Quando a camioneta
dos Clara parou resfolegante à porta do edifício térreo da Quinta da Aviação
que dava para a estrada real e era como que o escritório da Casa Anjos Grosa, a
maior casa agrícola do Concelho do Cadamonte, e o menino desceu com a mala da
roupa e o corpo moído pelo desconforto dos bancos da Magirus, já a carroça
puxada pela Carriça - e não é jogo de palavras – lá estava à sua espera e o
Absalão largou as rédeas, desceu e ajudou os menino a subir, ajeitou a mala não
fosse ela cair com os balanços na esburacada estrada de macadame e começou a
trepar aquilo que já eram as faldas da Serra de Vales Separados em direcção à
casa da Avó na aldeia/beco da Albardeira onde o menino iria passar as férias
grandes com a certeza de ir ser livre e bem tratado por todos. – Vamos que a Ti
Misericórdia já deve estar em pulgas, matou o galo e mandou a Hortense arejar e
reforçar os capelos do colchão que ficou inchado como uma porca cheia. A dureza
da carroça que lhe fazia o rabo saltar na tábua onde ia sentado ao lado do Absalão
era compensada pela aragem que lhe batia na cara, pelo cadenciado toc-toc dos
cascos bem ferrados da velha mula e pelo acender das estrelas num céu azul
escuro, já que anoitecia, e se os 4 quilómetros a percorrer fossem 10 ou 20 o menino
teria adormecido sentado, na paz do crepúsculo e do Senhor.
Passadas as aldeias
de Fenais (terra da Avó), Vila Velha e Serena, galgada a última rampa e
atravessado o largo da aldeia onde acorreram todos para saudar, abraçar e
beijar o menino arrancado à força da carroça que parara à ordem de um Aíoh! Já
o portão da cerca estava aberto e a Ti Misericórdia com as mãos escondidas no
regaço à espera do neto visivelmente contrariada por não ter sido a primeira a
pegar-lhe ao colo. – Veio sozinho não é costume, querem ver que puseram a
criança ao almazio, disse alguém que se afastava da cena para recolher a
penates onde a ceia e a cama o esperavam como todas as noites durante todo o
arco do ano, que amanhã é dia de trabalho e o corpo ainda não se recompôs do da
véspera.
Já nos braços da Avó,
a parte chata era o interrogatório sobre os Pais, os manos, a escola, o estado
de saúde de todos e as afirmações tipo, o que tu crescestes neste meses, e a
parte boa, o enfardar a canjinha (sem letras), os melhores pedaços do galo, as
batatas afogadas naquele molho vermelho e gostoso, as azeitonas, o pão quente
acabado de sair do forno, a boleca de chouriço feita expressamente para ele, a
laranjada comprada na loja do Zé Outono porque não tens ainda idade para
água-pé quanto mais vinho, e o menino lá ia comendo, ouvindo, respondendo e aceitando festas e beijos dos
mais chegados que iam entrando na casa do forno para ver aquele menino acabado
de chegar de Lisboa, como se tivesse colado a si qualquer coisa de especial e
sonhado vindo da capital. - Coitadinho, depois da canseira da viagem deve estar
mortinho para ir para vale de lençóis, e estava, para descansar o corpo naquele
cheirinho de roupa lavada no tanque com
sabão azul e branco e seca ao Sol, mas sobretudo para sonhar com tudo o que iria
fazer amanhã e durante todos os dias daqueles 3 longos meses de férias que
tinham naquele momento uma duração que o menino sentia próxima da eternidade.
O dia começava
sempre mal com a Avó Antónia, que não era Avó mas Bisavó, e tão velha de ter
para contar histórias passadas em casas solarengas de Senhoras de alta linhagem
que frequentavam a corte da Raínha Senhora D. Amélia, e começava mal porque era
ela a encarregada de fazer o menino engolir uma pratada de sopas de leite, rito
odiado e origem de grandes dramas causados pelos farrapos de nata que faziam o
menino vomitar tudo no canteiro da dálias ou no rincão das cenouras. Para
ouvi-la novamente contar histórias da Senhoras do Fetal ou do António dos
Santos da Avó, menino da roda que serviu anos a fio na sua casa, juro que
emborcava um alguidar de sopas de leite sem pestanejar, nem que um lençol de
natas me desse volta ao gorgomilo.
