A semana passada fui ver “A Grande Beleza”, filme italiano que venceu
o Óscar para melhor filme estrangeiro, e gostei. Gostei porque a verdadeira
protagonista é Roma, “a minha cidade”, cuja beleza contrasta com a sua ausência
nos comportamentos dos protagonistas secundários - homens e mulheres -, porque
o génio de Federico Fellini está presente do princípio ao fim do filme, porque
a visão de um mal por todos aceite e cuja banalização lhe dá estatuto de normalidade,
nos indica os caminhos do bem, porque fazer desaparecer uma girafa nas Termas
de Caracalla é só um truque, ensinando-nos que é escusado varrer o lixo para
debaixo do tapete; alguém, um dia, se encarregará de descobrir um, levantando o
outro. Não gostei que o filme durasse mais de duas horas e meia: uma montagem
que reduzisse as cenas de imprinting felliniano
- os mestres não se copiam, citam-se -, poderia tirar-lhe uma boa meia hora sem
nada perdermos. Não gostei nada, mas isso não tem a ver com o aspecto artístico
do filme, do premeditado e imediato aproveitamento desta vitória como arma de marketing, e passo a explicar-me: a FIAT,
já há alguns anos em parceria com a Chrysler, acaba de a “comprar”
definitivamente, tendo agora todo o poder de decisão sobre a grande marca norte
americana, sabendo-se já que o próximo modelo Jeep será construído em Itália e
não em Detroit. Ora, no dia seguinte à noite da atribuição dos Óscares as
televisões transalpinas passaram a transmitir insistentemente um anúncio, no
qual vemos Paolo Sorrentino, realizador do filme, a conduzir um Fiat 500 (o
modelo da marca mais apetecido nos EUA) pelas ruas da Roma da película, anúncio
intitulado “La Grande Belezza”, o que me indignou pelo facto de tudo se ter tornado
“indignado”, no rigor do Latim.
Por isto, embora tencionasse escrever hoje sobre o filme, e
também porque mão amiga me levou à Culturgest para assistir a uma conversa/debate sobre o texto que a escritora Hélia Correia (HC) publicou
no suplemento “Ipsilon” do jornal Público no dia 15/01/12014, intitulado “Com respeito às palavras” , virei-me para
este outro assunto que, além de não nos induzir em engano, nos alerta para o
uso indevido e indiscriminado de armas ao serviço desse engano, como podem ser,
neste caso, as palavras. Mas, tal como HC, que declarou não ter “competência
para escrever sobre os eventos da realidade”, também eu não a tenho para
comentar o seu magnífico texto, pelo que me limitarei a tecer algumas banais
considerações sobre as frases e conceitos que mais chamaram a minha atenção, e
também sobre quanto disseram na ocasião, a autora e os seus companheiros de
mesa, António Guerreiro (AG) e Diogo Vaz Pinto (DVP).
Eu, que, como todos sabem, escrevo para taxistas e barbeiros
desde 2004 e vejo agora gente que há dez anos era insuspeita de entrar por essa
via, dizer agora na rádio e na televisão, e pôr preto no branco em jornais e
revistas, coisas que os mesmos me tinham ensinado que eram indignas de propalar
para além das conversas de café com os amigos, confesso que tenho muita
dificuldade em opinar sobre um texto que, pela sua seriedade e profundidade,
teria sido melhor fingir ter-me passado ao lado e deixar a outros o ónus e a
responsabilidade de sobre ele falar, tanto mais que ouvi a HC afirmar, que a
humanidade é um artifício, e que a linguagem é um artifício da humanidade: como
falar então de um artifício ao quadrado senão de uma forma redonda? Mas vamos a
isso, digo eu de mim para mim, como se estivesse para entrar no Labirinto de
Creta, numa arquitectura de Escher ou nos recônditos lobos cerebrais de quem
nos impinge austeridade como virtude, para que fiquemos contentinhos com a
ideia de “emagrecer” com sacrifício sim, mas com a consciência de um dever
cumprido, saindo do processo doloroso como que rebaptizados e livres finalmente
da nova versão do pecado original.
