Confesso que estou a
frequentar o curso de Escrita Criativa na Culturgest movido pelo baixo
sentimento nacional da inveja, mas hoje senti também raiva, porque tendo
desistido de maldizer e escarnecer, numa tentativa de ganhar o respeito dos
leitores e adquirir um estatuto de seriedade nas letras, dei de caras na
primeira página de um jornal sério, com estes títulos a chamar a atenção para
uma entrevista de Lídia Jorge nas páginas interiores:
“Olhamos os nossos carrascos com piedade.”
“Continuamos a não pronunciar em voz alta o que pensamos.”
Alguém se atreveu a
dizer que a escritora escreve para costureirinhas e vendedores da Re/Max?
Trabalhei com um Embaixador que dizia que o melhor exercício para cultivar a
força de vontade era aquele de comer um só pistache. Tenho para mim que adiar a
raiva é um óptimo exercício de auto-valorização.
Inveja, essa tenho-a
dos escritores portugueses com mais êxito neste momento, como a Júlia Pinheiro,
o Manuel Luis Goucha, a Teresa Guilherme, a Fernanda Serrano, e sobretudo a
Margarida Rebelo Pinto, agora que o seu romance ”Sei lá” chegou ao grande ecrã
lançando a sua frase chamariz em cartazes pelas ruas das nossas cidades “Se não
fosse pela cama, não precisávamos dos homens para nada.”. Como antes desta
aventura da Escrita Criativa frequentei um curso de Poesia no El Corte Inglès, com
o Professor José Fanha, o qual, falando-nos da poesia em Portugal e dos nossos
poetas, teve ainda tempo para nos contar histórias, e esta eu não esqueci:
afirmou Fanha na 3ª lição que a Rosa Lobato Faria teria dito à Margarida Rebelo
Pinto: “- Não te ponhas a contar as tuas quecas nos romances, porque os teus
filhos um dia lêem e é chato!”. Prometo dividir convosco o muito que aprendi nas
7 lições daquele curso, tudo bem condimentado com fofocas, que não são “mamamíferos
mamarinhos”, mas parte integrante e
essencial da dieta cultural de um povo, a par das tardes televisivas que tanto
contribuem para manter tudo nos conformes, heróis do mar, nobre povo.
Desculpem estes
desabafos à flor da pele e voltemos à escrita séria e sobretudo criativa.
Foi então o menino
sentar-se numa pedra no alto da ladeira, no terreno onde ao Domingo os homens
do trabalho jogavam a malha e ficou à espera com o coraçãozinho aos pulos, como
ainda hoje faz quando espera qualquer coisa de muito bom. Ainda antes da
furgoneta aparecer na curva, já ele lhe ouvira o barulho do motor e vira o pó
branco da estrada levantar-se e correu a gritar oh! Vó oh! Vó eles vêm aí, eles
vêm aí, e correu a abrir o portão para que o Pai entrasse directamente no
terreiro da cerca até quase tocar a cameleira que o Tio João Araújo tinha
plantado ao fundo contra a vontade de todos, já que não dava qualquer fruto,
evitando assim o juntar da famelga no largo para os efusivos e lambuzados cumprimentos
da praxe.
- Portaste-te bem? Não
arreliaste a Avó? Olha que ela tem angina de peito e já lhe bastam as
preocupações da casa! Tudo entrava por um ouvido e saía pelo outro e lá foi,
depois que irmãos e primas mudaram de roupa, fazer com eles as coisas do
costume, ir a casa da Náná, ao curral dos bichos, ao baloiço da nogueira com
vivas discussões e birras na divisão dos turnos, dar à grande roda no poço do
Ti Carlos, à adega onde os homens bebiam um copo dissertando sobre a qualidade
do vinho do ano passado e sobre a vindima que se avizinhava, a Avó Antónia, que
não era Avó mas Bisavó, a gozar talvez a última vez que tinha à sua volta
aquele bando de mafarricos.
Vamos almoçar que a
mesa está posta era a ordem da Avó a respeitar não fosse a sopa arrefecer, que
o resto estava ainda ao lume a apurar. Sempre 12 à mesa e ainda bem que mortes
e nascimentos equilibravam este número para o não fazer chegar a 13, prenúncio
de todas as desgraças ou anunciador de que aquela seria a última ceia. A
Hortense servia os pratos da sopa que só a Avó sabia fazer assim tão boa,
parecia veludo, e bem apetitosa, a água-pé com piquinhos a fazer cócegas no céu
da boca, o pão acabado de sair do forno a pedir que o esmagassem nas batatas e
no molho, o coelho divinal como as favas do Jacinto, uma língua é para o menino
e a outra para o Ti Chico Varatojo, que ambos morrem por elas, o céu da boca
vai um para a Mimi e o outro para o Apeles, as mioleiras dividem-se por todos e
os rins vão os dois para a Jázinha.