Depois era a
liberdade de apanhar cerejas, nêsperas ou rainhas cláudias – o menino nunca
gostou de figos - em cima das árvores e cuspir os caroços para as leivas duras
do chão, ir à horta do Dentolas, no caminho do Talude Quente, apanhar rãs que
nem sempre tinham um futuro feliz, pegar na flaubert
de 12 mm e ir aos pássaros: - Tão engraçado, tão pequenino e já me chega a casa
com o cinto cheio, até já me trouxe um melro, um gaio e até uma rola! como me
arrependo hoje e ponho-me a pensar se
era necessário fazer o mal para o distinguir do bem, mas foi assim, não tenho culpa que Deus me
tivesse concedido o livre arbítrio, e o menino que confessou ter roubado uma
castanha de um saco à porta de uma mercearia nunca falou a ninguém das 3
dezenas de andorinhas - as galinhas de Nossa Senhora - que lhe serviram de alvo
num dia de loucura em que o tal livre arbítrio foi muito mal utilizado a
experimentar a pressão de ar que o Pai lhe oferecera, correr pelos campos só pelo prazer de sentir o
vento na cara, descer aos riachos para
ouvir a água a correr e ir à azenha só
pelo rumor da roda a chiar e apanhar agriões para a salada, pedir emprestada a pasteleira ao Absalão, grande demais para ele, para descer a estrada até Serena e passar em frente da loja do Zé Outono que
tinha uma filha com os olhos bonitos e
regressar a empurrá-la pela ladeira acima por não ter canetas para tanto, muitas vezes com os joelhos esfolados, convencer a Avó a arrear a Carriça com albarda
e cabeção e sair a galope até Cadamonte, a ouvir o martelar das ferraduras no alcatrão
da estrada real, voltando depois de ter
emborcado 3 cervejas sentado numa das 3
mesas da esplanada do Café Cravo para armar em homem.
E na cama à noite
depois de jantar, porque fora dia de vir o peixeiro de Peniche, chicharros
alanhados a 5 tostões o par com batatas cozidas com casca e uma cebola, e do
duche na casinha do banho com o balde cheio de água quente ao Sol durante o dia,
o menino adormecia tranquilo e feliz depois que a Avó lhe aconchegara lençóis e
cobertores e desejado as boas noites, porque no outro dia chegavam os irmãos e
as primas com toda a família na Fordson do Pai que tinha os lugares que se
quisesse que tivesse e era a percursora dos monovolumes tão de moda hoje, mas
atenção que se no livrete diz 7 lugares sentados a GNR multa-te se levares 8,
uma seca. De manhã levantou-se cedo, repetiu-se a tortura das sopas de leite
que naquele dia lhe pareceu mais leve e não se afastou muito da cerca nem para
ir ao pinhal do Ti Carlos apanhar um boné de pinhões debaixo da copa do
pinheiro manso e ficou ali a balançar-se no baloiço da nogueira a ver o Absalão
tratar da horta e a ouvir o Canhamanga a ralhar com a mulher para lá do muro e ao
longe a Elvira Velha a morrer deitada no seu catre que gritava pelo marido que
andava à jorna: - Oh Jcisco! Oh Jcisco! A Avó tinha mandado a Hortense matar dois
coelhos: - Vê lá aqueles grandes que estão separados na coelheira de baixo, não
aquele que está na de cima com a coelha para a cobrir, e na casa do forno era
já azáfama de dia de festa, com a mesa a pôr-se, os coelhos no tacho a refogarem
e a sopa de abóbora cú de mulher a apurar na panela com tudo aquilo que a horta
dava para a sopa que não havia outra mais saborosa.
Foi então o menino
sentar-se numa pedra no alto da ladeira… - pára aí porque isto já tu escreveste
no texto da semana passada e aqui tens de fazer uma pausa para contares o que
não está ainda contado. Vamos lá então pôr ordem nas coisas porque senão
ninguém se entende!
A vedeta da comitiva
familiar, a chegar de um momento para o outro, era o meu irmão pequenino ao
qual eram reservadas as maiores atenções não só porque era o último chegado mas
também porque era realmente dos três irmãos o mais bonito de todos. Dir-se-ia
que os Pais tinham posto todo o seu empenho neste terceiro após o notório
fracasso com o segundo. E o segundo, ou seja, eu, que já me metia na adega do
Dentolas para beber uma água-pé às escondidas da Avó, secava 3 imperiais no
café da Vila e pedia um copo de três tintos na loja do Zé Outono para que os
olhos da filha vissem que havia ali alicerce de macho, não podia dar muita
importância ao pirralho para não alinhar com a maioria. Mas, relembrando um
episódio de então, quanto me arrependo deste meu falso despreendimento e quanto
tenho vontade de agora lhe contar tudo, mas as palavras nem sempre nos saem da
boca nos momentos certos, ficando a martelar-nos no cérebro como despertadores
da consciência e, empurrado pela última lição de Escrita Criativa que tratou de
“Género Epistolar”, vou terminar este texto com uma carta que não tem nada de ficcional
como as cartas das 3 Marias que não tinham destinatário certo, mas que se
dirige a um interlocutor bem preciso, mais ao estilo daquelas que Soror Mariana
Alcoforado escreveu da sua cela de convento em Beja ao Cavaleiro de Chamilly,
sendo portanto uma carta de amor.