Uma coisa é certa; o uso generalizado deste dialecto da “novilíngua”
orwelliana com que nos martelam os
ouvidos, é imposto pela obrigação de pertenceres a uma casta, fora da qual não
tens, com o pouco que sabes, qualquer espaço vital ou hipótese de sobrevivência,
não estando eu, por isso, de acordo com HC porque com motins destes vale a pena
perder tempo, mesmo que o riso alarve e alvar dos pseudo vencedores nos faça
estrebuchar no vazio. E para acabar depressa com os meus desacordos com HC,
direi que não gostei nada de a ouvir dizer que não faz falta sonhar, que não
gosta nada de sonhos (aqueles acordados) porque “ sonhar leva a que a
musculatura se atrofie”, para além de se correr “o risco de hipnose”, e que, ao
contrário do que disse o poeta, estes não comandam a vida, que a “Poesia do
Pensamento”, de Steiner, é mais importante que toda aquela feita hoje “ no país
de poetas” a), que “raramente dá bons textos”, o que a mim,
acabado de ter 7 lições, 7 de poesia com o José Fanha me deixa muitas e
fundadas dúvidas, deixando-vos propositadamente “O Desempregado com Filhos”, de Gonçalo M. Tavares, que
não me parece seja fruto do amolecimento
pelo sonho, e, finalmente, que a catarse, provocando o alívio do mal, é
neste caso negativa. Fim dos desacordos!
Que a desumanidade é um mistério todos nos demos conta a ver
filmes de alliens e zombies, mas agora, ao vê-los a voltear
entre nós, em carne, osso e estupidez, a reivindicarem, e conseguirem, a
condição e estatuto de humanos, e mesmo de sobre-humanos, o mistério adensa-se
tornando-se insondável, se bem que saibamos que os “monstros” que nos afligem,
chegam das Jotas e das consultoras fabricantes de robots à medida das exigências dos manipuladores dos cordelinhos da
freenança. Como a metáfora é
contagiosa - eles obtêm sempre o que querem – ponho-me a imaginar que a Rainha
de Copas da Alice, com o estupor do coelho a atrasar-lhe o relógio, já
estivesse à coca quando a Europa saltou para o dorso do touro branco (ariano
puro) que a levou raptada para Creta, tendo escolhido nesse momento por que
país começar a reinar, e esta a é minha “narrativa” pessoal, vazia e jocosa, já
que a metáfora virtuosa é reservada aos políticos. Valha-nos Zeus como valeu a
Europa.
Depois, já sem fôlego e embalado no baloiço das palavras, perco-me
no texto da HC, que merece um profundo estudo que não é para mim nem para
agora, mas que tenho a certeza será visto à lupa, linha por linha, porque, como
disse o jovem DVP, é uma coluna vertebral, mesmo um esqueleto, ao qual cada um,
com as suas capacidades, deverá acrescentar músculos, veias, nervos e órgãos
vitais para formar um corpo que, erguendo-se, possa novamente dar mapa e farol
àqueles que se refugiaram no “ não vale a pena”, recobrando força e coragem
para começarem a fazer perguntas – escrutinar – a quem terá de prestar contas
pela falsa ideia de democracia que tentou fazer passar como boa. Se bem que,
mesmo que conseguíssemos, com este sobressalto de cólera legítima, recuperar os
anéis perdidos, já não teríamos os dedos, que até esses nos levaram, como disse
na TV o politólogo Joaquim Aguiar.
Confesso, na minha ignorância, que compreendi pouco do que disse
AG que, a meu ver, atacou o “politiquês” com o “intelectualês”, ainda por cima
de sentido único. Quando nos fala da linguagem a que os fascismos obrigavam os
povos submetidos, pensava seguramente na frase de Roland Barthes “o fascismo
não é impedir-nos de dizer, é obrigar-nos a dizer”, mas eu, que vivi quase 13
anos para lá da Cortina de Ferro no país que conheceu, em 1923, o primeiro
regime fascista europeu, a Bulgária, sei que na frase de Barthes a palavra
fascismo é perfeitamente intercambiável com a palavra comunismo, e isto para
ser brando e não ressuscitar a frase de Mao “comunismo não é amor, comunismo é
um martelo com o qual se golpeia o inimigo”, e o inimigo, para o fascismo ou o
comunismo - que ainda hoje disputam entre si a honra de saber qual fez mais
vítimas -, é sempre o povo.