Como sempre o
Dentolas aparecia à soleira da porta da casa do forno com o boné na mão, não me
demoro dizia, mais para ver o que se passava e detectar possíveis
desentendimentos camuflados que para a troca de palavras sempre sobre os mesmos
temas: o tempo, o reumático, o preço do adubo, os 15 graus do seu vinho da Trogueira,
as jornas e os aposentos dos malteses, a égua do mê Albino, que animal aquele,
e pouco mais, vou andando com vossa licença, pois sabia que ninguém o mandaria
sentar apesar do sussurrado e nunca repetido é servido, porque 13 à mesa é que
não: - Valha-nos Deus Nosso Senhor!
Expedidas as
crianças para a sesta sagrada, as mulheres para casa da Ti Rosarinho para porem
as conversas em dia, os homens ficavam ali por baixo da parreira de uva Ferral
Carpinteiro, uns sentados no banco de sobro e rede de capoeira, outros deitados
numa esteira a dormitar ou a saber do Absalão as novidades e problemas da
lavoura, e Deus sabe se havia problemas numa casa de lavoura.
Depois do lanche
ajantarado as crianças subiram para a varanda/terraço das glicínias e
emoldurados por aquela cor e aquele perfume organizaram jogos, dominó, loto,
bisca lambida ou burro em pé, e o menino lembra-se como se fosse hoje de ter na
mão uma manilha de espadas e ver através das janelas dos olhos da sua
companheira de jogo um 3 também de espadas, que lhe permitiam fazer os dez
pontos. Levaram nisto até começar a anoitecer, e já a Avó os chamava para a
cama, quando se ouviram dois tiros ao longe e da ladeira começaram a chegar
vozes alteradas, gritos mesmo, ruídos de gente a correr, tudo tão pouco usual
no fim de tarde da aldeia, que toda a Família veio para a varanda esticando os
pescoços para verem o que estava a acontecer, quando vinda do alto da ladeira, apareceu
uma figura de mulher em camisa de noite branca, descalça, a correr em direcção
ao portão da cerca, que a Avó, com a autoridade de primeira figura da terra,
ainda gritou: “- O que foi oh Patrícia, aconteceu alguma coisa ao teu menino?” Mas
nada, a Patrícia, seminua, curvou ofegante direita à parte baixa da aldeia e
atrás dela vinha o Lucas Correeiro a segurar as calças com o cinto a cair e as
botas na mão na direcção da casa dos pais, como se fugisse de um lobisomem. Só muito
depois apareceu o Jaime Fandangueiro com os bofes pela boca, uma pistola na mão,
a gritar palavrões sem nexo nem pontuação como as coisas que ultimamente
escrevo.
A este ponto os
adultos na varanda, tendo percebido toda a marosca, mandaram os mais pequenos
rapidamente para a cama, fecharam as portas dos quartos e vá de cada um tentar
adormecer chocado pelo filme que lhes interrompera os jogos, ouvindo na casa de
fora os grandes a conversar em voz baixa, mas as vozes acavalavam-se, o tom das
mesmas alterava-se, e nada de inteligível atravessava aquelas portas de quarto
que faziam de guarda-fogo à inocência.
No dia seguinte de
manhã, era Domingo, cedo o largo da aldeia estava anormalmente povoado, com o
pormenor de não haver uma única mulher e o de estarem lá todos os homens com
excepção dos velhos acamados, dos demasiados trôpegos e do Lucas Correeiro que
já tinha escapado para Lisboa, porque ele, o Jaime Fandangueiro, estava presente
acompanhado do filho, dos seus 3/4 anos, e era o centro de todas as
atenções. E o menino foi-se chegando, ouvindo e percebendo, guardando na sua
memória uma estranha história de amor, traição, ciúme e tradição, cujos
ingredientes lhe eram até então desconhecidos, história que se atreve a pôr no
papel agora e rapidamente que o texto começa a alongar-se e depois ninguém o
lê.
O Jaime Fandangueiro era casado há poucos anos com a Patrícia, que
fora desencantar na Macieira, aldeia na encosta da serra, numa noite em que
tinha ido abrilhantar com a sua arte bailarina a festa do Santo Padroeiro, como
era seu hábito em tudo o que era festa nos arredores. Casaram e foram morar
para um casal isolado numa colina entre Serena e Albardeira, e tiveram um
menino. Naquela noite o Jaime despediu-se da mulher e do filho, cavalgou a sua Zundapp e acelerou direito à Colina do
Toutiço, aldeia distante já no Concelho de Ameias Agras, onde ia para arrecadar
uns cobres com a sua arte, já que os trabalhos do campo nunca o tinham
entusiasmado, e é o menos que se pode dizer. Meia hora depois já o Lucas
Correeiro estava metido na cama com a comadre – era ele o padrinho do menino – a
usufruírem das delícias pecaminosas do segredo que os unia já há algum tempo.
