficiar
essa liturgia. Pareceu-me imoral, para usar uma palavra contida, ter de ouvir a
menina Joana Vasconcelos dizer que meteria nela as suas jóias portuguesas, uns
novelinhos de lã e agulhas para se entreter, esquecendo os tampax (Pocket Pearl, desta vez) para o caso de
lhe apetecer fazer um lustre para iluminar o campo de Indomeni; bem os phones para ouvir música e os óculos
escuros para ver o menos possível, sem esquecer uma mola da roupa para tapar o
nariz que não suportaria os cheiros que reinam em todos os locais onde os
verdadeiros refugiados se amontoam como animais, tratados sem respeito nem dignidade. Acontece que a televisão nos
mostra todas as desgraças, facultando-nos a banda sonora, mas não dá ainda para
nos revelar os odores que, por si só, tornariam inabitáveis as nossas casas. Mas
isso que importa às nossas “criancinhas” fofas e rechonchudinhas que têm as
câmaras da televisão à disposição para debitarem as suas alarvidades?
Gosto de saber que se
começou a escrever sobre aqueles que nos países ditos de acolhimento, estão a
encher os bolsos com o negócio dos refugiados; mais lucrativo que o da droga,
no dizer de alguém apanhado numa escuta telefónica. “Prophugopoli” foi o título
do livro que encontrei, que trata de Lampedusa e da rede de traficâncias que daí irradia.
Não gostei de saber, pela boca
de um especialista, que um dos orgulhos gastronómicos nacionais, o fumeiro, é
um dos principais responsáveis pelas despesas com saúde pública neste país e
pelos lucros da Servilusa. Mas vá lá um incauto cidadão repeti-lo nas feiras e
feirinhas do Portugal em Directo! Traidor à Pátria seria o mínimo que ouviria.
Gostei, por falar em Lampedusa,
do aspecto “gatopardesco” do Congresso do PSD: mudar tudo para que fique tudo
na mesma. Desde a minha experiência búlgara que não via eleitos com 95%, mas pelo
menos temo-los fora da circulação por uns bons quatro anos. A austeridade até a
pachorra nos levou.
Não gostei de saber que os
medicamentos que tratam o maior órgão do nosso corpo, que é a pele, não têm
qualquer espécie de desconto ou merecem reembolso por parte de quem deveria
tratar-nos da saúde. Como estão de moda os seguros de saúde para animais, é
como se dos mesmos fossem excluídos os pescoços das girafas e as trombas dos
elefantes, contemplando só os cérebros daqueles irracionais com eventual queda
para a política, que não é uma espécie em vias de extinção.
Gostei, e partilhei, da
indignação geral pela morte, por incúria médico-veterinária, da cadelinha
Amélie de Maria João Bastos, que tendo sido internada numa clínica para uma
destartarização com extracção dentária, acabou por morrer por motivos ainda não
esclarecidos. Declarou a popular actriz que “os animais, tal como os seres
humanos, devem ser tratados com respeito
e dignidade. São, e a Amélie era, um membro da família”. Entretanto foi
instaurado um inquérito para apurar responsabilidades.
Não gostei de ouvir, após a
morte do lutador português de Artes Marciais Mistas (MMA), João “Rafeiro”
Carvalho, por lesões sofridas durante o combate que travou em Dublin com o
atleta irlandês Charlie “The Hospital” Ward, seja o seu treinador Vítor Nóbrega
- também responsável pelo Nóbrega Team – dizer que “foi uma fatalidade difícil
de prever”, que “foram cumpridas todas as normas de segurança” e que “a
arbitragem seguiu todos os procedimentos correctos e habituais”, seja o seu
colega de equipa Filipe Catanho afirmar que as imagens que vimos do combate “são
comuns” embora “possam parecer violentas” para quem não conhece a modalidade,
acrescentando que os jovens lutadores “devem ter em atenção que ninguém deixou
de jogar futebol quando Féher morreu”. Edificante, especialmente após o
Ministro do Desporto da Irlanda ter declarado que “já tinha visto o perigo
destas situações surgir há dois anos”, que “claramente existe um problema”, e
que iria reunir-se com os responsáveis
da Agência Nacional do Desporto “para ver o que é possível fazer para
regulamentar (A) este desporto”. Entretanto foi instaurado um inquérito (na
Irlanda) para apurar responsabilidades.
Gostei muito de ter passado aqui hora e meia a vasculhar papéis para desencantar estas coisas para vos contar, mas no fim…
Gostei muito de ter passado aqui hora e meia a vasculhar papéis para desencantar estas coisas para vos contar, mas no fim…
…não gostei mesmo nada desta
crónica por achar que os leitores teriam merecido muito mais, mas foi o que se pôde
arranjar.
Lisboa, 14 de Abril
de 2016
Octávio Santos