Vou terminar fazendo uma lista daquilo que gostei muito na
sessão da Culturgest:
- Do brilho nos olhos da HC quando nos contou a história daquela
pequenina que os pais levaram pela primeira vez a uma manifestação, e que, ao
ouvir gritar “Fascismo nunca mais”, perguntou, se as pessoas não queriam mais “sismos”.
Quem nos vai salvar são aqueles que, com a mente limpa, conseguem dar outro
significado e sentido às palavras;
- Da clareza do DVP que nos pôs diante do dever de ajudar a
“vestir o esqueleto” com a nossa acção quotidiana, fazendo cada um a sua
obrigação. Eu penso fazer a minha com a simples acção de estar atento;
- Da visível falta de paciência do DVP para ouvir as
intervenções “rançosas” que vieram da assistência, respondendo sem entusiasmo
ou excedendo-se, sempre com um abanar de cabeça que traduzi por “não vale a pena
perder tempo e verbo com gente desta”;
- Da tocante modéstia da HC. Uma pessoa que escreve um texto
destes, eu diria essencial para o nosso despertar colectivo, está ali
sorridente a ouvir de tudo e a dizer o essencial, como se estivesse na
apresentação de um livro para crianças. Que também os há importantes. E como!
Mentiroso contumaz que sou, prometi acabar com o que gostei
muito mas tenho a tentação - estrago sempre tudo, diria alguém – de vos
aborrecer com aquilo que não gostei nada, e foi muito pouco:
-Que nenhuma das pessoas que pediram para intervir no fim da
sessão, se tivesse apresentado, identificando-se. Ou foi a troyka que nos tirou também a boa
educação?
- Que a primeira Senhora que pediu para falar tivesse começado
por dizer que tinha muita pena que o Rui Nunes (?) não estivesse na mesa,
porque, segundo ela, era a pessoa indicada para falar sobre o texto. Não sei se
o AG e o DVP se sentiram ofendidos, mas como são mais educados que a Senhora,
para mim anónima, nada disseram;
- Que tendo
algumas pessoas na assistência, uma das quais eu próprio, pedido o microfone
para intervir, o “dono” da geringonça tenha virado a cara para o lado cortando
o pio aos postulantes.
Foi melhor assim, pois se tenho falado, talvez já não tivesse
escrito este texto, e me tivesse posto a comentar a sentença que o Chef José Avilez pronunciou na Cruz
Vermelha, ao fazer publicidade do restaurante “Belcanto” - onde é sabido que
todos os portugueses têm mesa posta -, de que não conhece nenhum português que
não se sinta orgulhoso de ser português. Apetece-me passar um dia destes por
lá, caso não se pague para franquear a soleira da porta, para lhe apresentar o
primeiro exemplar.
Mas foi melhor assim, repito, porque no fim é tudo inútil, e refiro-me
tanto ao que não me deixaram dizer como ao que deixo aqui escrito, mas nunca à
inutilidade do voto, como nos pode levar a inferir uma frase que li não me
lembro onde: “Democracia é a liberdade para eleger os nossos próximos ditadores!”
Lisboa, 20 de Março de 2014
Octávio Santos
a)
Já que acima citámos “o país
dos poetas”, permito-me transcrever o convite recebido da Chiado Editora, e de
vos obrigar mais uma vez a ler o meu poema “Viagem de fim de semana em ascensor” porque ele faz parte da Antologia citada no convite.
“ Caríssimo Autor,
É com o maior prazer que a
Chiado Editora O convida a dar-nos a honra da Sua presença no lançamento da
Antologia de Poesia Portuguesa Contemporânea "Entre o Sono e o Sonho"
- Vol. V.
A obra conta com mais de
1.000 poetas portugueses contemporâneos antologiados, e afirma-se
definitivamente como a mais completa das Antologias Poéticas publicadas
actualmente em Portugal.
O lançamento terá lugar no
Sábado, dia 22 de Março, pelas 16 horas no Salão Preto e Prata do Casino
Estoril. Será uma tarde de poesia memorável, na qual todos os Autores
antologiados presentes subirão ao palco do Salão Preto e Prata.
A entrada é livre e são todos
bem-vindos.
Chiado Editora
Break Media Holding”