Quis o jogo do amor e do acaso que, na pressa de chegar ao seu destino, o Jaime
não tivesse dominado a motorizada numa curva apertada e esta o tivesse cuspido
para uma moita de silvas abaixo de um valado. Todo arranhado, combalido, a cara
feita um Cristo, um joelho a dar parte fraca, o Jaime praguejou, disse mal à
sua vida, tomou da sua montaria e toca a abrir a caminho de casa.
O ruído do motor a dois tempos a subir a colina apanhou a Patrícia
e o Lucas desprevenidos no bem-bom, e aquilo foi um vê se te avias, mas, ou
porque enfiar umas ceroulas à pressa não é a mesma coisa que com vagar, ou
porque o Jaime se apressou no desejo de chegar a casa, o facto é que ele se deu
conta das grandes manobras de retirada e camuflagem que ocorriam na sua própria
casa, e teve ainda tempo para ferrar com um candeeiro de petróleo nos cornos
(salvo seja) do sacana do compadre quando este escapava pela porta da cozinha e
dar dois tiros para o ar na escuridão da noite. Depois de apagar o pequeno
incêndio provocado pelo candeeiro partido, quando procurou a mulher, com a arma
na mão, já esta corria sem destino pela ladeira acima seguida pelo compadre,
chama-lhe compadre, e o Jaime não fez mais que segui-los com mais o estorvo daquele
maldito joelho claudicante.
Acabado o sarrabulho, com o Lucas aferrolhado em casa da mãe e a
pobre Patrícia, sem família na aldeia, entregue aos pais e irmãos do ofendido,
os quais, em conselho de família, decidiram ir devolvê-la aos pais a Macieira,
sentença executada imediatamente à luz de archotes, a Patrícia à frente
descalça e em camisa de noite a abrir o cortejo e atrás o marido e os seus três
irmãos machos vivos que, provado não lhe terem chegado a pouca roupa ao pelo,
já que a moçoila chegou ao destino sem sangue nem nódoas negras, a devem ter mimoseado
com todo o vernáculo adaptado à situação. Feita a entrega da pecadora à família
de origem, voltaram os quatro irmãos a Albardeira, recolhendo cada um a suas
casas. Ouve quem ouvisse a velha Mãe do ofendido dizer às vizinhas: - Tive
muito desgosto quando morreu o meu filho Sebastião, mas isto foi muito pior,
que vergonha tão grande!
O certo é que o menino ouviu todas estas reconstituições da voz dos
presentes encostados naquela manhã de Domingo ao reforço da parede da casa do
Bernardino Painel, mas lembra-se bem de ouvir o Jaime a obrigar o seu filho
pequenino a repetir: “- A Mãe é puta!”, tantas vezes quantas o Pai lho exigia,
numa espécie de rito propiciatório que anulasse o pecado, a ofensa e a
vergonha. Acontece que o menino tinha desde muito pequenino caído nas graças do
Jaime que, acabada a assembleia matinal, já que os pormenores dos factos da
véspera estavam esgotados e cada um já tinha ido à sua vida, o chamou e o levou
pela ladeira abaixo até à casa da colina, explicando-lhe com larga cópia de
detalhes como tudo se tinha passado, mostrando-lhe o sangue da cabeça do
compadre na parede caiada do quarto de dormir, os vestígios do incêndio, a cama
desfeita, as calcinhas da mulher caídas num canto, os dois invólucros das balas
disparadas ali no chão fora da porta da cozinha, e fez questão de lhe oferecer
o Sul, cão de guarda da casa, que conhecendo o compadre e sabendo-o assíduo em
noites de ausência do dono, não cumprira com a sua obrigação de fidelidade canina.
O menino, para não dar mais um desgosto ao seu amigo bailador, pegou na
corrente de ferro ligada à coleira do Sul, subiu a ladeira e apresentou-se em
casa da Avó com aquele canzarrão preto e branco que tinha fama de terrível, não
deixando nenhum desconhecido aproximar-se a meia colina sem desatar a ladrar
desalmadamente e a mostrar uns senhores caninos. “– Vó, pode atar o Sul na
estaca ao lado da casota que era do Tejo, porque agora ele é meu!” E afastou-se
como um toureiro quando termina uma faena com temple e pundonor, orgulhoso de ver a cara de espanto que os irmãos
e as primas fizeram diante daquela sua vitória e, até certo ponto, promoção. E
para o menino naquele dia acabou um jogo e começou um outro, como se tivesse
subido um degrau no complicado quebra-cabeças da compreensão da vida.
Mais tarde, o menino, ouvindo vozes que davam como certo que o
Jaime e a Patrícia se tinham junto outra vez e viviam com o filho em Lisboa,
onde ambos trabalhavam - "cornudo de merda não tem vergonha na cara" ouvia-se na
aldeia -, percebeu que tinha assistido na primeira fila a um salto
civilizacional.
Lisboa, 10 de Abril
de 2014
Octávio Santos