Meu querido
irmãozinho,
Quando eras
pequenino e começavas a chorar, abrias a boca e depois do sonoro berro inicial
deixavas de respirar e ficavas assim um tempo infinito, cada vez mais vermelho,
com todos à tua volta a tomarem iniciativas que achavam adequadas para que tudo
voltasse à normalidade que só se restabelecia após um ruidoso respiro fundo
seguido de um novo berro, e aí vá de todos a apaparicar o bebé que mais uma vez
“se tinha ido pelo fôlego” designação “técnica” dada ao fenómeno. Eu, nesses
momentos, como em todos os outros que punham em questão as certezas da minha
vida, não ficava, fugia. E, naquele dia em que repetiste a gracinha na casa de
fora da casa da Avó, eu desci de quatro em quatro os degraus de pedra da escada
das glicínias e corri pelo caminho da horta até chegar à casa do motor, e
lembro-me de, aterrorizado por não ter ainda ouvido o grito liberatório, me ter
sentado no chão encostado ao maracujá que crescia entre o tanque e a casota, a
rezar ou simplesmente a fazer força para que aquele insuportável silêncio fosse
quebrado, e durante aquele espaço de tempo, para mim infinito, sofria uma dor
que só hoje sei quantificar. Dor que só passava com a corneta dos teus pulmões
a anunciar que estavas ali outra vez. Aí, levantei-me, senti nas costas a
camisa molhada – agora a Mãe vai-me ralhar porque as nódoas de maracujá não
saem nem com lixívia – desci calmamente a estradinha da horta e voltei para ao
pé de todos como se nada se tivesse passado.
As pessoas não se
amam porque são iguais, e a prova é que entre aqueles que fogem e aqueles que
ficam, categorias que mais diferentes não existem, pode prevalecer um
sentimento profundo inversamente proporcional às concepções de vida e aos
caminhos a percorrer para ser fiel a essas directivas que, no meu caso, me
atrevo a considerar compulsivas. Mais ainda quando um respeito mútuo faz com
que os que fogem admirem os que têm a coragem de ficar, e os que ficam nada
façam para contrariar a fuga, embora no nosso caso, meu querido irmãozinho, eu
não possa, viva eu tantos anos como aqueles que tens ainda para viver, esquecer
que, pressentindo tu que a minha fuga iria acabar mal sem um passo à retaguarda
para encher os alforges de provisões de amor para aguentar o resto da jornada,
me chamaste à pedra e, mostrando-me a grande falha do meu percurso, me
ofereceste delicadamente ocasião para num só dia recuperar o perdido de três
lustros. Um milagre! Mas, para mim, anjos que me aparecem a indicar a estrada
justa e milagres que me acontecem para que as dores não ultrapassem aquelas
comezinhas quotidianas, fazem parte de um trivial que eu arrogantemente tomo
como a normalidade da minha existência. Um desses milagres é o de nunca me ter
acontecido ser obrigado a chorar a perda de alguém fora da cadência normal da
existência, o que, cumprindo os desígnios de Deus, minimiza a dor porque ver
partir uma Bisavó antes de uma Avó, os Avós antes dos Pais, e os mais velhos
antes dos mais novos, são coisas naturais que, embora te desgostem, aceitas por
inevitáveis.
Como os anjos
continuarão a aparecer-me e a tomar conta de mim, e os milagres, não porque eu
mereça, não deixarão agora de se revelar, não podia deixar escapar esta ocasião
para te dizer, antes que eu empreenda a minha última e definitiva fuga, naturalmente
antes de ti visto os 8 anos que nos separam, que te amo por seres o meu irmão
pequenino, pelas minhas obrigações falhadas que fizeste tuas, e sobretudo pelo
exemplo que deste e continuarás a dar a todos. Como facilito tudo e aproveito
sempre as ocasiões mais favoráveis para dizer coisas, foi-me fácil escrever-te
esta carta de amor porque tenho a certeza que não repetirás tão cedo a gracinha
de “te ires pelo fôlego”.
Com todo o meu amor.
Teu irmão Octávio
Lisboa, 17 de Abril
de 2014
Octávio Santos
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